Museu Estadual do Carvão completa trinta anos em compasso de abandono

Fotos: Erick Peres/ Nonada

*Atualizado no dia 21 de maio, a terceira fase do projeto de restauração dos documentos foi oficialmente aprovada no Pró-Cultura

O Museu Estadual do Carvão, com sede na cidade de Arroio dos Ratos, completou 30 anos no dia 31 março, mas não há muitos motivos para se comemorar. O espaço cultural encontra-se semiabandonado, sem um gestor desde agosto de 2015, quando terminou o período na direção do funcionário público Alexsandro Witkowski, cedido pela Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul, à qual é originalmente ligado. Quem respondia, de forma irregular, pela parte administrativa era o estagiário do curso de Administração da Ulbra, Adriano Tassinari,  que encerrou seu contrato no dia 2 de maio. Tentamos contato com a assessoria de imprensa da Secretaria da Cultura (Sedac), mas não obtivemos resposta até o fechamento da reportagem.

Trata-se de um dos poucos museus ligados à Sedac que não estão localizados em Porto Alegre. Completam a lista o Museu Arqueológico do Rio Grande do Sul, em Taquara; o Museu Histórico Farroupilha, em Piratini; e o Parque Histórico General Bento Gonçalves, na cidade de Cristal. Segundo o ex-diretor Witkowski, a Procuradoria Geral o chamou para o seu cargo original. “É uma pena, eu gostaria de ter ficado pelos problemas que nós temos. Falta de manutenção, falta de orientação, porque atualmente não se tem um gestor, alguém que solucione os problemas”, afirma. O parco quadro dos funcionários é composto atualmente de dois vigilantes e dois profissionais de serviços gerais, todos de empresas que prestam serviços terceirizados pelo Estado, em um espaço de quase onze hectares.

O quadro fica mais agravado quando se percebe que há um projeto de revitalização por trás do Museu do Carvão que caminha a passos lentos. Em 2011, segundo informação que consta no Processo número 0962-11.00/12-2/ Parecer número 40512/ do Conselho Estadual do Rio Grande do Sul, a empresa Copelmi Mineração solicitou a reativação das minas na região carbonífera do baixo Jacuí. Para obter essa autorização, a empresa assinou um acordo de cooperação técnica com a Sedac, visando restaurar as estruturas remanescentes do Complexo do Museu Estadual do Carvão e apoiar o desenvolvimento de projetos culturais. O caminho utilizado é a Lei de Incentivo à Cultura, sendo a empresa responsável pela captação a Surya Projetos Ltda. Para ficar mais acessível de se conseguir financiamento, o projeto foi dividido em várias etapas.

Vídeo que apresenta o projeto de restauração:

O primeiro aparato restaurado foi a chamada Casa Branca, que incluirá todo o arquivo que ajuda a contar a história da mineração e, em consequência, da região carbonífera. Ela foi entregue em janeiro de 2012, juntamente com o Telencentro e a Praça Digital. Na época, a proposta era que o Telecentro disponibilizasse acesso público e gratuito à internet para a comunidade da região. Para isso, a Companhia Riograndense de Mineração (CRM) viabilizou a reforma do espaço físico, já o suporte técnico, instalações e equipamentos ficaram sob responsabilidade da Procergs. Atualmente o Telecentro encontra-se parado, com cinco computadores em boas condições, que não estão sendo utilizados. Segundo Tassinari, quando saiu a última estagiária, já no governo Sartori, responsável por cuidar do espaço em 2015, não houve continuidade. A chamada Praça Digital, que fica ao redor de onde é a administração do local, ainda tem o wifi liberado.

A segunda etapa das obras de restauro do Museu Estadual do Carvão foi entregue em dezembro de 2014, quando foi restaurada a Casa Amarela – que será a sede administrativo do Museu – e realizada a reforma do segundo pavimento do prédio antigo da Usina, que também poderá servir para espaço de exposições. Ao mesmo tempo, também foi concluída a primeira parte do trabalho de documentação do Arquivo Histórico da Mineração. Agora em 2016, a Casa Amarela ainda não é utilizada como sede, servindo para uma parte do arquivo que não pôde ser recuperada devido ao mofo (essa documentação foi separada para não contaminar as outras). O assoalho da Usina está avariado devido à chuva que entra direto do telhado, que foi seriamente danificado por tempestades logo após a entrega. Na época, colocou-se uma lona que tinha a previsão de ficar apenas um ano. Já se passaram quase seis meses do prazo, e a mesma lona continua lá.

Os arquivos são quase que uma história à parte. Verdadeiro tesouro do projeto, pois ajudam a contar a história dos mineiros e da região carbonífera do Rio Grande do Sul, até pouco tempo não se sabia o que aconteceria com ele. Depois de meses sem retorno da fase 3 do processo, estava parado no Conselho Estadual de Cultura desde julho do ano passado. Atualmente encontra-se aprovada a sua captação, no valor de R$ 335.020,00, e segundo o Pró-Cultura RS. Conforme apuramos, o conselho aprovou a realização do projeto, mas com a redução de 30% do valor a ser captado. Isso determinou que a produtora fizesse a adequação da proposta. Segundo consta no texto do Pró-Cultura, no primeiro ano de trabalho do arquivo, foram identificadas mais de mil caixas de acervo que foram recolhidos e higienizados. No segundo ano de atividades, estes documentos sofreram uma limpeza profunda e restauração e agora vão ser classificados e colocados para consulta do público em geral.

Com trinta anos recém-completados, ainda não é possível afirmar que o Museu Estadual do Carvão cumpra o objetivo de resgatar a identidade local da região carbonífera, intimamente ligada a uma história muitas vezes trágica devido ao tipo de trabalho insalubre em que era baseado a mineração. Com a falta de uma política cultural de maior fomento na região e com a troca constante de planos de governo, alguns aparatos públicos culturais fora da capital acabam mais prejudicados que outros.

Um complexo cultural à espera do Estado 

Em 1986, durante o governo Collares, nascia o Museu do Carvão pelo decreto número 32.211. A ideia da criação de um museu que contasse a história da região carbonífera começou um pouco antes, em 1980, com uma visita de Antonio Augusto Fagundes, diretor do Museu Antropológico do Rio Grande do Sul na época, juntamente com Ione Carvalho Medeiros, Ana Mainieri e Maria Luiza Chaves Barcellos às ruínas da antiga Usina de Arroio dos Ratos. No ano de criação, 1986, os remanescentes da antiga usina já foram tombados como patrimônio histórico do Rio Grande do Sul. Em 1993, o restante da área também seguiu o mesmo caminho.

O ex-diretor Alexsandro Witkowski conta que uma de suas atividades favoritas era fazer a mediação da instituição para os alunos de colégios e de faculdades que visitavam o espaço. Historiador por formação, ele conheceu o espaço em 2004, depois se aprofundou sobre o complexo cultural em um trabalho acadêmico e, em 2011, começou a oficina do projeto “Uma luz no fim do túnel”, que começou a higienizar a documentação hoje já no arquivo. Até que em janeiro de 2012 foi empossado oficialmente como diretor da instituição, ficando até o dia 31 de agosto de 2015. Ele explica que na década de 50, começou a decadência da economia baseada na exploração do carvão, o Complexo carbonífero de Arroio dos Ratos foi desmantelado. “Só ficou funcionando a oficina e o almoxarifado, foram se desintegrando as estruturas e levando para Charqueadas o que era de interesse. Muita coisa foi distribuída para a população ou vendida”, diz. A paisagem e a ideia da natureza convivendo em harmonia que transmite o atual Complexo é uma visão moderna da gestão do ex-diretor Fábio Coutinho. “Ele foi diretor na época do governo Alceu Collares e graças a ele aconteceu a primeira requalificação do espaço. Inaugurou-se o prédio dos geradores, que lembra a usina do gasômetro. Ele foi recuperado partes para ser o local em que aconteceriam exposições. Eles também aterraram e fizeram uma elevação para ser um anfiteatro”, explica Witkowski.

Mesmo afastado do cargo, ele acompanha a trajetória do museu. Quando começou no trabalho, se mudou de vez para a cidade. “Eu me identificava com o espaço. É a História, não só aquela História que a gente aprende nos livros, mas realmente vivenciar esse espaço”, revela. Apesar das dificuldades, alguns eventos não pararam no local, como o escotismo, o coral adulto e a oficina de teatro infantil. A prefeitura de Arroio dos Ratos continua a ser maior parceira, ainda que tenham ocorridos alguns problemas no passado, como a tentativa da realização de eventos que não poderiam ser comportados no espaço, devido aos prédios tombados e à estrutura frágil das imensas galerias no subsolo. Ele aponta o Festival Estadual de Teatro Amador da Região Carbonífera como um dos bons exemplos de utilização, já que o evento acontece todo agosto e movimenta a região.

Uma das complicações é que, com a falta de um gestor, fica difícil o diálogo com outros órgãos públicas e a cobrança sobre atividades básicas como a manutenção. Witkowski afirma que tirava do próprio bolso para ajudar o museu em diversos momentos. “Me dói o coração ver como está, isso aqui era tudo limpo, a gente caminhava..pra lá e pra cá..Infelizmente a bomba queimou, na minha época tava funcionando, eu incomodava, chamava a Corsan. Eu pagava do bolso o conserto, comprava cano, Nesses quase quatro anos eu gastei em torno de quatro mil reais nisso, considero doação, nunca pensei duas vezes, fiz porque quis”, explica. Na área museológica, no primeiro andar da antiga Usina em que fica a exposição permanente quando chove também entra água em alguns dos objetos, como o painel de controle. Como dito anteriormente, a lona tenta ocupar o espaço do telhado danificado, mas o seu período de permanência já expirou.

Acredita-se que há no Museu do Carvão um potencial enorme para ser um Centro Cultural sofisticado, visto que é um complexo industrial que se transformou em complexo cultural. “Há um grande sítio arqueológico industrial aqui, se a gente cavar vai encontrar estruturas dos anos 30 e 40, com certeza”, diz o ex-diretor. A relação dos moradores da comunidade de Arroio dos Ratos com o museu também fica complicada com o semiabandono do museu, a visitação das escolas do município e de toda região diminuíram. Além disso os arquivos, que já poderiam estar sendo fontes de pesquisa para se entender cada vez mais a identidade da região e dos mineiros, ficaram muito tempo parados sem os devidos cuidados necessários.banner-indie-interna

Identidade a ser descoberta 

Foto histórica com vista geral do Poço e da Usina (Arquivo)
Foto histórica com vista geral do Poço e da Usina (Arquivo)

Há muitas histórias e pesquisas a serem descobertas no arquivo que repousa na Casa Branca. Um olhar mais aprofundado sobre o material pode revelar muito da vida do povo da região carbonífera, composta pelas cidades de São Jerônimo, Eldorado do Sul, Charqueadas, Minas do leão, Butiá e Arroio dos Ratos. A maioria dos documentos são relativos ao antigo Consórcio Administrador das Empresas de Mineração (Cadem), que deu origem à Copelmi. O Cadem foi o principal produtor de carvão no Brasil nas décadas de 30 e 40 e ergueu a maior parte da infraestrutura urbana de Arroio dos Ratos, Butiá e Charqueadas.

A documentação é organizada pela ONG Arquivistas sem Fronteiras, que integra o projeto aprovado pelo Conselho Estadual de Cultura. Eles descobriram que há documentos de 1895, mas apenas um livro. Na prática, a documentação começa em 1917 e vai até 1994, abarcando quase oitenta anos de história. Como todos os documentos foram misturados ao longo dos anos, eles tiveram que remontar a estruturar para que ela se tornasse orgânica, e possível de ser pesquisada. Então, foi realizado um longo estudo para entender de onde os documentos vieram, uma vez que foram muitas as empresas ao longo do tempo na região. Acabaram chegando a conclusão de que era possível delimitar o período de 1917 até 1936, com quatro diferentes Companhias (uma delas cuidava das estradas de ferro e as outras da Minas de Carvão). O outro período em que eles começariam a trabalhar era o de 1936 até 1964, que era administrado pelo CADEM, um grande consórcio que cuidava das empresas. Nesse momento, o projeto foi interrompido devido a falta de continuidade e demora na aprovação por parte do Conselho Estadual de Cultura. Atualmente há a documentação mais antiga (1917-1936) higienizada, organizada, e nas caixas padrão, só faltando etiquetar e a descrição. O último período, a documentação que engloba o ano de 1964 a 1994, que é da Copelmi, ainda não chegou a ser tocado, assim como a do período de 1936 até 1964. Agora, com a terceira fase do acervo finalmente passando no Conselho Estadual de Cultura, a perspectiva é que o trabalho possa ser retomado o quanto antes.

Até porque é complicado para uma documentação tão antiga ficar tanto tempo parada, sem as condições ideais. O processo citado acima, feito pela Arquivistas Sem Fronteiras – de organização, acondicionamento e descrição – começou em janeiro de 2015 e foi interrompido em agosto do mesmo ano. Um dos problemas é a umidade da região. Na época, foram comprados desumudificadores de ar, que não são utilizados desde a interrupção do projeto. Segundo a equipe da ONG, é necessário certo cuidado para utilizá-lo. Dependendo das condições climáticas e da estação do ano, o uso do equipamento deve ser mais ou menos intenso. É preciso cuidar também a força do próprio ar-condicionado. Outros perigos vão desde a combustão instantânea, é raro, mas pode acontecer em situações de papel em alto nível ácido e uma temperatura ambiente muito alta, até problemas como animais silvestres, dejetos de ratos.

Entre os documentos, há carteira de trabalho de menores de idade, que auxiliavam em serviços considerados mais “leves” dentro do processo da mineração. No documento, o aviso: “Serviços e locais de trabalhos proibidos ao menor: trabalho com chumbo, mercúrio, fósforo, cromo, arsênio, benzênio, hidrocarboneto, sulfeto de carbono, rádio, alcatrão, breu, betume, óleos minerais, sílica, flúor, etc”. Aliás, há também várias carteiras de trabalhos de adultos e, como a maioria eram analfabetos, a maior parte é assinada com o polegar. Outra forma de identificação era ano formato de uma chapa, em que eles usavam os números de registro. Isso é simbólico na comunidade local até hoje. Há, também, inclusive, um jornal que traz a notícia “Um ancião morto por um bonde”, em que o falecido é identificado pelo número de sua placa.

Uma das questões que poderão vir a ser estudadas é como o período ditatorial afetou a comunidade mineira. Através de documentos é possível perceber, segundo a equipe da ONG Arquivistas sem Fronteiras, que os comandos militares mandaram um ano do golpe militar de 1964 para as indústrias de potencial estratégico, e aí entra a mineração, um questionário pedindo informações sobre o tamanho da indústria, a capacidade de aumentar a produção caso haja uma guerra. Um ano depois disso, perto do Golpe, os comandos militares fazem um Ciclo de Estudo Superior da Guerra, e a empresa recebe o certificado de participação.

Os arquivos ajudam a identificar o crescimento de todas as cidades da região carbonífera e o custo que se levou para isso. Todas têm um perfil semelhante e foram se emancipando. Uma das partes mais interessantes, entretanto, é como um modo de trabalho exploratório acabou levando os mineiros a se organizarem e lutarem por seus direitos trabalhistas, marcando e criando uma forte identidade cultural. A documentação é a vida das minas de carvão que conta a história das pessoas no meio.

A criação das leis trabalhistas e o mito do mineiro 

Os arquivos também contam a história das leis trabalhistas, uma vez que os mineiros foram responsáveis por grandes greves que ajudaram na conquista de tais direitos, muito importantes até hoje. Felipe Figueiró Klovan fez sua dissertação de mestrado, intitulada “Sob o fardo do ouro negro: as experiências de exploração e resistência dos mineiros de carvão do Rio Grande do Sul na década de 1930”, de 2014, em que pesquisou os mineiros trabalhadores, as greves e as leis. Sua proposta foi também compreender a eclosão de greves entre os anos de 1933 e 1935. Ele conheceu o trabalho dos mineiros quando entrevistou vários para o Centro de História Oral do Rio Grande do Sul, órgão público que infelizmente existiu por pouco tempo durante o governo de Olívio Dutra. Confira:

Nonada – Como era o cotidiano dos mineiros?

Felipe Klovan – A mina funcionava em três turnos de 8 horas. Quando eles estão entrando nas minas, no início da década de 30, não tem as leis trabalhistas como a gente conhece hoje. Então, muitas vezes, eles trabalham 16 horas por dia dentro das minas. Tem coisas absurdas como o cara que passava o fim de semana inteiro dentro da mina: ele comia, dormia, fazia as suas necessidades lá. Isso acontecia, porque trabalhavam de segunda à sexta em chegando no final de semana, poderiam fazer uma hora extra. No início da década de 30, é tudo no lampião. No final tu já tem luz elétrica nas galerias. Em um buraco de extração de um por um metro e meio, esse cara vai andar rastejando, num lugar escuro, somente pela luz do lampião dele. Para respirar é outra coisa terrível, a temperatura era alta, em torno de 40 graus,e não tinha um sistema de ventilação, de aspirar as poeiras do subterrâneo, então esses caras também têm sérios problemas respiratórios de saúde. Se você entrou na mina e é um “furador”, ou seja, o cara que tá lá quebrando o carvão o tempo inteiro vai ter uma média de vida de mais sete anos. Essa média vai começar a crescer um pouquinho mais com o tempo: vai chegar aos 14. E tem que se lembrar que a maioria desses caras começa a trabalhar criança ainda.

Nonada – E o sistema de organização em que eles viviam?

Felipe Klovan – É um sistema de mina com vila operária. E era muito isolado, na época se demorava um dia para chegar até Porto Alegre vindo da região. A empresa cria equipes de propaganda que vão até as comunidades pobres “vender” o quanto era bom trabalhar na mina. Se conseguia ganhar uma diária de 14 mil réis. Para ter uma ideia, o operário mais bem pago em Porto Alegre trabalhava na Indústria Renner e ganhava uma média de 11 mil réis… Agora quando o operário entrava na mina, normalmente era uma pessoa que não tinha mais outra possibilidade na vida e sabia que ia lá fazer um trabalho duro e difícil. Então, ele já entrava lá sem ganhar nada e o salário era pago em vales e é aí que ele ficava preso. Normalmente ele gastava mais do que ele ganhava, porque tudo que era consumido era propriedade da própria mina: a casa era de propriedade da mina, ele pagava o padre que é da Igreja da empresa, jogava futebol no campinho da empresa, se divertia no clube da empresa mineradora, consumia na venda da empresa mineradora. Então eles criaram um sistema em que não se tem como fugir de lá, pois o operário sempre ia ter uma dívida gigantesca com a própria mina. E daí o que acontece? Ele está preso e não dá para viver, então quem vai trabalhar junto contigo? O teu filho, o teu filho de sete anos vai trabalhar contigo dentro da mina, então tem mineiro que começa a trabalhar com sete, ou oito anos.

Nonada – E como surge a luta dos operários nesse sentido?

Felipe Klovan – Na Era Vargas, se promete romper com o liberalismo da República Velha, ele promete criar leis de trabalho, promete fortalecer a classe média, promete um caráter social que proteja esses novos trabalhadores. O movimento operário quando vê isso, para de fazer greve e dá um tempo para ele trabalhar. Vem o primeiro ano e quase não se escuta falar em greve no Rio Grande do Sul, em 1930 e 1931 praticamente não acontece greve ou paralisação no movimento operário. E em 1932, o movimento operário começa a perder a paciência, muita gente morrendo no fundo da mina e as coisas não estão melhorando. Então, no final de 1932, início de 1933 eles vão fazer uma greve e o que é mais interessante dela é que eles não estão pedindo a criação de novas leis, porque o que sempre se pedia antes era a criação de novas leis trabalhistas. O que eles estão pedindo é que as leis sejam cumpridas. O governo provisório criou as leis, mas o patronato não respeitava as leis. Quem iniciou as greves na década de 1930 no Rio Grande do Sul foram os mineiros de Carvão. Teve uma notícia no Correio do Povo de 1933 dizendo que se “quebrava a calma do movimento mineiro do rio grande do sul”. Em São Paulo e no Rio de Janeiro aconteceu antes e foi mais violenta. Aqui os operários pararam as produções e queriam os cumprimentos das leis. Queriam que baixassem os preços dos produtos nas vendas das minas. Os preços dos produtos vendidos nas minas era quase o dobro dos de Porto Alegre. O salário alto era uma ilusão para atrair e cair na armadilha e nunca mais sair de lá.

Nonada – Quais foram os maiores momentos de exploração?

Felipe Klovan – Na época da Segunda Guerra Mundial, trabalhar na mineração era considerado servir a pátria, porque manter a indústria funcionando era garantir os pracinhas brasileiros na guerra. E o que acontecia: se faltar ao emprego, é tratado como desertor. Então, não se podia fazer greve, se fizesse seria condenado como soldado. A grande sacada deles foi que eram as mulheres que iam para as minas e se eles fossem para lá, as mulheres agrediam os mineiros. Só que era complicado, imagina, era uma sociedade totalmente machista. O mineiro se constrói com uma identidade de força, masculinidade, uma espécie de herói, que luta contra a natureza, ele é vitorioso por estar vivo e trazer sustento para dentro de casa. Em uma das greves, eles pediram uma embarcação-ambulância na região, porque os barcos das minas estavam todos voltados para a produção, e nem isso os caras conseguiram.

Nonada – O que eles conseguiram de fato?

Felipe Klovan – Conseguiram alguma coisa, mas com muita luta, a muito custo. De 1933 a 1934, quase todas as greves não deram quase nada de efeito. Então, eles pediram para reduzir a jornada de trabalho, aumentar salário e para ter reduzir o preço da venda. E a empresa, o que fez? Reduziu, mas limitou os produtos na venda a quase zero. É algo como: “tá ruim? eu posso tornar pior, para você não reclamar mais e ver como é não ter outro lugar para comprar”. E mesmo que tivesse outro lugar, teria que aceitar vale e não dinheiro, porque esse cara não tinha salário, ele ganhava tudo em vale. A dívida dele ficava tão grande que todo salário dele era descontado, então ele recebia vale de uma dívida futura que ele construía. Tem um mineiro que eu consegui acompanhar toda a trajetória de vida da década de 30 e 40. Às vezes ele tinha uma dívida que era três vezes o salário dele. Então para saldar a dívida, a mina empresta dinheiro para o operário pagar a dívida com ela mesmo, mas agora cobrando juros, porque antes os vales não tinham juros. Agora, com a dívida, eles passam a ter. Cria-se instrumentos sob instrumento de dominação sob os caras. É um processo totalmente controlador de dominação.

Nonada – Você conversou com vários mineiros antigos. Quais eram as histórias e sentimentos deles sobre o passado?

Felipe Klovan – Pensa só, era uma sociedade em que as pessoas viviam, respiravam e pensavam no trabalho. E o trabalho deles marcava a carne e o psicológico. A carne devido à picareta, aos carrinhos, à força. O psicológico, porque ele via o companheiro morrendo ao lado dele, via o teto desabando, esmagado da cintura para baixo, ainda com meia hora de vida, implorando para que ele possa dar as últimas palavras para a sua família. A morte é cotidiana, a morte é ordinária para eles. Para nós a morte é extraordinária, temos uma série de tabus que nos afastam da morte. Neles, nada afasta, tudo leva à morte, eles convivem com ela. Eles descem pensando será que eu vou voltar hoje? Por outro lado, esses caras criaram uns instrumentos de sublimação dessa situação muito interessantes. Então, por exemplo, ninguém tinha nome dentro das minas. Todos tinham apelidos. Por que isso? Porque tem um rito de passagem, quando se entra na mina a primeira vez, a primeira coisa que acontece é ser alvo de chacota de todos. Então, eles ganhavam um apelido nesse momento, faziam uma série de brincadeiras e isso ameniza aquele espaço dramático. E daí quando eu perguntava se havia saudade daquela época, eles respondiam que morriam de saudade. E eu estranhava muito, depois entendi. A saudade era do companheirismo, porque eles conviviam muito mais, eles tinham que criar um um vínculo tão forte, que eles se entendiam como irmãos. Eles tinham mais laços afetivos com companheiros de trabalho do que com um pai, com a esposa, com um filho. Eles passavam o dia inteiro dentro daquela mina. E por que esse vínculo tinha que ser tão forte? Aconteceu alguma coisa eles iam depender muito um do outro. Então, a sobrevivência está condicionada a esse sistema de companheirismo.

Nonada – E hoje em dia, como a comunidade mineira reflete isso?

Felipe Klovan – Tem o encontro da saudade mineira, é em Arroio dos Ratos. Vai todo mundo que era mineiro para lá. O mais legal é que não vai só quem era minero, mas os filhos de minero e filhos de 20 anos, só que esses filhos de vinte anos não chegaram a trabalhar na mina. Só que eles reproduzem tudo como se eles tivessem vivido aquilo. Uma vez eu tava conversando com um guri lá e ele me contando que na mina era assim, era assado e tal, só que ele nunca tinha trabalhado lá. O pai e o avô sim. E ele contando como se ele tivesse, porque a memória era tão dramática, o trauma é tão forte na cabeça deles que quando eles transmitem isso para família é tão forte e tão pesado que até quem não viveu aquilo, reproduz, é a memória por tabela.

TB-1099 - FAC 662 - Fm 160 - Carregamento de carvão nos carros TB-1096A - FAC 659 - Fm 157 - Mineiros esperando da troca de turno

 

 

 

 

 

 

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Depoimento dos mineiros 

Conseguimos as entrevistas com os mineiros que foram realizadas na época do Centro de HIstória Oral do Rio Grande do Sul. Os arquivos foram gentilmente cedidos pelo Felipe Klovan. Selecionamos alguns trechos. 

Sobre a Vila Operária:

Quando conseguiam abrir um poço, surgia uma vila operária, com o pessoal que trabalhava ali. E não se pagava nada de aluguel, A manutenção era feita pela própria companhia, tinha tudo, desde a esquadrilha, tinha tudo quanto era tipo de profissional para qualquer coisa. Os chefes tinham as casas deles, eram casas boas. Ainda hoje, são as casas deles. – Orlando Ventura, data da entrevista: junho de 2002

Sobre Greves:

João Ramos Gomes – Teve em quarenta e seis uma grande greve. Tentaram apagar o fogo das caldeiras. Houve repressão até do exército. Saímos vitoriosos, pois estava sendo executada a lei do salário mínimo na época – João Ramos Gomes , data da entrevista: junho de 2002

Sobre o Cotidiano de trabalho:

O turno de trabalho era de oito horas. Por exemplo: das sete horas às três, das três da tarde às onze da noite, das onze às sete da manhã. Esses quatro turnos que eu estou falando foi no período de seis horas de trabalho, que anteriormente eram oito horas, em vinte e quatro horas eram três turnos. O trabalho era perigosíssimo. O serviço mais perigoso que existe no mundo. Eu trabalhava nas galerias, muitas vezes caiam pedras e matavam operários, pois não havia segurança de maneira que chegasse às frentes que estavam extraindo carvão. Não podiam escorar na mesma hora e às vezes caiam pedra. Aconteciam mortes, mas não era muito seguido. Usávamos boné, pois o suador, lá embaixo, é imenso. Molhava a roupa toda. Então, o boné tem aquelas abas que colocávamos o cigarro, o arame para desentupir bico de lampião; tudo era colocada ali para não molhar – Romério Martins de Ávilla, data da entrevista: junho de 2002

Problemas de saúde:

Eu me aposentei por invalidez. Eu tive uma lesão no coração; arriou três milímetros e meio. Eu tenho carvão no pulmão; lá no hospital, querem me operar, mas se retirar o carvão, eles me matam – Ramiro dos Santos, data da entrevista: junho de 2002

O por quê do fim das minas (Arroio dos Ratos):

A mina de Arroio dos Ratos acabou porque eles erraram a massa de carvão e acabaram abrindo outra em Charqueadas. Os chefes viam o erro, a companhia tinha que ter aplainado mais, ainda tem muito carvão. Mas estava tudo errado, a pessoa ia subindo, subindo e perdia a vez do carvão. Então, chegava lá, dava na pedra com o martelo e caía tudo. Ficou muito carvão perdido. Eles erraram a massa, compreende? Foi um processo mal trabalhado, não é que o carvão não tivesse qualidade. Se pegar a massa certinha, é fácil, o carvão vai no meio, às vezes ele sobe, mas depois endireita, e a pedra acompanha por cima e por baixo, conforme a pedra  o carvão está no meio, vai sempre, sempre. É difícil não ter carvão. Eles poderiam ir da que até Faxinal tirando, mas pararam logo aí, nas fazendas velhas, porque não souberam tocar. Então, em cima do veio é pedra, embaixo também ,a gente não podia passar da pedra , se não estragava. Para dar o tiro, não podia tocar na pedra, se não a galeria desmoronava. E eles foram tirando para cima, foram para cima. Aí deram em uma pedra. Parou porque eles não iam sair lá do cerro na grama – Mathias Sutel, data da entrevista: junho de 2002  

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Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.
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