Referência da poesia contemporânea no Rio Grande do Sul, Ronald Augusto tem mais de 30 anos de poemas publicados. É autor de inúmeras obras, entre elas Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012) e À Ipásia que o Espera (2017). O autor, que nasceu em Rio Grande em 1961, é também um dos principais estudiosos de poesia negra no país, acompanhando a geração de escritores negros que começam a despontar na década de 1980 e também o legado dos escritores invisibilizados na história. O escritor lança em novembro a publicação artesanal Subir ao Mural, pela Editora Caseira. Além de poeta e ensaísta, ele escreve também em seu blog Poesia-Pau e é articulista do Sul 21.
Conversamos com o escritor sobre assuntos variados em um café no centro de Porto Alegre, da poesia aos desafios da arte no Brasil, em um sentido mais amplo. A (falta de) participação de autores negros em feiras literárias e a identidade construída por processos hegemônicos no Rio Grande do Sul também foram destaques da prosa. Confira abaixo:
Nonada – Você já publicou diversos livros na carreira em editoras comerciais também. Agora prepara o lançamento de Subir ao Mural, que vai ter produção artesanal. Por que essa escolha por uma editora independente?
Ronald Augusto – De tempos em tempos, eu sempre faço alguma coisa retomando aquilo que eu fazia lá no início, em 1983. Eu gosto de fazer isso, em parte porque o mercado da poesia é sempre pequeno, então isso dá margem para quem tem algum interesse editorial de fazer livros diferentes, de não se preocupar com a tiragem nem com a venda massiva. As pessoas têm mania de dizer que a poesia não vende. Claro que, comparado aos romances, parece que não tem mercado. Ele existe, só é reduzido. Então eu gosto de fazer livros diferentes e fico entusiasmado quando vejo editoras dispostas a bancar esse tipo de publicação. De dez anos para cá, isso cresceu muito e tem muitas pequenas editoras espalhadas pelo Brasil, como a Patuá, que é uma espécie de bastião das pequenas editoras. Mesmo as grandes editoras já têm projetos com menores tiragens, edições especiais.
Nonada – Que autores e autoras são tuas principais referências?
Ronald – O Manuel Bandeira é o maior poeta de todos os tempos para mim. Meu repertório ainda é bastante feito de homens, João Cabral de Melo Neto, Drummond, Dante. E aqui no Rio grande do Sul tem um poeta que gosto muito, o Oliveira Silveira que, além de ser negro e de sempre ter tido uma preocupação política, é um grande poeta. Fiquei muito feliz de organizar a obra dele [no livro Oliveira Silveira: Obra reunida (IEL, 2012)].
Entre as mulheres poetas, eu gosto muito da Orides Fontela e, entre as contemporâneas, da Leila Guenther, que não é muito conhecida. Em Porto Alegre, nos últimos 10 anos, eu comecei a conhecer, através das minhas oficinas, várias poetas produzindo. Ainda quero escrever sobre isso, me indagando por que, nesses últimos dez anos, do meu ponto-de-vista, quem está produzindo a poesia mais legal são as mulheres? Antes eu só via homens, o Silvestrin, o Grando… de cinco, dez anos para cá, tem a Eliane Marques, que ganhou o Açorianos de melhor livro de poemas, tem a Juliana Meira, a Sandra Santos, a Denise Freitas, a Deise Beier. E, nesse meio tempo os homens continuaram publicando, mas acho mais interessante a produção delas.
Nonada – Como foi teu primeiro encontro com a escrita?
Ronald – Foi um início parecido com o de muitos poetas. Comecei porque estava com uma paixonite quando era moleque, aos 14, 15 anos. Depois, teve um momento que eu tinha que fazer ficha de leitura e peguei um livro do Erico Verissimo e um amigo meu pegou um livro de poemas. Uma ficha de leituras não funciona na poesia, porque pergunta quem é o personagem principal, o resumo da história etc. Como eu já tinha lido o Erico Verissimo, peguei o livro do meu amigo. Era Manuel Bandeira. Eu dei sorte. Ali eu vi que a poesia era mais do que paixonite, era arte.
Nonada – As festas e feiras literárias brasileiras aparentemente têm avançado no sentido de aumentar a diversidade. Você tem vivenciado isso nos eventos que participa? Qual seria o próximo passo nesta caminhada?
Ronald – É complicado. Outro dia, a gente estava na Jornada [Nacional de Literatura, em Passo Fundo] em um seminário sobre a cena da literatura no Rio grande do Sul, e a Lilian Rocha falou em duas etapas: uma etapa de abrir espaços e outra de permanência. Talvez uma próxima etapa seja que se naturalize a convivência com a diversidade de produção textual, e que se convide com naturalidade outros escritores. Ainda é complicado falar sobre esse tipo de coisa. Recentemente, eu fiz um post no Facebook sobre a Coleção Folha Mulheres na Literatura, falando que só tem mulheres brancas na coleção. Aí uma poeta ficou irritada com meu post, disse que “não importa se é um extraterrestre ou uma planta, o que importa é a literatura”. Respondi para ela que as determinações sociais estão sempre presentes no texto, direta ou indiretamente, de forma mais consciente ou inconsciente, mas estão ali. A ideologia está no texto, só temos que saber lidar com consciência com esses reflexos que aparecem no texto.
Geralmente, quem invoca esse conceito da “qualidade literária” – que é uma tradução para “torre de marfim” – quando se refere à produção de segmentos intelectuais e artísticos que historicamente foram sempre desrespeitados, no caso dos negros, homossexuais, mulheres, na verdade não conhece 10% dessa produção e já parte do princípio que não tem qualidade. Acham que eles vão entrar por “cotas”, mas desconsideram que há uma qualidade. E para se falar em termos de qualidade é preciso ler bastante, é preciso incorporar uma categoria da quantidade, da diversidade, então acho que isso ainda vai pesar na questão das feiras e eventos literários darem atenção para a diversidade.
Mas eu digo que é complicado também porque eu tenho medo que o acolhimento e o reconhecimento desses autores seja mais uma questão de [reconhecer apenas o] ativismo. Tudo bem, eu acho que ativismo é importante, mas os textos têm que se sustentar para além do ativismo, porque a gente espera que, um dia, essas causas deixem de ser necessárias. Eu noto muito isso, porque me convidam para eventos dizendo que sou “poeta e ativista”, quando não sou ativista, sou escritor.
Nonada – Mas tu te define como um artista político?
Ronald – Eu me vejo como um artista bastante interessado em trabalhar a linguagem. No meu ponto de vista, quando o escritor trabalha a linguagem por dentro, ele acaba tocando em questões ideológicas, porque isso também é tocar na questão de sentidos e conceitos. Tem um poema do José Paulo Paes que brinca com isso, porque parece que ele só está fazendo um jogo de linguagem, mas na verdade está discutindo questões ideológicas. São dois versos:
Lembrete Cívico
Homem Público
Mulher Pública
O qualificativo “público” para o homem quer dizer um político, para a mulher é uma prostituta, meretriz. Então, se tu pensa a linguagem radicalmente, conceitualmente, ela acaba sendo política, ela acaba sendo perturbadora. Eu me vejo assim, mas não me importo se disserem que eu tenho uma faceta política também.
Nonada – Qual é o papel das academias literárias hoje?
Ronald – Para mim, elas cumprem um papel um pouco anacrônico, fazem parte de um visão que se tinha da literatura como um “sorriso da sociedade”, expressão já utilizada por outros autores para definir a arte como uma coisa decorativa, uma espécie de sala de estar. Ainda hoje temos ecos disso, com um tipo de literatura que não fede nem cheira, é só frívola. Eu até brinquei esses dias, estava vendo imagens de academias de pequenas cidades do interior, e os caras aparecem com umas roupas horrorosas, cafonas. As academias não cumprem uma função relevante, nem social nem política. São lugares onde alguns pequenos e medíocres escritores se reúnem para se prestigiar mutuamente, por isso fico triste quando escritores que admiro querem entrar para as academias. Na Academia Brasileira de Letras é assim também, as pessoas querem entrar por uma espécie de glamour.
Nonada – Nos últimos anos, têm surgido vários relatos que antes eram silenciados no mundo acadêmico, com relação a preconceito e assédio de etnia e de gênero também. Na área de Letras, por exemplo, isso tem sido bem marcante com a Crítica Feminista. Você acha que isso tem provocado mudanças concretas no sistema?
Ronald – Acho que sim e acho que parte do prestígio que a literatura negra atingiu nos últimos anos se deve também, em alguma medida, ao interesse da academia. A produção dos autores que se assumem como negros e começam a publicar já tem mais de 30 anos. Depois que as pesquisas acadêmicas começaram a ser feitas, a gente pode retroagir até o século XVIII. Mas da década de 80 para cá, essa produção está muito grande, e começou como um movimento. Muitos escritores dessa geração, como Cuti, Oliveira Silveira, Oswaldo de Camargo, deram a primeira munição para os acadêmicos começarem a ter interesse. E de lá pra cá a produção foi crescendo, até no exterior se estuda a literatura negra do Brasil. Um exemplo robusto desse interesse e da repercussão disso em termos de produção teórica é a antologia Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica, composta por 4 volumes, que a Universidade Federal de Minas Gerais editou, com autores do século XVIII até a contemporaneidade.
Minha única dúvida é até que ponto essa produção, na medida em que ela dá prestígio, pode ser aos poucos uma espécie de espaço de consagração e de limite, deixando a produção presa. Será que, para eu ganhar espaço, eu tenho que continuar me reivindicando como autor negro e me posicionando dentro desse nicho? Já que literatura é arte, ela tem que estar sempre a frente, não a reboque da crítica. Se os autores mudarem a sua forma de produzir, a crítica vai ter que acompanhar, propor outros modelos interpretativos. Atualmente, a academia está demarcando o que é e o que não é literatura negra. A gente não pode ficar refém desse prestígio.
Nonada – Alguns poemas teus falam sobre a branquitude, um termo que deveria ser infinitamente mais debatido do que é atualmente. Qual é o papel do branco na luta antirracista e por que o tema não aparece nas obras de autores brancos?
Ronald – O Sartre disse uma coisa muito legal, acho que foi no prefácio que ele fez de um livro de poetas da negritude francesa. Ele disse que o branco gozou do privilégio, durante dois mil anos, de nunca se ver. O branco sempre se colocou na posição de observar tudo como um objeto a partir do interesse dele. Quando eu falo sobre branquitude é porque os brancos também têm que se entender socialmente, entender seus privilégios na sociedade, como é muito mais fácil para quem é branco até entrar no banco do que para quem é negro. É só isso.
Tem gente que diz que estou sendo racista. Não é racismo, é um convite. Para a mudança racial no Brasil realmente acontecer, para isso ser debatido com mais cuidado, todo mundo tem que se reconhecer, nas suas virtudes e nos seus vícios. Quando a gente fala em racismo, parece que é só um problema dos negros. Não, é problema de todos. Assim como quando se fala em machismo, isso também é problema dos homens, desde que fiquem quietos, mas eles também têm que se dar conta. É nesse sentido que eu falo em branquitude e também em branquesia, que é a consciência da hegemonia e dos privilégios que essa hegemonia dá para quem é branco.
Nonada – Por que ainda não conseguimos romper a bolha do provincianismo gaúcho na cultura e no jornalismo?
Ronald – Tem gente que diz que pensar cosmopolitamente é uma forma de provincianismo. Eu acho que pode haver um provincianismo pejorativo e outro mais positivo, que é o de olhar para o seu lugar e transformar ele em algo fora do comum. Mas aqui, eu acho que é um pouco essa coisa da história do Rio Grande do Sul, um estado que tentou ficar independente e criar um país próprio e não conseguiu, isso gerou esse orgulho excessivo, de achar que a gente sustenta os outros estados.
Ao mesmo tempo, o gauchismo é algo inventado. O Richard Serraria escreveu um texto sobre isso outro dia. Parece que na década de 1940, estavam fazendo pesquisas etnográficas musicais aqui no estado e teve um memorando interno dizendo que os registros das produções culturais daqui ficassem restritos aos aspectos açorianos. O resto era para deixar pra depois. Então de uma certa maneira, a cultura daqui é inventada. Se inventou que a nossa cultura é essa, o Jornal do Almoço todo dia tem alguma coisa de CTG. Aí a nossa cultura afro-gaúcha, ameríndia, que são muito fortes, não aparecem. O provincianismo é uma forma de, contra tudo e contra todos, tornar hegemônica uma cultura que é artificial.
E isso não acontece só aqui. Eu estive em Lages para participar do Salão do Livro, e um dos organizadores me disse que eu ia falar para um público branco, de descendentes italianos e alemães. Quando fui falar, o público era só de negros. Para ele, a cidade não tem negros, ele não quer enxergar isso.
Nonada – Mas com a militância do movimento negro, no sentido cultural, isso tem avançado no estado?
Ronald – Tem avançado. É uma conquista ter o Manoel Soares e agora a Carol Anchieta no Jornal do Almoço, e ela está lá porque eles querem que ela leve esse tipo de informação para a pauta. Então isso está começando a andar, claro que existe o capitalismo e a audiência nisso, mas temos que saber lidar com essas portas que se abrem.
Nós temos o SSopapo Poético, um lugar que a comunidade negra há tempos não tinha aqui em Porto Alegre. Para mim, o sopapo poético, mais do que um encontro de poesia, é um encontro afetivo. Isso havia se perdido, porque na década de 1980, o Oliveira Silveira e outros se reuniam no Mercado Público, que naquela época era um lugar de convivência, de várias associações comunitárias, onde sempre havia sarau, roda de poesia. E o Sopapo Poético recuperou isso.
Cada vez mais a sociedade aceita essas lutas e reivindicações sem trauma. Na época das cotas houve esse trauma de acharem que o Brasil ia se dividir. Não teve trauma, não teve guerra inter-racial. Agora o trauma é a questão da homossexualidade e de gênero. Do ponto de vista deles, é tudo algo bizarro, essa é a nova neurose. Jamais pensei que isso fosse retornar a esse ponto. Mas tudo é questão de avanços e refluxos. No ano passado, quando levantei a questão de quantos autores negros estariam na Feira do Livro de Porto Alegre, deu aquele debate. Esse ano estou fazendo outras coisas, mas eu sei pelo Jeferson [Tenório, escritor negro que fez um post sobre atividades recusadas pela administração do evento], a feira está com a mesma posição, respostas atravessadas – pelo menos a parte adulta, porque a parte infanto-juvenil sempre nos respondeu. Então temos que continuar lutando.
Nonada – A classe artística tem meios para vencer essa disputa de narrativas com o avanço conservador e as ações de censura?
Ronald – Todo artista precisa ter bastante consciência da linguagem que ele está usando, porque senão o discurso pode ser muito legal e bacana, mas pode ficar conservador, careta. Tem uma frase complexa do Maiakovski que eu gosto: “Não há arte revolucionária sem forma revolucionária”. Nesse momento, eu vejo uma vontade muito grande – que é importante -, de dizer as coisas, de levar uma mensagem de transformação, que tem que começar na linguagem. Mas isso só funciona se a recepção não for imbecil, se entender as rupturas de linguagem que fazem parte da dimensão artística. Arte que não propõe rupturas, incômodos, desafios, não tem sentido. Com essa história de dizerem que artista é pedófilo, essa celeuma toda, um monte de gente começou a dizer o que é arte e o que não é, se manifestar nas redes sociais, quando nunca pensaram sobre isso. É preciso ter essa interação entre artista e sociedade, porque a arte, de uns tempos para cá, está mesmo mais afastada do senso comum.
Nonada – Qual é a função do Estado em relação à cultura?
Ronald – O Brasil tem muitas lacunas sociais e econômicas, então o Estado não pode saltar fora na sua responsabilidade com a educação, com a saúde e com a cultura. Se o Brasil fosse um país saudável economicamente, isso poderia ser discutido com algum cuidado. Por exemplo, em uma feira de agronegócio esses tempos, as atrações musicais eram só sertanejo, não tinha nenhum artista que fizesse outro tipo de música. E o papel do Estado é fazer políticas que estimulem essa outra produção. Mas aí vem um louco como o Sartori e acaba com a Fundação Piratini, quando deveria incentivar a diversidade.
Nonada – Como tu vê o jornalismo cultural hoje em dia, em comparação ao início da tua carreira?
Ronald – Em relação aos jornais, tem uma mudança, mas acho que muito tímida ainda. Passamos o final da década de 1980 e toda a década de 1990 sem nada. Agora o Juremir e o Gonzaga recuperaram o Caderno de Sábado [do Correio do Povo], mas acho que é pouco espaço ainda. Tem gente que diz que esses cadernos de cultura vão acabar, vão ficar mais cadernos de comportamento, algo assim. Mas o debate autêntico cultural está em outras plataformas, está na internet. Tem tanta coisa lá que eu não consigo me atualizar, minha geração pensa muito ainda só na mídia impressa. A gente sempre fica pensando como estão as coisas na tv e no jornal. Na verdade, não estão, mas também não precisamos depender disso. Eu mesmo escrevo para o Sul 21. E esses sites acompanharam essa explosão de participação através das redes, na interação, no diálogo.
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leitor ulisses
homero (
e) m
pessoa
ninguém
está de posse do
pós
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mono o
preto a quem a tribo branca
palma após lama
faz mercê
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cohab pestano
onde é pelotas, afinal de contas?
uns concordam que é no laranjal.
ou que é ali no mercado e suas imediações
a biblioteca o quindim de nozes.
os doces negros dos negros de pelotas
muitos juram que é onde pelotas.
têm aqueles que vão convencidos
de que pelotas é algo dos ramil.
de que pelotas agora é outra
que é outra onde angélica freitas.
onde é giba giba, afinal, pelotas?
é ainda pelotas ao final de tantas?
pelotas até cohab pestano
onde extremo o aeroporto é pelotas.
esgoto a céu aberto
onde o pestano a contragosto é pelotas.
onde é o povo negro no pestano
a poeira das ruas de terra e chão.
o ir e vir do povo do pestano
onde afinal é pelotas, a que eu sei.