Luedji Luna: “A minha existência, mais do que minha música, é um instrumento de luta”

Foto: Tássia Nascimento/divulgação

Eu sou a minha própria embarcação

Sou minha própria sorte”

Essa é uma das estrofes da canção “Um corpo no mundo”, da cantora e compositora baiana Luedji Luna. A música nomeia o álbum de estreia, trabalho esse que é composto por 11 faixas que unem ritmos do congo e do batá cubano com o samba, o reggae e o batuque baiano.

Essa mistura sonora explica-se pelo fato de o disco levar aos ouvintes uma África ressignificada e torna-se ainda mais compreensível quando vê-se que a própria banda é resultado de um misto de culturas e saberes. O queniano Kato Change é o responsável pelas guitarras; o paulista e filho de congoleses François Muleka fica no violão; o cubano, Aniel Somellian, no baixo elétrico e acústico; o baiano Rudson Daniel de Salvador, na percussão; e o sueco radicado na Bahia Sebastian Notini, também na percussão. Soma-se a essa junção a formação musical de Luedji Luna que passa por nomes como Milton Nascimento, Luiz Melodia e Djavan.

O contato da artista com a música deu-se ainda na infância quando o pai reunia-se com amigos, aos finais de semana, para tocar e cantar clássicos da MPB. Todas essas referências chegam de maneira indireta na composição da sonoridade do disco, que busca levar ao público a África diaspórica que se reinventou fora do continente, diz a cantora.

Já tracks tensionam questões relacionadas à identidade e ao pertencimento, mas Luedji afirma que o processo de composição das canções é muito fluido e que, nesse álbum, estão presentes também outros questionamentos que a inquietam, como o genocídio da juventude negra. “De modo geral, minhas canções são minha leitura sobre a vida e de todo sentimento que ela possa abarcar, do amor à dor.”

Se a música sempre esteve presente na vida da cantora e compositora, a escrita surgiu aos poucos e como ferramenta para romper silêncios ainda na adolescência. Aos 17 anos, a primeira canção foi composta, mas foi aos 25 que ela começou a cursar as aulas na Escola Baiana de Canto Popular e iniciou sua migração para o mundo da música e a se apresentar em recitais de Salvador, deixando a carreira como advogada em segundo plano.

Entretanto, a sistêmica invisibilização de artistas negros no mercado fonográfico foi um dos primeiros desafios enfrentados por Luedji, que não conseguia encontrar referências de compositoras negras que não estivessem restritas somente à produção de samba. “Ver a Ellen Oléria ganhar um programa de televisão me serviu de alento e me deu fôlego. Entretanto, eu ainda vivo as dificuldades comuns a essa carreira, aliada ao desafio de abrir um espaço na música popular brasileira no sentido do reconhecimento das vozes e dos discursos de mulheres negras”, diz a artista.

“A questão racial, no Brasil, é de responsabilidade de negros e brancos”

Fruto de um casal que se conheceu dentro da militância negra de Salvador, Luedji recebeu dos pais a responsabilidade com a história de luta contra o racismo. “O que quer que eu tivesse escolhido fazer na vida traria esse viés. A minha existência, mais do que minha música, é um instrumento de luta!”, afirma. Ao mesmo tempo em que se coloca no combate antirracista, a artista chama a população negra e não-negra para para a discussão desse problema sistêmico e genocida que é o racismo, visto que dos 30 mil jovens assassinados, em 2012, entre 15 a 29 anos, 77% eram negros. Ruir os pilares da falaciosa democracia racial colocando em pauta a discussão desse tema é urgente, segundo a cantora. “Enquanto a gente não tiver o entendimento que esse [o racismo] é um problema emergencial, não avançaremos, é preciso que haja uma mudança de mentalidade, a questão racial no Brasil é de responsabilidade de negros e brancos!”

Ao tomar as rédeas da própria narrativa, Luedji fala sobre si, da sua vivência única e singular, mostra o seu olhar sobre o mundo, a sua perspectiva e desconstrói a ideia de homogeneidade e planificação do que é ser mulher negra. Com suas músicas, ela mostra a diversidade do que é ser e viver em um corpo negro mostrando que o racismo atinge todas as pessoas negras, mas que umas apresentam maior grau de passabilidade e de mobilidade social do que outras. As canções ora dançantes, ora densas nos guiam para um lugar de conforto, como em “Banho de folhas”, mas não de cura. “As marcas deixadas pelo racismo são profundas, dolorosas, e traumáticas demais, minha música pode ser alento, alívio, mas a cura da população negra é o fim do racismo”, diz Luedji Luna.

A canção “Iodo”, seguida da poesia “Now Frágil”, por exemplo, ambas de autoria da cantora, compositora e poeta Tatiana Nascimento reforçam a denúncia feita há anos pelo movimento negro sobre o extermínio da população preta brasileira. Luedji entende que esse silenciamento geral em relação a esse genocídio diário faz parte de um pressuposto calcado em privilégios. “O silêncio parte da seguinte lógica: enquanto essa violência não me atinge, não atinge os meu privilégios, não me importa, o racismo também se constitui da destituição da humanidade das pessoas negras, isso faz parte do imaginário da população, não dá pra ter empatia com o que não é humano”, reitera a cantora e compositora.

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Apaixonada por literatura. Ama escrever sobre o protagonismo negro nos mais diversos campos de conhecimento.
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