Teresa Cárdenas: griot dos princípios e finais

por Priscila Pasko
Foto: ABCárdenas/divulgação

Os mais triviais argumentos não escapam da narração envolvente de Teresa Cárdenas. Seja durante uma conversa, seja em sua escrita, antes de qualquer conclusão hipoteticamente óbvia, a escritora cubana conduz o outro, não por caminhos inusitados, mas autênticos. A sua linha de raciocínio nasce das memórias, cresce pelas observações e se sustenta na literatura.

Com quase dez livros publicados desde o início de sua carreira [Cartas ao cielo, 1997), a escritora cubana já foi traduzida para o Canadá, Estados Unidos, Venezuela, Coreia do Sul, Suécia, Alemanha, Espanha e República Dominicana. Recebeu o Prêmio Casa de las Américas, Prêmio David e o Prêmio Nacional da Crítica Literária, todos em Cuba.

No Brasil, Teresa lançou duas obras pela editora Pallas: Cartas para a minha mãe (2010) e Cachorro Velho (2010). No primeiro, um relato em primeira pessoa de uma menina pré-adolescente, que escreve em cartas sobre as transformações de seu corpo, a solidão, os medos e as suas pequenas alegrias a uma mãe já morta. Cachorro velho, por sua vez, conta, em terceira pessoa, a história do velho escravo de um engenho de açúcar. Personagem complexo, ele recorda a sua juventude, os castigos, as perdas e os amores. Ele se encontra em uma fase madura o bastante para não se iludir com esperanças, mas de ainda apostar em algumas.

E, em breve, Teresa vem ao Brasil lançar mais um romance pela mesma editora de seus publicados no País: Mãe sereia, relato da travessia do primeiro navio negreiro em Cuba – que contará com ilustrações da argentina Vanina Starkoff.

Nesta entrevista, resultado de conversas por e-mail, Teresa fala a respeito de sua produção; aponta a hipocrisia que cerca crianças e jovens leitores; contextualiza o cenário literário em Cuba e conta sobre o novo romance que está escrevendo – o primeiro que será publicado fora de Cuba e em outro idioma – chamado Casagrande, ainda sem previsão de publicação. Boa leitura.

Veredas – Como executa a sua pesquisa (de leituras ou escutas) das mitologias afrocubanas que estão presentes em suas obras? De que forma procura reinventá-las nos livros?

Cárdenas – Interessante esta pergunta. Como respondi anteriormente, sou o resultado do que li e muitas coisas que experimentei da infância à adolescência. Venho de uma família crente, como dissemos, “à sua maneira”. Acreditava-se nos orixás e nos espíritos, as oferendas eram colocadas atrás da porta e acima da janelaHavia imagens de santos católicos com flores e velas. E, muitas vezes, quando as dificuldades eram grandes, não se acreditava em nada e mandávamos ao diabo todas as coisas.

Lembro-me de que minha avó colocou um Cristo virado para baixo, como um castigo, porque nenhum desejo foi atendido. E, nesse ambiente, onde os deuses a quem se pediam formavam parte da família, e em muitas ocasiões estavam mais próximos que primos e tios, não os vimos como algo divino, inacessível. Eles eram nossos cúmplices em tudo. Então, quando escrevo, isso surge de maneira inconsciente, não é algo que me proponho, é algo que está aí e é maior que uma montanha, não pode ser evitado.

Ainda hoje, quando minha fé já é outra, não evito estas questões. Pelo contrário, eu os reinvento, tento explicar algumas coisas que não entendo, respondendo muitas perguntas através de um conto ou um poema. Questões que vêm comigo desde a infância. Me contavam dos orixás e o que representavam, mas só lá em cima. Minha imaginação volátil necessitava de mais. Então comecei a perguntar que tal se o sol nascesse de um coco, o que aconteceria se a morte já não quisesse ser mais, e se o mar voasse e os peixes vivessem no ar, se poderia uma velha dar à luz um girassol. Eu poderia pensar em muitas coisas e encontrar as respostas que escrevi num conto. Muitos deles inspirados na mitologia afrocubana, mas com uma nova visão e um novo caminho à frente.

Veredas – Teresa, ao ler seus livros, sente-se perfume de ervas, chás e flores. Isso é muito presente, tanto quando você fala dos costumes, rituais, benzeduras, como para enaltecer a natureza. Você faz questão de inclui-los nas histórias?

Cárdenas – Eu amo as florestas, riachos, a perfeição das flores, a beleza de todas as folhas, seu aroma, as cores. Eu gosto do silêncio destes ambientes, a paz. O vento sopra através dos ramos. Eu tive a oportunidade de fazer excursões a lugares isolados e a essa sensação de tranquilidade, de estar fora deste mundo, permanece em mim por um longo tempo. Tudo isso, eu poderia dizer, surge inconscientemente no que escrevo, mas gostaria de acrescentar que não só o gosto pela natureza, mas porque também sou africana, e na minha pele e na minha memória está gravado o continente-mãe da humanidade, a África, de onde todos nós viemos e onde todos começamos a caminhar pelas florestas ancestrais e ver a natureza pela primeira vez. Em todos os meus livros falo sobre árvores, flores ou mar, gosto de transmitir aos leitores as sensações que a natureza me dá. Moro no coração de Havana, mas sempre consigo ter plantas na minha varanda.

Veredas – Você trabalha com frases curtas, o que, em algumas situações, causa certo impacto no leitor. É intencional este recurso?

Cárdenas – Totalmente. Tenho uma queda por frases curtas. Dizer tudo o que um personagem sente por dentro com uma palavra, ou frase curta, é extremamente difícil. Mas vale a pena o efeito. Talvez seja a influência dos narradores norte-americanos, quem muito li. Adorei Carson McCullers, [Ernest] Heminway. Sou fanática por [Ray] Bradbury, Toni Morrison…

“Girou devagarinho sobre os calcanhares. Seu coração deu um salto.O chapéu continuava jogado no caminho, mas cem metros atrás. Ele o tinha ultrapassado sem se dar conta. Aonde diabos estava indo? Por que se afastara do caminho? Para onde suas pernas de homem velho, seus pés de escravo queriam levá-lo?” (Trecho de Cachorro velho)

Veredas – Algumas pessoas se surpreendem por suas obras abordarem temas considerados espinhosos e serem destinados, também, a crianças e adolescentes. Gostaria de saber como você encara esta classificação dos livros.

Cárdenas – Eu acho que um escritor pode escrever sobre qualquer assunto para crianças e jovens, se ele os trata de jeito certo. É necessário abordar diferentes temas, também os espinhosos, na literatura escrita para essas idades. Não parece um pouco hipócrita que se espantem quando aparecem situações difíceis em um livro, enquanto na vida real as crianças experimentam atrocidades diariamente, diante dos olhos do mundo e ninguém se escandaliza, e o que é pior, não fazem nada?

Não podemos ser como o avestruz que mete a cabeça em um buraco, nesta época terrível que vivemos, existem crianças que são assassinadas e que são obrigadas a matar, existem crianças se drogando e sendo prostituídas, existem crianças trabalhando, outras morrendo de fome ou de doenças, crianças que não têm assistência médica, que não dispõem de água potável. Crianças que são discriminadas pela cor de sua pele ou obrigadas a seguir uma religião que não lhes interessa nem entendem, crianças que são tratadas pior que animais, sem nenhum respeito ou amor. Crianças violadas aos quatro anos de idade, aos dois, seis meses… Os frequentes casos de crianças baleadas, assassinadas no Brasil. Lembro o caso dos cinco jovens massacrados por 111 balas. Ninguém respondeu por isso ainda.

Os estudantes estão sendo mortos nas escolas dos Estados Unidos. As jovens sequestradas, violadas, degoladas, na Nigéria, por um grupo extremista religiosos. As que morrem em brigas do tráfico na América Central. As que fogem das guerras e têm que emigrar forçosamente, ou as que morrem nas guerras, como na Síria, Palestina, Afeganistão, Congo. Há crianças que morrem de fome no Iêmen e na Colômbia. Crianças com deficiências amarradas em cadeias. E muito mais, e muito mais.

É de uma crueldade infinita, um abuso descomunal. Hoje vivemos em meio a uma violência impactante, e neste caso, a literatura pode ensinar as crianças a sobreviverem, a se defenderem, pode formar seres humanos melhores. Cada palavra que escrevo é em defesa das crianças e jovens, e contra toda a violência.

Veredas – Há em Cuba, assim como no Brasil, um esforço e engajamento em resgatar e destacar, por meio de ações e projetos, o nome de escritoras e de escritoras negras?

Cárdenas – Na verdade, não se tem feito tanto como se deveria, ou como necessitamos que se faça.  Comparando com o Brasil, não temos projeto, por exemplo, como o Festival Latinidades, que se celebra em Brasília, sobre a mulher afrodescendente na arte e na cultura. Ou um evento tão importante como Flinksampa de São Paulo, sobre a cultura, o conhecimento e a literatura negra. O Artefactos da Cultura Negra de Ceará. Ou os eventos de Porto Alegre, ou a marcha de 20 de novembro contra o racismo, nem o dia da Consciência Negra. Também não temos uma lei [10.639] que permita a inclusão obrigatória da história da África e dos afrodescendentes nas escolas e assim por diante. E digo mais, muitos afrodescendentes em Cuba não sabem nem que estamos na Década Internacional de Afrodescendentes aprovado pela ONU.

São feitos alguns encontros, como o de Afrocubanas, lideradas por Daysi Rubiera, que aprofunda o tema feminino e negro da academia. Na sede da União Nacional dos Escritores e Artistas de Cuba, são promovidos alguns encontros históricos sociais há alguns anos, onde as questões raciais e de gênero são abordadas. Há grupos como a Comisión Aponte, a Cofradía de la Negritude e a que, lamentavelmente, deixou de funcionar, o Color Cubano, sob a direção da jornalista e ativista Gisela Arandia. E está prestes a começar um novo encontro com Rogério Martínez Furé, um importante etnólogo, escritor, africanista do meu país, a quem se dedicou a Feira do Livro do ano passado.

A editora Ciências Sociais publica muito, e há anos, uma enorme quantidade de volumes sobre assuntos raciais, escravidão e a cimarronaje – a luta contra o racismo e a discriminação em Cuba. Muitos projetos são realizados, mas de maneira isolada. Temos formidáveis heroínas e heróis negros ao longo da história, em Cuba, de quem não se fala, por exemplo, nos livros dos nossos estudantes, e é triste. Adoraria que se fizesse um filme em que se abordasse a figura de Fermina Lucumí, uma mulher que se rebelou e fugiu para a montanha desafiando o poder colonial daquela época. Isso foi em novembro de 1843, no moinho de açúcar Triunvirato, em Matanzas, a província onde nasci.

Fermina era locumí, e sempre estava escapando para a montanha. Uma mulher valente, insubmissa. Coordenou um palanque de cimarrones, era a capitã, e também foi a primeira mulher fuzilada em Cuba pelo governo espanhol. É uma vida de valentia que merece ser contada.

E quanto às escritoras, bom, nunca foi feita uma antologia feminina de autoras negras, não seria “bem visto”. No entanto, se eles fizessem uma antologia de autoras e todas fossem brancas, ninguém acharia estranho. Temos a excelente poeta Georgina Herrera, que foi homenageada, e há pouco se publicou uma antologia com a sua obra. Mas nada mais. Devo dizer também que nossa população negra não se envolve muito nesta luta. Quando a Revolução Cubana triunfou, em 1959, Fidel [Castro] disse que todos éramos iguais, mas, com o passar do tempo, você se dá conta que não é assim. Acontece que uma grande parte deles prefere não falar desses problemas. Nos falta uma consciência negra, ancestral, unificadora.

“Mãezinha, encontrei um pedaço de espelho na rua. Agora, passo o tempo todo me olhando. A testa, os olhos, o nariz, a boca… Sabe de uma coisa? Descobri que meus olhos são parecidos com os seus, que não podiam ser mais bonitos, e que minha boca e meu nariz são normais.” (Trecho de Cartas para a minha mãe).

Foto: ABCárdenas/divulgação

Veredas – Você publicou em países como Espanha, Estados Unidos, México, África do Sul e Inglaterra. Como a crítica literária acolhe você?

Cárdenas – Na realidade, publiquei no Canadá, Estados Unidos, Venezuela, Coreia do Sul, Suécia, Brasil, Alemanha, Espanha, República Dominicana e em Cuba, claro. Existem bastante críticas sobre a minha obra. Conheço algumas e sempre são elogiosas, acho que desta parte tenho sorte. Sou mimada por leitores e pela crítica especializada. De fato, fui premiada duas vezes com o Prêmio Nacional de Crítica Literária em Cuba. A crítica nos Estados Unidos também me recompensou. Na Coréia do Sul, um país tão longe de nós culturalmente, eles deram ao Cachorro Velho reconhecimento por ser o melhor livro dedicado aos jovens na cidade de Seul.

No entanto, o que mais aprecio é o prêmio de amor que os leitores me dão. As crianças de diferentes nacionalidades me escrevem, me procuram pelo Google ou pelo Facebook. Tão simples. Lembro-me de uma vez, na Venezuela, os alunos de uma escola em Carabobo fizeram desenhos sobre Tatanene Cimarrón com mensagens para mim. Essas coisas me enchem o coração, eu agradeço muito.

Veredas – Em breve você deve lançar, aqui no Brasil, o romance Mãe sereia (Pallas). Do que trata a obra?

Cárdenas – Mãe sereia é uma narração que eu devia a mim mesma, à minha história e à memória de quem sou e de onde cheguei. Muitas vezes pensei na travessia brutal, na dor, o medo que foi para aqueles homens, mulheres e crianças escravizados e trazidos da África.  Vejo através de seus olhos espantados tudo o que viram, imagens incompreensíveis de homens brancos, barcos, sangue, mar, morte, terra nova. Um pouco do que viram e o som trovejante de toda esta experiência terrível está em Mãe Sereia. Foi como trazer à luz coisas guardadas há séculos.

Mãe sereia é o relato da travessia do primeiro navio carregado de escravos, o que começou o tráfico negreiro. O que aconteceu naquela viagem e como terminou. Lembro de que estavam buscando histórias sobre o mar – isso foi há alguns anos, em Havana, para uma espécie de antologia chamada Vestida de mar e outros cantos de sereias. Saiu em 2010, se lembro bem, por Ediciones Union. Participaram mais de 40 autores cubanos residentes na Ilha e fora dela. Acho que a única escritora negra [a participar] fui eu.

Meu compromisso e responsabilidade com a memória ditou a história, e saiu Mãe Sereia. Essa será a primeira ocasião em que será publicada fora de Cuba e em outro idioma. Nesta narração, volta-se não apenas na sobrevivência, apesar de tudo, mas também por transferir aos outros a aprendizagem: falo de palavras transmitidas, a vivência oral. No final, quase se diz que as palavras têm mais poder do que a vida e a morte juntas. E é verdade, eu acho.

Veredas – O que você pode falar a respeito de outro romance que você está escrevendo?

Teresa – Sou uma escritora temperamental e indisciplinada, dou rédea solta à musa da inspiração, e a minha gosta de sonhar e mudar os planos com frequência. Eu continuo escrevendo em um ritmo lento Casagrande, faço anotações para o romance Playa prohibida, sobre prostituição adolescente nos anos noventa, em Cuba, e termino um que outro conto ou poema. Comecei a escrever Casagrande em julho de 2014, mas na minha cabeça é muito anterior.

Eu escrevo por trechos, palavra por palavra, tenho imagens e eventos em minha mente que ainda não consigo acomodar, é um processo lento. By the way, com este romance, ou pelo menos com um trecho, aconteceu algo muito bonito em Porto Alegre [RS]. Graças à colaboração da professora Lilian Ramos*, trabalhamos em um projeto com alguns alunos de tradução da UFRGS, e eu, na tradução do capítulo El nombre. Foi um processo enriquecedor e gratificante. Na verdade, este capítulo tem vida própria e já estamos pensando em sua publicação no Brasil.

* Teresa Cárdenas esteve na capital gaúcha em novembro de 2017, participando do evento Novembro Negro, na atividade  “Macucupé: herencia e identidad negras en la literatura de Teresa Cárdenas”.

“Os brancos do engenho lhe deram o nome de José; no entanto, se chamava Mandala e era do antigo reino do Congo. Lá era nganga mune: curandeiro, médico de seu povo. Chamavam-na Maria Eleuteria de la Merced, mas, na verdade, era Kanté e em seu povoado foi Arugba, a donzela virgem que levava os pedidos de todos pelo Bosque Sagrado, para depositá-los com cuidado no rio Oxum, onde habitava a deusa da fertilidade e da cura. José de Jesús Nazareno, Felipa, Gertrudis, María Eloísa, Baltazar, Hilario, Cayetano… nomes impostos para que esquecessem de tudo. De onde vinham, como falavam. Agora pertenciam aos amos, já não eram do Dahomey, nem da Guiné ou de Benin. Lá para trás ficou Camarões, Gana, Senegal.” Trecho do capítulo “O nome”, do romance Casagrande, ainda sem previsão de lançamento)

Veredas – Para você, o que é ser escritora? Este conceito mudou no decorrer dos anos, durante a sua trajetória?

Teresa Cárdenas – No começo, não estava claro sobre escrever e dedicar-me a este trabalho difícil.Sempre gostei de história: as que escutava e as que eu lia, e é curioso, mas eu não via as diferenças entre o oral e o escrito: tudo se tratava da história e de como me cativava e de como eu me enxergava dentro da narração, como se fosse um ersonagem a mais.

O “título”, por assim dizer, de alguma maneira de “escritora”, veio depois, quando começaram a chegar os prêmios, ou se em alguma entrevista me chamavam de “a escritora” Teresa Cárdenas. Ainda hoje é estranho: para muitos, ser escritor vem juntamente com um status social ou econômico, ou um ato prominente dentro de uma elite intelectual, literária, frequentemente universitária. E nada disso tem a ver comigo. Eu gosto de me ver como a griot de minha família, a que conta o que outros esquecem ou não conhecem. A depositária de todos os princípios e finais, de todas as histórias. Se isso significa ser escritora, então eu sou.

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Jornalista freelancer na área cultural e graduanda no Bacharelado em História da Arte (Ufrgs) e escritora. É autora do livro de contos “Como se mata uma ilha” (Zouk, 2019).
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