Se a rua Beale falasse: o amor negro é um ato de revolução

por Glauber Cruz

Tish Rivers e Fonny Hunt vestem amarelo e azul quando os conhecemos. Nesse momento, ela questiona se ele está preparado. A pergunta, embora emoldurada por um plano que coloca Tish diretamente na linha do olhar de Fonny, também se estende para a plateia. Afinal, a história que Tish nos contará é uma narrativa que vai nos exigir sensibilidade e empatia muito genuínas, mas também sangue frio suficiente para suportar uma visão sólida e crua sobre a realidade. Fonny então responde que na verdade nunca esteve tão preparado. Pegamos a mão dos dois e seguimos.  Entram em cena então som das chaves, dos alarmes, das grades. Sai o amarelo em tom quente e entra um verde em tom frio. Então a Tish e o Fonny que vemos já não são os mesmos. Estão cansados, marcados em brasas pela injustiça e pela impossibilidade de não poder estar um ao lado do outro.

A sequência que dá início a Se a Rua Beale Falasse não só dá o tom do que iremos acompanhar ao longo do filme como também é uma delicada e impactante reflexão sobre a experiência do negro na América. Marcada pela luta e por uma violência que se manifesta física e simbolicamente, essa experiência permeia toda a vivência dos indivíduos negros, pautando inclusive alguns aspectos que parecem tão íntimos e individuais, como a afetividade, por exemplo. Quando Tish nos diz que espera que “ninguém jamais tenha olhado para alguém que amava através de um vidro”, percebe-se que ela se refere não somente ao amor romântico da vida real ou do cinema, mas também a uma realidade de estigmas, restrições e impossibilidades que salta das telas para ganhar corpo na realidade. Ainda assim, a sequência embalada pela belíssima trilha de Nicholas Britell nos traz alguns lampejos de esperança por mostrar (e acreditar) que é possível amar, mesmo quando há entre os dois amantes um vidro que reflete uma série de opressões fatidicamente reais.

É nesse contraste entre durezas reais e esperanças também reais que o novo filme de Barry Jenkins se equilibra, construindo uma atmosfera que flerta com a delicadeza e aspereza, revoltante e apaixonante. Baseado no romance homônimo de James Baldwin, Se a Rua Beale Falasse narra a história de Tish e Fonny, dois jovens negros que se conhecem desde a infância e que, decidimos a construir uma vida conjunta, são surpreendidos pela prisão dele, acusado injustamente de estuprar uma mulher. Nesse cenário pouco amistoso ao amor, Tish descobre estar grávida, se vendo então dividida entre os esforços de livrar o amado da prisão e o medo prático de ser mãe, sustentar um filho e lidar com um contexto de desigualdade e preconceito.

Dirigido por um Barry Jenkins ainda mais decidido em utilizar o cinema como uma ferramenta de discussão e não só de exposição de temas complexos que circundam a sociedade, Se a Rua Beale Falasse é uma obra posicionada. Dos diálogos pontuados por sirenes da polícia ao fundo – que imprimem à história uma sensação de vigilância e medo, tão comuns às comunidades negras – até a escolha das músicas, cantadas em vozes negras que resgatam a força do jazz e do blues na vivência e na formação dos negros estadunidenses, cada decisão técnica do filme parte do princípio de que os contextos espacial, social e histórico são elementos fundamentais da narrativa.

foto – reprodução

Isso é essencial na produção, não só como uma forma de respeito à memória de Baldwin – que utilizou suas narrativas para fazer profundas discussões e reflexões sobre sexualidade, raça e classe social – mas também para entendermos do que se trata a história a que estamos assistindo. Mais do que “apenas” uma história de amor, esta é uma história sobre como a desigualdade se perpetua por meio do encarceramento em massa da população negra, sobre o estigma da sociedade em relação ao homem negro, sobre a divisão espacial das cidades pautada pela questão financeira e, paralelamente, pela questão racial.

Momentos como em que Tish reflete sobre as crianças de sua era – que ainda são as crianças da nossa era – ou o monólogo de Daniel (Brian Tyree Henry) sobre o que é ser um homem negro e estar sob o jugo de um Estado racista, surgem na narrativa como passagens naturais e necessárias para a construção da atmosfera dos personagens e de suas trajetórias. Escrito por Jenkins – que foi indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado pelo trabalho – o roteiro do filme nos exige um posicionamento e o mínimo de alteridade para que possamos, de fato, absorver o que nos é contado.

Ainda assim, é sempre bom lembrar que, nas suas idas e vindas entre presente e passado, o roteiro de Se a Rua Beale Falasse é o roteiro de uma história de amor. E quando esse ser uma história de amor vem atrelado à uma série de simbolismos e ao desmantelamento de um imaginário violento e já arraigado na sociedade a respeito do negro, destacar isso se torna ainda mais importante.

Cinema e literatura são talvez as expressões artísticas que mais se utilizam do amor como fonte. Dos amores platônicos aos impossíveis, passando por aqueles resistentes ou enrijecidos pelo tempo, esse sentimento – que, num movimento contrário, é também construído por essas expressões artísticas – é uma fonte inesgotável de roteiros, romances, curtas e contos. Mesmo assim, a história de Tish e Fonny nos soa, de certa forma, como algo inédito. Afinal, quantos casais negros nós conhecemos através do cinema e da literatura? Quantos filmes e livros abordam a afetividade das pessoas negras como ponto central? Quantas histórias canalizaram as esperanças, as tristezas e as alegrias de suas narrativas através de personagens negros que se amam?

Esses questionamentos talvez soem estranhos por relacionarem de maneira direta um assunto tão subjetivo quanto o sentimento do amor romântico a uma coisa tão concreta quanto a raça e os contextos histórico e social de um indivíduo. Mas é justamente esse estranhamento e um descolamento de coisas que são inerentes – pois mesmo o amor, subjetivo que é, sofre influência da nossa realidade externa e do que somos e como nos portamos no mundo – que faz a manutenção da predominância de personagens e contextos racialmente demarcados nas histórias que têm o amor como o seu tema central.

foto – reprodução

Justamente por isso é muito bonito vermos Tish e Fonny se amando sob as lentes de Jenkins em planos que focam seus traços e amparados pelas cores de James Laxton, que tornam suas peles negras ainda mais negras. Um trabalho estético e narrativo que pontua que eles são um casal de pessoas negras dentro de uma estrutura muito maior do que eles e que diz que negros e negras devem se preocupar primeira, e talvez até unicamente, com as coisas práticas da vida e não com aquilo que é subjetivo, que não é palpável. Lógica que resulta no descolamento da figura do negro de sua própria humanidade, nos limitando a indivíduos cuja história pessoal e familiar é marcada por um contexto de preconceito, de desigualdade, de dor e que só tenhamos que dedicar esforços para isso.

Aliás, a delicadeza do roteiro na construção dos personagens é muito potente nesse sentido. Fonny, encarnado por Stephan James, não é o homem negro envolto por uma capa de ameaça e agressividade que a sociedade espera que ele seja – e que, no final das contas, o acusa de ser. Aqui, esse homem negro é  um artesão – e a sua resistência em se apresentar como um artista expressa muito do que é dito e introjetado a respeito do que o negro pode e não pode ser. Tish, por sua vez, vai por outro caminho que não o da figura da mulher negra que é forte antes de tudo e que tem forças suficientes para receber todo o peso do mundo sobre as costas. Amparada pela atuação de Kiki Layne, com a voz baixa e o corpo retraído, como que dividida entre o medo e um cálculo metódico antes de cada fala ou ação, a personagem não é esvaziada da sua potência como matriarca negra em formação, que levanta a voz e a cabeça quando necessário, mas o roteiro dá espaço para que ela seja frágil, para que tenha medo, para que se faça questionamentos e que deseje uma vida que simplesmente não a obrigue a ser forte o tempo todo.

O mesmo processo se dá com a mãe de Tish, interpretada de forma sublime por Regina King, vencedora do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante pela atuação, que fala muito em seus silêncios e expressões e que nos aquece na tela, como uma figura que não só Tish possa confiar, mas também o público. Podemos ver isso já na primeira cena de King e Layne, quando entre silêncios e olhares, Tish fala – mesmo sem falar – o que precisa contar à mãe, já sabendo que terá dela o apoio que precisará.

E Se a Rua Beale Falasse é uma obra que não passa batida – exceto nos cinemas de Porto Alegre, onde o filme não estreou mesmo que tenha recebido três indicações ao Oscar – justamente por isso: mostrar como é estar inserido em uma sociedade que esgota a sua figura de tudo – inclusive da capacidade de se relacionar afetivamente e de se permitir à subjetividade – e subverter essa lógica. Afinal, o amor de Tish e Fonny e todos os seus esforços para construir uma vida e denunciar um ato de injustiça que diz tanto da sociedade em que vivem, se revelam movimentos que nadam contra a maré de um sistema que luta justamente para que eles sejam desumanizados. Que diferença fazem raça, espaço e sociedade quando falamos sobre amor? Em Se a Rua Beale Falasse não temos exatamente uma resposta, mas, conduzidos pela mão delicada e decidida de Barry Jenkins e sob o olhar cuidadoso de James Baldwin, somos apresentados à uma outra percepção sobre o amor que faz refletir sobre a realidade de um contexto que ainda é cruel da mesma forma que era em 1976, quando o livro no qual o filme se baseia foi lançado.

A rua Beale de Baldwin, agora também a rua Beale de Jenkins, é a expressão das experiências de negritude na América.  Não só é, como as palavras do próprio Baldwin relembram no início do filme, o lugar onde nasceram o jazz e Louis Armstrong, mas também um lugar simbólico onde nasceram e por onde caminharam, caminham e continuarão caminhando todos os negros e negras da América. Falar sobre a afetividade dessas pessoas é caminhar por essa mesma rua barulhenta, dobrando uma curva que poucas vezes foi dobrada, mas que sempre existiu na nossa história, seja de forma íntima, seja de forma universal.

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