As mulheres invisíveis da Escola de Artes de Porto Alegre

Reportagem: Thaís Seganfredo
Foto: Arquivo Histórico do Instituto de Artes da Ufrgs

As paredes históricas do Instituto de Arte da Ufrgs, no pulsante centro de Porto Alegre, hoje acolhem alunos de variados perfis, determinados a seguir profissionalmente a atividade artística no estado – ainda que o percurso seja repleto de dificuldades. Nem sempre, no entanto, as aulas ministradas no prédio foram suficientes para possibilitar que artistas, especialmente as mulheres, se estabelecessem no meio. As alunas da antiga Escola de Artes de Porto Alegre não são levadas a sério pela academia até hoje. 

A presença dessas mulheres – e seu apagamento enquanto artistas – foi o tema da pesquisa Visibilidade Invisível: a presença feminina na Escola de Artes de Porto Alegre (1910-1936), da pesquisadora Rosane Vargas, mestre em História da Arte pela Ufrgs. 

Atelier da Escola, 1915 ( Fonte Arquivo Histórico do Instituto de Artes da Ufrgs)

Uma das descobertas de Rosane foi quanto ao reconhecimento dos alunos que se formaram.  “Eu fiz uma pesquisa em jornais para tentar ver o que aconteceu nas décadas seguintes. As mulheres pararam de ser citadas depois de formada, poucas ainda foram citadas em alguma exposição. Mas no momento em que houve uma consolidação do sistema de arte no Rio Grande do Sul, a partir das décadas de 50 e 60, os homens foram muitos mais citados e reconhecidos como artistas”. Ou seja, as mulheres graduadas na Escola apareciam muito mais na coluna social do jornal. Essa desigualdade ganha dimensão ainda maior quando consideramos que, dos 36 alunos graduados entre 1916 (data da primeira formatura) e 1936, 30 eram mulheres e apenas 6 eram homens.

Entre os fatores para essa falta de reconhecimento, está a possibilidade de que poucas alunas, de fato, tivessem interesse em seguir a profissão. “Possivelmente muitas delas não entraram mesmo pensando em ser artistas, entraram porque havia uma cultura muito forte de que as moças bem nascidas deveriam saber tocar um instrumento, saber pintar, ter algum conhecimento cultural, isso tudo como um ‘dote’”, diz Rosane, ressaltando que, naquela época, mulheres como as alunas da Escola de Artes – brancas, de classes abastadas – não trabalhavam. “Quando a gente fala que as mulheres não trabalhavam, a gente tem que pensar que mulheres, porque as mulheres pobres sempre trabalharam. Estamos falando do início do século 20, e poucas décadas antes as mulheres negras eram escravizadas”.

“Artes femininas”

Miss Rio Grande do Sul, Bila Ortiz, recepcionada na Escola de Artes
(Fonte: Revista do Globo/Rosane Vargas)

Artes como a pintura e o desenho, portanto, quando realizadas por mulheres, eram vistas frequentemente como um “hobby”, parte dos manuais de comportamento. “O termo ‘amadora’ era amplamente usado, durante o século XIX e início do XX, para referir-se a mulheres que pintavam, independentemente de serem artistas ou não”, afirma Rosane em sua dissertação.  

Diferentemente da Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, fundada na primeira metade do século XIX, a Escola de Artes de Porto Alegre tinha como particularidade a presença muito maior de alunas em relação a alunos, com 76,3% do total. “Não se tinha ainda uma ideia de que isso poderia ser uma profissão. Então abriu uma brecha para que as mulheres fossem a maioria na escola”, explica Rosane.

Além disso, o status quo das primeiras escolas de arte era de proibição das mulheres de se matricularem. “Na escola nacional de belas artes, as mulheres só puderam entrar depois da República, e a escola data de 1816”, conta. Quando a Escola de Artes de Porto Alegre foi fundada, já não havia mais esse tipo de proibição no país, ainda que a herança de menosprezo profissional tenha continuado. Um dos jornais pesquisados pela historiadora, aliás, cita “o desenvolvimento das artes femininas”, termo que incluía a prática da pintura, música, escultura e a agulha, quando praticados por mulheres.

Estigma acadêmico

Ainda que muitas alunas tenham se matriculado com intuitos amadores, Rosane afirma que a generalização que prevalece até hoje no meio acadêmico com relação a essas alunas pode ter contribuído para a falta de reconhecimento de artistas que seguiram a carreira. “A professora Blanca Brittes escreveu faz algum tempo que essa invisibilidade e essa falta de respeito por essas mulheres pode  ter feito com que se perdessem muitos artistas. As pessoas nem titubeiam para dizer que não era bom”, opina.

Cigana, sem data, de Judith Fortes (Fonte Arquivo Histórico do Instituto de Artes da Ufrgs)

Em todo o período de seu processo de pesquisa, Rosane ouviu de pessoas do meio que o trabalho destas alunas não tinham qualidade. “Quando se fala de artistas do período, elas nem sequer são lembradas para que se procure alguma coisa sobre elas. Elas eram a maioria, mas as pessoas não enxergam, olham através dela, como se elas fossem transparentes. O que é essa qualidade, quem estabelece essa qualidade? Muitas vezes essa qualidade exigida está encobrindo outras coisas”, diz.

Entre as poucas artistas que tiveram algum reconhecimento, há um ou dois casos peculiares a serem investigados. É o caso de Judith Fortes, que se formou na Escola, participou de algumas exposições, entre eles o Salão de Bellas Artes oficial do estado, integrou a Associação Chico Lisboa, mas teve a carreira invisibilizada depois dos anos 1950. Atualmente, poucas de suas obras são conhecidas.

Reflexos na contemporaneidade

Até hoje, não há institucionalmente uma política de resgate dessas mulheres no estado. Um indício desse desinteresse é o recorte achado pela pesquisadora de um anúncio do Museu de Arte do Rio Grande do Sul no ano 2000, que procurava obras de artistas gaúchos no fim do século XIX e início do século XX. Na lista de 35 nomes pelos quais o museu estava interessado, não constava nenhuma mulher.

Margs lança projeto para aquisição de obras de artistas gaúchas; nenhuma mulher incluída
(Fonte: O Pioneiro/Rosane Vargas)

O apagamento de artistas mulheres na história é um processo já reconhecido mundialmente, seja nas artes visuais, na literatura ou na música, por exemplo. Como destaca Rosane, isso se reflete até hoje e afeta também artistas contemporâneas. “Quando se fala de artistas mulheres, se fala de mulheres, não de artistas. Os homens são artistas. A gente sempre fica nesse recorte, porque as mulheres nunca são puxadas para um grande narrativa”, lamenta.

Entre os artistas contemporâneas, há muitas mulheres produzindo, embora isso não se reflita na presença delas no mercado de arte, questiona Rosane, ao afirmar que, por exemplo, o número de mulheres representadas por grandes galerias é minúsculo.

Além disso, da mesma forma que, no passado, era esperado que as mulheres produzissem certo tipo de arte, hoje em dia há uma expectativa do mercado no sentido de enquadrar a arte de autoria feminina a certos temas, como o feminismo. “A arte que as mulheres fazem não precisa necessariamente ser engajada. não deve haver uma cobrança do que as mulheres tem que fazer enquanto artistas”, diz.

 

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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