Charqueadas de Pelotas ignoram passado escravocrata e promovem festas privadas

Ester Caetano
Fotos: reprodução/redes sociais

Seria um dia memorável de triunfo para Daiane Campos de Bello, mas ela precisou se vestir de resistência. De turbante na cabeça, para relembrar sua ancestralidade, e com semblante sério, a então formanda do curso de Pedagogia da Universidade Católica de Pelotas foi participar de seu álbum de formatura em tom de protesto. Ela não concordava com o local escolhido de última hora pela turma: uma charqueada, antiga fazenda de charque, lugar em que muitos negros foram escravizados, explorados e torturados.

Protesto da formanda Daiane Campos jogou luz no debate sobre o passado escravocrata das charqueadas

Daiane conta que inicialmente as fotos seriam em outro local, mas por um problema na produção, a turma escolheu fazer na charqueada. Em um grupo de 35 alunos e de apenas cinco pessoas negras, ela foi a única a contestar a escolha do local para um evento comemorativo. “Na época, eu briguei e praticamente saí dizendo que não iria fazer a formatura caso fosse lá. Passado um tempo, fui repensando e tive a ideia de protestar. Para nós, mulheres negras, estar na universidade e conseguir se formar já é uma vitória e eu queria muito comemorar isso”. A estudante decidiu então transformar o desconforto em uma manifestação, usando um turbante como protesto. “ Eu falei que só colocaria os meus pés ali pra fazer essas fotos mediante esse ato”. Daiane se formou há cinco anos, mas apesar da repercussão de seu protesto nas redes sociais, nada mudou.

Símbolo da ascensão econômica da cidade no passado, as quatro fazendas de charque remanescentes no município hoje são empresas de atividades turísticas ou voltadas para o entretenimento. A Charqueada São João, tombada como Patrimônio Cultural Brasileiro em 2018, é aberta à visitação e tem serviço próprio de festas. A Boa Vista e a Costa do Abolengo são residências que permitem a locação do espaço para festas e eventos. Já a Charqueada Santa Rita foi transformada em uma pousada e também sedia eventos.

Com diversos atrativos turísticos, alguns espaços têm acomodações simples e de luxo para quem busca um local para se hospedar. Na Charqueada Santa Rita, uma suíte com acesso a piscina e a campo de golfe, por exemplo, sai por R$320 nesta época do ano. O quarto foi restaurado e mantém “a originalidade de 1826”, segundo o site oficial. 

Já a Charqueada São João oferece passeios de barco e visitas monitoradas, com direito a uma visão privilegiada da senzala. A partir de R$25 reais, o visitante pode “caminhar pelos jardins de árvores centenárias, [onde] pode ser vista a fachada original da senzala, a gruta e a figueira com mais de 500 anos”. Desembolsando um pouco mais, pode almoçar no local, com comidas típicas (charque, feijoada ou churrasco) preparadas pela “staff de cozinha”.

Charqueada Boa Vista preparada para evento de casamento (Foto: divulgação)

Nos últimos cinco anos, a Charqueada Costa do Abolengo sediou diversos shows e festas de música eletrônica, além de ser um dos espaços mais procurados para casamentos e formaturas. A realização de festas no local chegou a ser debatida nas mídias sociais em 2018, quando uma produtora contratou o rapper Matuê para se apresentar na empresa. Após as críticas, ele cancelou o evento e afirmou que “jamais aceitaria um show num lugar historicamente marcado pela escravidão”. Na época, a charqueada não se posicionou sobre o assunto e voltou a ser palco de algumas raves no ano seguinte, como mostra este vídeo. Na pandemia, alguns eventos continuaram ocorrendo no formato drive-in.

A relação das charqueadas com o passado escravocrata varia conforme a empresa. Enquanto a Charqueada São João expõe objetos de tortura usados antigamente e aborda a questão em visitas monitoradas e informa que “a história deve ser contada para que não se repita”, a Charqueada Santa Rita Pousada de Charme prefere apagar o fato da sua história.

“Temos um memorial do charque, onde vários aspectos da história e da produção do charque são abordados na mesma proporção, sem destaque especial para nenhum ponto específico”, afirmou ao Nonada por e-mail, em resposta sobre como a empresa aborda a questão escravagista nas suas atividades. A charqueada Boa Vista não aborda a questão nas suas atividades principais, mas afirma que oferece visitas a grupos de idosos, nas quais discute meio ambiente e trabalho escravo. Por aplicativo de mensagens, a charqueada Costa do Abolengo respondeu que trabalha com visitação, mas não informou se as visitas têm mediação.

Na Charqueada Boa Vista, é possível se hospedar no casarão, que mantém “a originalidade de 1826) (Foto: divulgação)

Para a socióloga Carla Ávila, integrante do movimento negro de Pelotas, é inegável, quando se visita uma charqueada, o sentimento de inquietação provocado pela história que os espaços carregam e pelo fato de serem locais pouco acessíveis economicamente. “Eu sou totalmente contra usar aquele espaço como um espaço turístico, eu fui algumas vezes e tem uma energia muito pesada. Além disso, grande parte da população não tem acesso a esses locais, então existe uma segregação não só racial, mas também econômica”, diz.

Conhecida como a capital do doce e a princesa do sul, Pelotas acomoda uma grande bagagem histórica cultural. Ao passear pelas ruas, ainda é possível enxergar e relembrar nas fachadas dos casarões as formas dos tempos do séculos XVIII e XIX, quando a cidade do doce ascendia economicamente com a produção de charque, a carne de gado abatida e salgada ao sol em processo de desidratação. O imaginário de cidade rica açoriana camufla uma época de escravidão que constituía o modo de organização econômica, através do apagamento do protagonismo que os povos negros tiveram em todas as esferas de crescimento da cidade. 

As fazendas de charque, localizadas na área rural do município, nas proximidades dos rios e arroios, eram compostas por casas senhoriais, senzalas ou estruturas industriais do trabalho, como galpões, fornos e portos. De acordo com a pesquisa “A espetacularização midiática do patrimônio como fator de desenvolvimento: as charqueadas de Pelotas”, de Leandro Infantini, a região chegou a abrigar 400 charqueadas.

Objetos antigamente utilizados para torturar escravizados são exibidos aos visitantes na Charqueada São João (Foto: divulgação)

Ávila, que também é pesquisadora da cultura negra do estado, avalia que as charqueadas precisam ser ressignificadas. “Não é uma questão de abandonar os espaços, mas sim priorizar a memória e não a festividade”. O historiador José Ricardo Resende Jr. compartilha da mesma opinião e acredita que esse exercício deve ir além da época da escravatura. “É preciso que essa memória quanto à presença das comunidades negras não se restrinja apenas à escravidão. Diversas pesquisas apontam a intensidade de jornais, clubes negros e diversas outras organizações coletivas constituídas por essas pessoas no pós-abolição”, destaca.

O movimento negro de Pelotas é um caminho para denunciar o racismo estrutural que marca a sociedade. Ediane Oliveira, mestra em Antropologia pela Universidade Federal de Pelotas, pondera que é partir do movimento negro que existe a possibilidade de se alcançar a reparação histórica para a população negra. “A população racista tenta apagar, relativizando ou minimizando uma história marcada por sangue e suor negro. Portanto é necessário denunciar justamente para que se tenha conhecimento desse fato.”

A historiadora Daiane Molet lembra que existe uma Pelotas por trás da história oficial sobre a “princesa do sul” dos grandes charqueadores, de seus casarões e suas charqueadas como um símbolo de orgulho e do poderio econômico. “Existe uma outra Pelotas, uma Pelotas Negra, do samba, do carnaval, do hip-hop, dos clubes sociais negros, do charme, das comunidades quilombolas, dos povos de terreiro, dos Griôs e de tantos outros que sequer sabemos o nome, de uma população negra que está principalmente assentada na periferia da cidade”, observa.

Um passado que reflete no agora

Fazendas de charque eram consideradas um dos priores lugares para os escravos no Brasil (Foto: reprodução)

As consequências do racismo nas estruturas sociais e culturais de Pelotas têm raízes em um processo de embranquecimento do passado da região. Como explica a doutora em História Daiane Molet, “com o início da colonização portuguesa, Pelotas deu seu passo para a ascensão econômica através das construções das charqueadas. Neste mesmo tempo, vários memorialistas locais e viajantes que passavam pela cidade asseguravam a massiva presença de povos africanos e a utilização de sua mão de obra escrava. Contudo, as primeiras obras de caráter histórico do Rio Grande do Sul, que foram surgindo na década de 1970, apresentam narrativas voltadas a um embranquecimento e para uma suavização da cronologia.” 

Desta forma, a narrativa não refutava a escravidão, mas menosprezava a presença africana na construção da sociedade sulista, reproduzindo a ideia de que esse sistema não era violento e se sustentava sem a presença dos povos negros nos setores produtivos. Segundo Ediane Oliveira, pesquisadora da cultura do povo negro pelotense, a estrutura de como é referida a história de Pelotas no imaginário da sociedade parte de uma ideia de um grande desenvolvimento na cultura, política e economia do estado. Só que para os negros, está é uma narrativa dolorosa. “Percebemos o quanto o sangue e o suor negro foi derramado para que se tivesse esse ‘desenvolvimento’”.

Nesse sentido, a negação da exploração da população negra se perpetua há muito tempo, a partir do mito difundido de que os escravizados do sul não sofriam tanto quanto os demais. “Esta negação tem longa data. Posteriormente, várias pesquisas demonstram que a escravidão aqui foi tão violenta e fundamental para o desenvolvimento econômico quanto em locais como Rio de Janeiro e São Paulo. Tivemos mão de obra negra, escravizada nas mais diversas atividades, rurais, urbanas, domésticas, marítimas, entre outras”, conta Molet. 

Por trás desse eufemismo, existe uma romantização da história contada, e o conhecimento de poucos detalhes sobre a relação de trabalho entre senhores e escravizados. De acordo com o livro “Pelotas: Escravidão e Charqueadas”, de José Euzébio de Assumpção, não há como divergir  o contexto das charqueadas com o período escravocrata, uma vez que elas tiveram papel central na entrada de homens escravizados no sul. 

Os escravizados que eram enviados ao município para serem explorados na produção de charque eram tidos como rebeldes. Esse fato é elucidado pelo Historiador e especialista em história do Brasil Império na história social da escravidão, Caiuá Al-Alam. O pesquisador revela que com a Revolta dos Malês, em Salvador, em 1835, os senhores de engenho tentavam se “desfazer” dos escravizados tidos como rebeldes nesta guerra. “As pessoas não queriam comprar esses indivíduos. Então os baianos tentavam enviar esses trabalhadores para lugares bem distantes, onde não soubessem que esses camaradas participaram das revoltas”, explica.   De certo modo, Pelotas se configurou como o  “frigorifico” dos negros, pela insalubridades dos casarões em que os povos ficavam e pelo frio, culminando em uma baixa expectativa de vida.

Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, com o apoio do Google News Initiative.

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Jornalista engajada nas causas sociais e na política. Gosta de escrever sobre identidade cultural, representatividade e tudo aquilo que engloba diversidade.
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