Jessica Menzel*
Fotos: JP Siliprandi
Primeiro, ele levava as cargas até a van, depois descarregava os equipamentos, distribuía cada um deles de maneira harmônica, afinava todos os instrumentos e, então, o palco já não estava mais vazio. Assim era a rotina dos cerca de 20 shows em que Piquet Coelho trabalhava mensalmente antes da pandemia. Roadie há 15 anos, a vida intensa dele, antes permeada por estradas e bastidores, foi completamente alterada. Com o novo coronavírus e a diminuição da frequência de espetáculos, perdeu-se um pouco da euforia de quem contribuía para a magia acontecer quando as cortinas se abriam.
Uma alternativa à ausência de trabalhos foi aprender a pintar casas e apartamentos através de vídeos no Youtube. Em março, fez a primeira pintura no estúdio de um amigo. “Eu não sabia fazer nada, não sabia pegar um pincel, rolar um rolo, trocar uma resistência de chuveiro. Eu aprendi tudo sozinho”, conta. Além disso, ajudar os colegas de profissão que não puderam se sustentar tornou-se uma tarefa incansável. Uma das iniciativas foi criar um grupo de WhatsApp chamado “Unidos pela graxa”, a fim de arrecadar cestas básicas para roadies, iluminadores, técnicos de som e carregadores.
Quando questionado sobre o termo “graxa”, Piquet responde que assim ele e os demais colegas que trabalham no backstage são popularmente chamados, e que a origem da palavra talvez esteja relacionada com as comidas gordurosas ingeridas nas madrugadas. “Nós da graxa temos nosso próprio jeito de se alimentar, que é diferente dos músicos. Às vezes, a gente comia embaixo dos praticáveis (estrutura cenográfica que facilita a movimentação dos atores) dos palcos”, explica. Se o passado trouxe momentos singulares junto a outros profissionais da cultura e a oportunidade de conhecer alguns ídolos, o presente é permeado por dúvidas oriundas da tristeza de perder pessoas muito próximas. “Não sei como vai ser, mas não tenho mais vontade de ser roadie. Nossa classe é a mais atingida. Tem outras questões que ninguém fala aí em entrevista, mas a gente sabe, foram mais de 15 suicídios. É quase impossível voltar”, completa.
Antes de dispor elementos sobre o palco, também existe alguém que pensa a concepção visual e artística daquele lugar. Essa é uma das tarefas que Rodrigo Shalako desenvolve há nove anos. Em março de 2020, ele iniciaria a produção cenotécnica do festival Palco Giratório em Porto Alegre, promovido pelo Sesc. Devido à grande demanda de trabalho, recusou alguns outros projetos de cenografia na época. No mesmo mês, as portas de teatros e casas de shows começaram a fechar devido à pandemia. O dinheiro, economizado do trabalho consolidado como cenógrafo, durou alguns meses. Entre a pintura de alguns museus e apartamentos, e a construção de alguns móveis sob encomenda, foi especialmente a verba de editais, como os oriundos do Fumproarte e da Lei Aldir Blanc, que garantiu a sobrevivência até agora.
Na sala que Shalako aluga no centro de Porto Alegre, estão dispostas todas as ferramentas e materiais que ele utiliza para criar uma cena. Com um portfólio robusto e uma coleção de prêmios de melhor cenografia, a qualidade e as conquistas relativas ao seu trabalho são questionadas pelos olhos de uma sociedade que insiste em enxergar pelas lentes do racismo. “Acontece, às vezes, de tu ser apresentado pra um possível cliente e a pessoa vê que tu é negro e dá uma desmontada na pessoa. E aí começam as dúvidas em relação ao teu trabalho. De quem é esse espaço? Com quem tu divide? Como se a pessoa negra não tivesse, não pudesse ter as coisas”, desabafa.
Embora tenha sido confrontado por alguns desafios ao longo da profissão, Shalako não pensa em migrar para outra atividade. O amor pela arte e o frenesi de contribuir para que um espetáculo aconteça atravessa o preconceito de uma plateia e reafirma a importância do próprio trabalho. Desde 2018, após montar o próprio espaço e tornar-se um profissional autônomo, ele rejeita a possibilidade de ter que se inserir novamente em um dinâmica exploratória entre patrão e empregado e acredita que esta relação só se encerra quando toda uma cadeia de trabalhadores é valorizada. “Não adianta eu querer valorizar o meu cachê e pagar para os meus cenotécnicos só 50 reais por dia, pagar 20 pila para um carregador, não faz sentido.”
A luz que o olho recebe não é a mesma que transpassa a lente
Foi na Faculdade de Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que Kevin Brezolin fez os primeiros trabalhos como iluminador há quase 10 anos. Desde então, delineou silhuetas e ampliou contrastes da luz que daria vida à imagem dos ídolos de uma plateia. Além de iluminar diversos artistas em algumas casas de shows de Porto Alegre, como o Agulha e o Opinião, ele também faz entregas de bicicleta pela cidade desde 2017. Levar comida até as pessoas e executar alguns trabalhos na área musical, como mixagem, produção e aulas de música, foram as atividades que preencheram os dias de um longo período ausente de multidões.
Carol Zimmer trabalha com iluminação há 19 anos e teve um percurso parecido com o de Kevin na faculdade de teatro da UFRGS, mas um corpo, marcado por outro gênero e identidade, faz com que a experiência, tanto no palco quanto na vida, seja diferente. Antes da pandemia, ela costumava levar o filho, João, para os palcos. Era ali que se formava uma rede de apoio que cuidava do menino enquanto o trabalho nos bastidores iniciava. Produtores e técnicos brincavam com a criança e, assim, era possível conciliar uma agenda lotada com a tarefa de ser mãe. Já que a atividade na música e no teatro foi paralisada com a pandemia, os dias ficaram fragmentados entre tarefas domésticas e os cuidados com uma criança, trabalho este que não é remunerado. “Nunca fui muito de ficar em casa, eu ficava muito na rua, sempre correndo, trabalhando. Daí também tinha essa demanda de atender ele, dar conta da energia dele. Eu tinha que cozinhar, mas não tinha o fazer artístico”, comenta.
Momentos de catarse coletiva em eventos culturais com grande público já fazem parte da memória de muitas pessoas, mas a esperança de viver a euforia do encontro entre artista e público, por vezes, sublima o contexto de uma distopia brasileira que flerta com o real. Tanto Kevin quanto Carol acreditam que a sociedade ainda terá a possibilidade de assistir shows no futuro, mas que as dinâmicas de trabalho no setor da cultura serão modificadas. Com as novas adaptações de espetáculos filmados e disponíveis na internet, será preciso pensar a luz de novas maneiras. “Essa hibridização não vai se desfazer. Acho que mesmo quando a gente voltar a ter o presencial, voltar a ter público, vai continuar tendo as lives. Tem que achar esse meio termo de começar a criar, montar e principalmente executar uma iluminação de palco que funcione tanto pro olho do espectador que tá ali assistindo, tanto pras câmeras que estão captando”, explica Carol.
O palco como reflexo do agora
Alice Castiel chega e senta em uma cadeira em frente ao palco. Caixas de som e objetos decorativos compõem um reduto de memórias onde ela teve a possibilidade de investir em projetos afetivos e expandir o trabalho como produtora musical. Foi em 2018, na casa de shows Agulha, que ela criou o Projeto Concha, um palco destinado exclusivamente a artistas brasileiras e que recebeu muitas delas, tais como Luedji Luna, Anelis Assumpção, Letrux, Xênia França e tantas outras. Para ela, a função do produtor é como a metáfora de um mapa, alguém que aponta direções e permite que o outro possa fazer escolhas. “Eu gosto de pensar na função do produtor, um pouco, como essa pessoa que tenta encontrar alguns sentidos coerentes dentro desse grande caos, extremamente saudável e lógico que é fazer arte.”
No início da pandemia, Alice e o seu companheiro começaram a produzir e vender massa caseira como uma forma de preencher o tempo ocioso e gerar renda, mas a atividade não se prolongou por muito tempo. Logo abriram alguns editais de incentivo à cultura que proporcionaram o retorno dela ao palco, mas dessa vez sem público presencial. Ela foi contemplada por um edital da Lei Aldir Blanc com o projeto Ialodê, um show gravado que encheu, com todos os cuidados necessários, o palco da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) com 17 músicos e quatro das principais vozes da música negra no Rio Grande do Sul. Ela espera continuar trabalhando com produção cultural e acredita que um palco cheio é a continuação da arte e o reflexo de um tempo. “Quando tem essa comunhão de artista e público é quando rola isso. É o testemunho real do presente. E tem alguma coisa mais valiosa que viver o presente?”
Documentário: Quem monta um palco vazio?
Neste documentário realizado pelo Nonada, a jornalista Jessica Menzel ouviu, em Porto Alegre/RS, diversos profissionais da música para compreender como a pandemia de covid-19 vai afetar o futuro do setor.
*Jessica Menzel é jornalista, e adepta de temáticas culturais e artísticas. Trabalha como freelancer produzindo reportagens, textos e conteúdos multimídias.