Foto: Gustavo Schossler/

Flip 2022 tenta ver o invisível: uma conversa com a curadora Fernanda Bastos

A Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) chega a sua vigésima edição neste 23 de novembro, promovendo quatro dias de discussões em diversas mesas literárias nas ruas da cidade, permitindo a construção de novas visões sobre a literatura. Com o tema “Ver o invisível”, e homenageando pela primeira vez uma escritora negra, na figura de Maria Firmina dos Reis, autora do celebrado romance Úrsula, o evento tem tudo para ser histórico. 

A Flip continua com a curadoria coletiva e agora traz, pela primeira vez, duas mulheres negras na função, a poeta e editora da Figura de Linguagem Fernanda Bastos e a professora da Universidade Federal da Bahia Milena Britto. Além delas, o crítico literário Pedro Monteiro fecha o trio. A ideia era também descentralizar a discussão e os convidados para além do eixo Rio- São Paulo.

Entre os destaques desta edição está a escritora francesa Annie Ernaux, vencedora do Nobel de Literatura deste ano, e a cubana Teresa Cárdenas. A argentina Camila Sosa Villada e o chileno Benjamin Labatut vêm ao Brasil falar da dissolução de fronteiras entre os gêneros literários. E a brasileira Amara Moira participa da Flip para levantar a questão dos limites entre vida pessoal e literatura. 

Conversamos com Fernanda Bastos, que também é poeta, editora na Figura de Linguagem, jornalista, sobre a construção da Flip deste ano, e também um pouco sobre a sua carreira e visões sobre literatura. 

Nonada – Qual a importância de integrar uma curadoria coletiva e quais foram alguns dos direcionamentos dessa edição?

Fernanda Bastos – O evento teve uma curadoria coletiva no ano passado, e a ideia se manteve. Acho que o convite surge também pelo meu perfil como editora, e que vem de uma editora negra, como é a Figura de Linguagem, e de alguém que fala de um lugar fora do eixo Rio-São Paulo. E tem a ver com a construção de uma trajetória mesmo. Há muitas pessoas há muito mais tempo no campo e tão qualificadas quanto, mas é o tipo de uma trajetória que se faz de uma forma específica. Eu e a Milena Britto, como somos duas mulheres e as duas primeiras negras nesse posto, a gente conversa muito sobre o quanto é fácil para esse eixo Rio-São Paulo olhar só para si. E o quanto a gente força que olhe para outros lugares, que se dê o mesmo tipo de respeito para lugares diferentes e até para o inesperado. 

Por exemplo, quando a Annie Ernaux ganhou o prêmio Nobel, para nós foi um grande orgulho. Quando saiu a notícia que ela estaria na Flip (ela foi convidada antes da premiação), só ouvimos coisas maravilhosas, mas claro que alguém pode ter pensado que “ah, mas eu não vejo um super nome”. E nós fizemos uma aposta. Para nós, ela era um super nome. Para nós todos os nomes que estão na Flip deste ano são super nomes. Independentemente se eles estão na editora X, se eles publicam há tantos anos. “Ah, tal pessoa está aí há tanto tempo e não aconteceu”. O que é “aconteceu”? Estar em uma manchete em um grande jornal? Estar em uma grande editora? Não pensamos dessa forma. 

Então, essa notícia [do Nobel para Ernaux] para nós é simbólica porque reforça o nosso comprometimento com os lugares diferentes ou com os lugares não necessariamente esperados. É um trabalho incessante o de curadoria e a literatura da Annie é isso também, fala de memória e muitas pessoas acham que não é matéria de literatura. Um jeito de narrar que as pessoas acham “ah, isso aí qualquer um faz”. Qualquer um faz, mas ninguém fez, ela que fez, então, é grandioso. 

Nonada – Para você, como é ocupar o cargo de curadoria da Flip, um dos maiores eventos literários do país?

Fernanda Bastos – Eu vejo como um reconhecimento ao trabalho da Figura de Linguagem e da edição negra no Brasil e no Rio Grande do Sul. E também a uma representação do quão forte o estado é no campo da edição. Já dei várias entrevistas para outros lugares do país e eles sempre comentam o quanto o Rio Grande do Sul tem um mercado editorial forte, com a Feira do Livro de Porto Alegre e intelectuais da literatura que são muito conhecidos, além de editores e editoras e autores e autoras.  

Eu vejo isso como um reconhecimento no nível pessoal também, embora nem sempre o Rio Grande do Sul se veja em mim, porque mulher, porque negra, porque de uma editora negra, porque de uma editora independente. Existe um anti-gauchismo do gaúcho infelizmente, às vezes não reconhece as suas vitórias. Mas independentemente das pessoas reconhecerem ou não a importância de eu estar nesse posto, eu estou levando comigo também a condição de estar ali como uma mulher negra e que vai necessariamente estar levando outras mulheres negras para aquilo de alguma forma.

Maria Firmina dos Reis (Ilustração: selo comemorativo da Assembleia Legislativa do Maranhão)

Nonada – A Flip homenageia este ano sua primeira autora negra, Maria Firmina dos Reis. Poderia explicar como foi o processo de escolha da escritora?

Fernanda Bastos – O evento nunca tinha homenageado uma autora negra, e, desde o início, achávamos que com o tema de ver o invisível, poderíamos dar uma contribuição justamente para o país. No sentido de como o Brasil às vezes não vê o que está na cara dele, o que faz parte dele. A Maria Firmina para nós tinha esse lugar, de ser uma autora que está ali, mas muitas pessoas se negam a ver. 

Ela tem uma contribuição definitiva sobre a literatura, com personagens inesquecíveis. Há um capítulo no Úrsula, cujo nome é Preta Suzana, que pode ser feito o mesmo que se faz com o Capitão Rodrigo, do Tempo e o Vento: aquela ideia de que o capítulo vira um livro, de tão bom e inesquecível que é. Ela traz uma narrativa abolicionista, mas relatando do ponto de vista da memória. E não é por acaso, porque é alguém que está contando como foi trazida para o Brasil e a violência disso. Há relatos de que ela também teria colhido depoimentos da sua mãe, que se tornou uma pessoa livre, então ela traz isso para a literatura dela. 

Como curadores, também acreditamos que essa essa porção educadora, defensora de uma escola mista na época, também era importante. Ela lutava por uma igualdade, por respeito, por direitos humanos, e com muita coragem para produzir em um período de uma literatura ainda mais branca e masculina. A gente achava que tinha tudo a ver com a Flip deste ano, que tem duas curadoras negras pela primeira vez também. 

Nonada – Quais foram algumas das ações para tentar descentralizar a Flip este ano?

Fernanda Bastos – Abrimos um mapeamento para coletivos e clubes de leitura e teve um chamamento para editoras independentes, que é uma iniciativa muito importante também. Já havia essa demanda por descentralizar. Mesmo em um ano de muitas dificuldades, a Flip deu vários recados e está se mobilizando para ter uma abertura ainda maior. Gosto de uma fala do Mario Munhoz, nosso diretor artístico, quando diz que a Flip tem que ser mais permeável, gosto dessa imagem que ele usa. Esse mapeamento também vai nos ajudar a entender um pouco mais como pode ser essa relação. 

Nonada – Você também é poeta, com três livros lançados, sendo o mais recente Selfie Purpurina (2022), que fala da temática do carnaval e da sua família. O que mudou desde que começou a publicar? 

Fernanda Bastos – Eu não me via tanto como autora. Há uma necessidade em esperar a hora que se vai sentir assim ou o momento em que se vai saber a forma como você escreve, porque com um livro lançado apenas é difícil saber. Hoje eu sei que tem uma presença muito forte da memória no que eu escrevo, da família também, talvez o feminismo seja o principal tema. 

Mesmo no Selfie Purpurina, eu tinha um receio que fosse um livro muito masculino, por essa presença de poder muito forte que tem dos homens, por serem mais valorizados. Como em outros campos, mesmo no carnaval e na comunidade negra acontece isso também. Mas eu acho que continua sendo uma tônica a presença das mulheres. E não é um sentido um feminino somente, mas um embate feminista, eu acho que isso é presente nos quatro livros, incluindo Os árbitros, as botas, as melancias e os postes também, que não é poesia. 

Já me convidaram para escrever outros tipos de gêneros, como conto e romance, mas não tenho vontade. Pode ser que um dia eu faça, mas por enquanto eu sou da poesia e estou na minha praia. Não acho que a pessoa começa fazendo poesia e depois fica melhor porque escreve outro gênero, entende? Acho que a poesia é um um suprassumo da vida e continuo achando isso. E acho que publicar te dá um pouco mais de segurança para se entender nas tuas fragilidades, no que tu é bom, no que deseja fazer. 

Nonada – Quais são as suas principais referências na literatura?

Fernanda Bastos –  A June Jordan, Alice Walker, Oscar Wilde, Fernanda Pessoa, Ferreira Gullar, com todos os seus problemas, Nelson Rodrigues idem, não tem anjinho só. A Adélia Prado, que amo de paixão, pensando nessas pessoas mais canônicas…A Toni Morrison, a Sonia Sanchez. E pensando nos nossos contemporâneos, também, a Alice Ruiz, a Angélica Freitas. Tem um corpo de autores com quem eu troco e aprecio, a Marília Floôr Kosby, a Ana Elisa Ribeiro, Adriana Garcia, Eliane Marques, são muito bacanas e enriquecem o campo. Complicado, porque sempre vai faltar alguém. 

A minha base é muito poesia afro-americana do século XX. O James Baldwin eu lembro que eu falava dele e pouca gente conhecia na época, sempre gostei muito do ensaísmo dele, que eu acho que é muito forte e de combate. Mas também o romance, foi um autor que eu li muito e me influencia demais. A postura intelectual dele também, assim, acho que é um um autor que não fica dourando a pílula. Ele me inspira também porque possui uma relação que é muito próxima com as outras artes, o período que ele passou na França, ele tinha muita relação com os artistas visuais – e eu tenho essa influência muito forte também de alguma forma com as artes visuais. O pessoal da literatura se vê muito numa ilha, como se a literatura comandasse tudo, e eu gosto de ver a literatura em diálogo com outras artes.

Luiz Mauricio Azevedo e Fernanda Bastos (Foto: Figura de Linguagem/divulgação)

Nonada – O trabalho da Figura de Linguagem é importante na sua trajetória. De que forma você avalia o trabalho da edição e também como impacta em seu trabalho? 

Fernanda Bastos – Como editor, você  tem que lidar com as expectativas de todos os lados. Também é um trabalho de mediação. Aprendi muito com o Luiz Maurício Azevedo, meu marido e parceiro da editora, além de escritor e crítico literário. Ele tem uma postura ética que é muito inspiradora para mim, e de coragem mesmo, porque eu sendo uma mulher negra e recebendo o tipo de ódio que eu recebi desde o início da editora, eu não teria aguentado sem o apoio dele. Então, a gente constitui uma editora também profissional e de incentivo mútuo, o que é muito importante para as nossas trajetórias continuarem. 

Eu acho pouco provável que eu tivesse levado isso tão longe, se não tivesse ele. E eu acho que ele falaria isso também, porque se torna um trabalho cansativo, ninguém que fica na edição – e nesse tipo de edição independente que a gente faz – vai ficar milionário. Não é com base nisso que a gente trabalha, é realmente por acreditar em projetos que precisam estar na rua. A Figura de Linguagem pode ser um componente importante para a bibliodiversidade no País, ou em Porto Alegre, ou em nosso bairro.

Por isso, eu lembro que quando a gente começou a trabalhar com livros sob demanda, as pessoas achavam um absurdo. Hoje as grandes editoras estão trabalhando com esse formato também. É sobre tomar decisões que as pessoas dizem que é maluquice, e depois você vê todo mundo fazendo, e quando elas fazem é genial. E quando a nano editora faz é porque ela é doida ou não sabe fazer. Quando as outras fazem elas são avant garde, mas isso faz parte também do mercado, e acho que a gente aprendeu. 

Tanto no campo artístico, como no mercado editorial, a gente tem feito isso: nós trabalhamos com o que achamos correto, tentando respeitar todos os nossos colaboradores. Sejam os autores e as autoras que toparam publicar com a gente, negros e brancos, desde o início da editora, sejam colaboradores, como as gráficas, porque se elas não quisessem trabalhar com livros sob demanda, não teríamos livros na rua. Então, para nós, é muito importante ter pessoas que acreditem no nosso trabalho. E a gente também acredita no trabalho dessas pessoas. 

Nonada Como é estar se tornando uma referência na área e para outros profissionais que podem se ver em você?

Fernanda Bastos – Para mim, entrar em uma ideia de idolatria é um dos principais problemas de uma trajetória intelectual artística. “Eu, isso, eu aquilo”. Então, eu acho que quando têm pessoas que contam contigo, você percebe mais fácil a sua responsabilidade. 

É um pouco do Selfie Purpurina, quando eu falo de Carnaval eu não estou levando só a Colombina e o Pierrot, eu estou levando uma tradição de trabalho, de luta, de suor, de invisibilidade, de desconsideração, de afastamento da cidade, de rejeição, de ofensa, de alegria, de gozo, de várias coisas juntas. Ser referência é OK, mas sou eu que estou ocupando esses espaços. Não posso representar as pessoas somente, cada um é dono do seu próprio destino e seu próprio trabalho, o projeto estético é meu. Mas eu carrego essa responsabilidade de estar representando outras pessoas também, e que outras pessoas podem se projetar, sejam elas negras ou não, mulheres ou não.  Para falar daquelas que eu acho que são as que se identificam mesmo comigo. 

Acho que é bom saber que as pessoas também se decepcionam. Já teve coisas às vezes de postar alguma coisa nas redes sociais e as pessoas dizerem, “fiquei decepcionada, porque achava que tu tinha que ir por aqui ou por lá”. E isso é bom também porque às vezes as cobranças são injustas, mas às vezes as cobranças fazem com que você perceba o que as pessoas estão projetando sobre você.  Então tem que ver se você está se comunicando bem, se está seguindo um caminho que é o caminho mais fácil ou o que o mercado quer. 

No meu caso, que sou independente, as responsabilidades eu entendo que são mais voltadas para as pessoas que trabalham nesse meio junto comigo. O meu comprometimento maior é com pessoas que estão do meu lado, que é o lado independente. Independentemente dos públicos que eu também acione. Mas não basta só ser mulher ou ser negra. Eu sou uma poeta, sou independente, e isso já vai criando cortes de representação.

Eu estou nos lugares que eu acho importante. Mas que Flip vai ser essa que eu participei da curadoria? Eu entendo que é uma Flip que é bem específica, bem genuína nessa lógica de olhar o invisível. É mainstream, porque é o maior evento, mas é uma outra forma de fazer mainstream, que eu acho que é possível também e que eu não sei se dura muito. Mas eu acho que se acontecer uma vez já é super válido.

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Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.
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