Ilustração: OBEC-BA

Apenas 11% dos grupos de capoeira em Salvador têm espaços próprios, mostra pesquisa

A falta de um espaço próprio de trabalho é uma das principais dificuldades enfrentadas pelos mestres de Capoeira de Salvador. É o que revela uma pesquisa do Observatório da Economia Criativa da Bahia (OBEC-BA) finalizada em janeiro. O estudo faz um panorama da dimensão econômica da capoeira na capital baiana, realizada a partir de entrevistas com 67 mestres e mestras que atuam na cidade. O Nonada Jornalismo teve acesso ao relatório da pesquisa, que será publicado em breve, e conversou com Daniele Canedo, pesquisadora e coordenadora do OBEC desde 2015. A maioria dos entrevistados são homens (77,6%), de cor preta (67,2%) e que acessaram o ensino superior. 

Um dos dados mais relevantes que a pesquisa revelou é sobre o modelo de organização da produção, em especial os espaços que são dedicados à atividade de capoeira. Apenas 11% dos mestres e mestras têm uma sede própria para praticar exclusivamente a capoeira em Salvador. “A gente entende que ter uma sede é muito importante para capoeira. Há essa necessidade e desejo do campo de você tenha sua escola, porque é uma tradição”, analisa Daniele. 

Os espaços onde os grupos atuam são majoritariamente emprestados, alugados ou espaços públicos cedidos. Para a pesquisadora, essa informação é importante, já que ter uma sede significa uma consolidação do trabalho em determinado local. “Você consegue formar, ter atuação dentro da comunidade, os alunos podem retornar. Quando você se movimenta muito, há uma tendência conhecida dentro da capoeira que peçam para você sair dos espaços em algum momento”, explica. 

A migração constante de mestres e mestras foi um dos aspectos mais mencionados oralmente nas entrevistas, como obstáculo para a continuidade do trabalho.  De acordo com a pesquisa, apenas 6% dos mestres e mestras disseram ter a sustentabilidade para se manter em um espaço.  Quando foram perguntados sobre qual seria o maior gasto fixo, disseram, justamente, o pagamento de contas para manutenção das sedes. 

“A maioria das políticas públicas da capoeira, até hoje, estão muito ligadas a uma ideia de dar apoio para dar um evento, para gravar um CD, para fazer um livro. Os apoios são para atividades excepcionais e não ao dia a dia dessas pessoas”, reflete. O apoio para a sobrevivência de mestres da cultura popular, não só da capoeira, já foi debatido enquanto projeto de lei, mas ainda não teve aprovação do congresso. 

Mestres no Ensino Superior 

“Um dado que surpreendeu foi o dado de escolaridade. 65,8% dos respondentes, líderes de grupos de capoeira, acessaram cursos superiores”,  explica. “Esse é um dado que merece destaque, porque a gente sabe do baixo acesso de mestres e mestras da cultura popular, a maioria negros, ao ensino formal no Brasil”. De acordo com a última PNAD contínua, apenas 22% da população negra de Salvador tem curso superior completo. Daniele atribui o número encontrado na pesquisa à pressão que se tem realizado para que espaços como a universidade sejam ocupados. 

Embora seja um dado a destacar, a pesquisadora lembra que o conhecimento dos mestres está muito além do saber institucionalizado. “São pessoas que têm muito conhecimento, muita vivência da prática através da oralidade, de ter aprendido com seus mestres. De ter feito muitos anos de formação com a capoeira, porque até você dar aula você tem que treinar muito e mostrar o que sabe fazer.” 

Ela ressalta a disputa que existe em relação à Confederação Nacional da Educação Física, que há anos tenta regulamentar a capoeira e propor que só pessoas com o nível superior possam dar aula. “A comunidade da capoeira sempre foi veemente contra, porque nós entendemos que trata-se da cultura oral, da cultura popular. Mas a gente percebe que essa pressão tem se refletido, de alguma forma, na busca dessas pessoas por uma formação.” A maioria dos respondentes, 92%, tem mais de 20 anos de capoeira, então o dado também identifica a entrada de pessoas com mais de 40 anos na academia. 

Falta de espaços próprios é entrave para sustentabilidade dos grupos (Foto: Iphan/reprodução)

Caminhos da sustentabilidade

A pesquisa também mostra que a comercialização de produtos e serviços é a principal fonte de receita dos mestres. Entre as diferentes opções que constavam no questionário – turismo, shows, eventos -, as aulas aparecem como serviço que gera mais receita para 73% dos entrevistados. “As aulas para turistas em Salvador vieram muito depois, mostrando que o básico da atividade garante a manutenção dela”, diz a pesquisadora. 

Quanto aos produtos, a resposta também foi surpreendente para as pesquisadoras, que identificaram que a roupa básica do capoeirista (camisa e calça) é uma das principais fontes de renda, o que levou o grupo a concluir que o considerado “básico” é o que mantém o trabalho da capoeira economicamente. 

Os impactos econômicos extrapolam o setor cultural. A maioria dos bens de vestuário utilizados e os materiais dos instrumentos de capoeira são produzidos em Salvador – o que demonstra um impacto de geração de renda na economia local. “Nós que estudamos a economia da cultura entendemos que o investimento na produção artístico-cultural gera a externalização na economia. Quanto mais recurso investido em uma arte tradicional,  patrimônio imaterial da humanidade, como é a capoeira, isso também vai se refletir em Dona Ana, que tem uma pequena confecção de camisa, em Seu José, que tem produção de linha, no ‘armarinho’ do bairro. Conseguimos mobilizar a economia onde as pessoas estão.” 

Outro dado que a pesquisa revelou é o movimento de internacionalização da capoeira. Ao serem formadas por mestres, os chamados ‘núcleos’ de capoeira de Salvador vão se expandindo, e  capoeira se encontram em 31 países, como Estados Unidos e Argentina.  Só em Salvador, a pesquisa identificou 179 núcleos diferentes, que estão localizados em 79 bairros da cidade.  Os Mestres e Mestras também relataram que costumam viajar a trabalho. 63% dos mestres/as viajaram para outros países pelo menos uma vez por ano entre 2015 e 2019. O destino mais comum são países da Europa. 

A importância de mapear

“Nós temos no Brasil, uma carência muito grande de dados sobre a economia da cultura e a economia criativa. Precisamos ter uma conta satélite que mapeie os investimentos do governo federal, estadual, municipal que  se refletem na cultura”, reflete Daniele. A pesquisadora acredita que, através de pesquisas qualificadas, que olhem para a macroeconomia, a microeconomia cultural também pode ser beneficiada. Algumas áreas, segundo ela, são mais ricas em dados – como o setor do audiovisual, enquanto outras têm panoramas inexistentes. 

O mapeamento da OBEC é o primeiro a buscar outras informações sobre a capoeira, já que não encontraram informações oficiais. Antes do desmonte, a Fundação Palmares era responsável por mapear, através de cadastros, porém esses arquivos não são atualizados desde 2015. “Os estudos são fundamentais para que a gente possa tomar decisões mais coerentes e para que as políticas públicas possam atender as pessoas. É importante, inclusive, para que o próprio capoeirista possa tomar decisões.” 

O desejo das pesquisadoras é que, em primeiro lugar, estes dados retornem aos mestres, que eles e elas possam conhecer este panorama geral. “Esperamos estimular os grupos a se organizarem, se institucionalizarem, e buscarem apoio dos Editais, tendo em visto que poucos disseram buscar”, explica Daniele. Antes do governo Bolsonaro, haviam os conselhos de salvaguarda da capoeira, sob a alçada do Iphan. Com a descontinuidade das políticas, elas esperam que agora seja possível que novas políticas públicas sejam elaboradas e que a capoeira e seus fazedores possam ser contemplados. 

cropped-mestra-capoeira.png
Legado dos mestres e mestras de capoeira no Brasil vêm sendo ameaçado por grupos evangélicos (Foto: Iphan/reprodução)

Patrimônio cultural em risco

Casos de censura e apropriação cultural da capoeira por grupos evangélicos têm preocupado capoeiristas em várias cidades do país. É o que mostra um documento do Iphan divulgado em fevereiro de 2022 e divulgado na ocasião pelo Nonada. Trata-se de um parecer sobre o Ofício dos mestres e mestras de capoeira, registrado como patrimônio cultural em todos os estados do Brasil. 

O documento traz uma série de apontamentos e recomendações para incentivar a salvaguarda e a continuidade da atividade, praticada por pelo menos 1100 coletivos no Brasil, segundo levantamento do Instituto. O parecer é embasado em relatos de capoeiristas colhidos em 2021, que serão reunidos para a candidatura da roda de capoeira como Patrimônio Cultural da Humanidade junto à Unesco.

O estudo mostra que ainda há muita dificuldade dos mestres e mestras em receber apoio do poder público, embora desde 2008 a capoeira seja reconhecida como patrimônio cultural do Brasil. “Para fazer uso desses espaços [públicos] precisam recorrer a autorização permanentes, o que, segundo eles, resulta, não raro, nas desistências em realizar as rodas nesses ambientes”, diz um depoimento coletado no Amazonas. Já no Mato Grosso do Sul, houve denúncias de proibição da prática em praças públicas, além da falta de espaços públicos adequados.  

Outro risco relatado pelos capoeiristas é a descaracterização do ofício, seja por apropriação cultural, seja pela exigência de burocracia para o reconhecimento da atividade. Em estados do norte do país, tem crescido a prática da chamada “capoeira gospel”, que, segundo relatório do Iphan no Pará, “tende a negar ou renunciar os elementos de origem africana e afrobrasileira na prática da capoeira, o que constitui uma ameaça”. No Tocantins e no Amazonas, essas rodas evangélicas se aproximam da intolerância religiosa ao proibirem cantos afro-brasileiros e até mesmo algumas expressões tradicionais que fazem parte da capoeira. 

Paralelamente, os capoeiristas enfrentam dificuldades em angariar recursos públicos, por motivos como “a burocracia para acessar os editais”, a quantidade insuficiente de verba destinada ao patrimônio imaterial e ainda a dificuldade de “compreender a linguagem técnica empregada nos editais”.

Compartilhe
Ler mais sobre
culturas populares
Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
Ler mais sobre
Culturas populares Entrevista

Luiz Rufino: “Tenho dificuldade com quem pensa a descolonização como um passe de mágica”