Obra de Moisés Patrício (Foto: Rodrigo Reis/divulgação)

Artistas e curadores apontam caminhos para olhar o sagrado afrorreligioso

Uma carta endereçada a Exu diz “Santo Antônio é meu padrinho/ Xangô é meu padroeiro / Iansã segura  a gira / Pai Ogum está no terreiro”. As palavras repetem-se sobre um lençol branco. O remetente da carta é Cipriano, um dos 240 artistas que integram a 1ª edição da mostra Dos Brasis – arte e pensamento negro, que estreou em 2023 marcando presença nas listas nacionais e internacionais de eventos mais importantes do ano, como a estadunidense ARTnews e a SP-Arte. 

A mostra se consolidou como a mais abrangente dedicada exclusivamente à produção de artistas negros contemporâneos já realizada no Brasil, contemplando aproximadamente 340 obras. Em exposição no Sesc Belenzinho, em São Paulo, até 28 de janeiro de 2024, ela circulará pelo Brasil nos próximos 10 anos em montagens diferentes da original.  

A obra de Cipriano apresentada na mostra compõe a série Macumba, em que o artista envia cartas aos Orixás sempre escritas sob tecidos.  Seu nome já conta parte importante de sua história: Cipriano é o nome de um preto velho do terreiro de umbanda que ele frequenta desde criança, e é também o sobrenome de sua mãe. 

Natural de Petrópolis (RJ), ele é autor do conceito Macumba Pictórica, desenvolvido em sua pesquisa de mestrado na Universidade Federal de Juiz de Fora. O termo define seu processo de criação, a “gestualística” – o gesto nutrido de uma ritualística, que nasce de um cruzamento entre o que se realiza no terreiro e na criação artística. 

O desejo do artista é também ressignificar a palavra macumba para que seus sentidos sejam expandidos no imaginário popular. “Macumba durante muito tempo virou metonímia do racismo religioso. Eu ressignifico trazendo o que, de fato, significa. Ela é uma palavra em kimbundo que quer dizer ‘muitos kumbos’. Kumba, segundo Nei Lopes, quer dizer feiticeiro. Mas eu interpreto como ‘transformador’. Aquele que transforma a matéria”, explica o artista que também participa das exposições Um Defeito de Cor, exposição itinerante baseada no livro homônimo de Ana Maria Gonçalves, Um Oceano para Lavar as Mãos

Obra de Cipriano (Foto: divulgação)

Em um momento que o pai enfrentava problemas de Saúde, Cipriano teve a ideia de enviar uma carta para Oxalá. “Sendo um artista, eu queria mandar essa carta da mesma forma que os Kumbas faziam. Foi quando pensei nesse deslocamento do terreiro de umbanda para as artes”. Ele lembra que o deslocamento é uma prática artística conhecida na história da arte moderna – basta pensar em Duchamp. A escolha do lençol como suporte para o desenho surgiu pela própria materialidade do tecido, associado à sensação de segurança, acolhimento, proteção, que para o artista é o que de maneira geral se busca nos terreiros. 

“Quando criança, fazendo aulas de pintura, comecei a entender o terreiro de umbanda como lugar de artes também, pois encontrava o canto, a dança e o desenho. Na escola,  encontrei grandes artistas, como Renoir e Monet, mas queria encontrar Oxóssi e Xangô também. Hoje meu trabalho tem Monet e também Macumba.” 

O que Cipriano faz no ateliê é reverenciar o chão que pisa, enquanto escreve as palavras – o ponto riscado. É como um texto imagético, que conta a história de uma entidade através da repetição. Tal qual caboclos e pretos velhos, o artista traz informações sobre as origem, as energias movimentadas e os Orixás vinculados em seus trabalhos. O tempo todo ele faz uma correspondência entre as práticas artísticas e do terreiro. O artista pensa a partir de duplos, correspondências, como se pode observar nas próprias obras, cujos versos são tão importantes quanto as frentes. O resultado final é um híbrido entre a pintura, o desenho e a escrita, em que uma espécie de espiralar esfumaçado se forma para contar uma história.

O curador Igor Simões (foto: Vicente Melo/divulgação)

Dos Brasis: da pesquisa à exposição

O processo de pesquisa para a Dos Brasis, iniciado em 2019, passou por todas as regiões do país e contemplou diversas linguagens artísticas como pintura, fotografia, escultura, instalações e videoinstalações, produzidos entre o fim do século XVIII até o século XXI. 

O Nonada Jornalismo conversou com o curador geral da exposição, Igor Simões sobre a presença do sagrado afrorreligioso e a necessidade de novas narrativas que desestabilizem a história da arte branco-brasileira e não restrinjam a produção de artistas negros e negras em temáticas ou chaves de leituras enclausurantes. Ouvimos também artistas participantes da mostra que têm o sagrado como constituinte de suas obras. 

Para começar essa conversa, fomos para o interior de outra exposição que Igor assinou a curadoria. Em 2023, o pesquisador curou a individual de Mestre Didi no Inhotim, em parceria com Deri Andrade, idealizador do Projeto Afro. Embora sejam exposições diferentes, há alguns pontos de contato com Dos Brasis que merecem destaque. A mostra, em cartaz no primeiro semestre do ano passado, em homenagem ao mestre e sacerdote, foi intitulada Mestre Didi: os iniciados no mistério não morrem

O título parte de um canto entoado na morte de um Ojé, posto do culto Egungum, que diz que não há morte. “A exposição teve o desejo de tirar o Mestre Didi dessas narrativas que envolvem apenas o mistério, apenas o sacerdote, e não olham para esse artista que está produzindo ali, com exímio domínio da sua prática”, explica Igor Simões, doutor em Artes Visuais pela UFRGS.

Em Dos Brasis, o curador, em parceria com  Lorraine Mendes e Marcelo Campos, trouxe como concepção central a necessidade de se evidenciar a qualidade artística imprimida em uma diversidade de produções, linguagens e temáticas dos artistas. O curador ressalta a urgência de quebrar os olhares únicos aprendidos com a arte branco-brasileira – termo de sua autoria. “Há uma herança na história da arte branco-brasileira de associar continuamente a ideia de artista negro e religiosidade, mesmo quando o trabalho não atravessa essas questões.” O perigo dessa recorrência é a permanência de uma ideia de uma produção “espontânea”, “mágica”, como se fosse possível que esses artistas elaborassem poéticas duradouras apenas baseados no preceito da fé. 

A exposição Dos Brasis no Sesc Belenzinho (Foto: Matheus José Maria/divulgação)

Igor lembra que essa visão estabelece-se entre as décadas de 50 a 80, com uma origem ainda mais antiga nas vanguardas europeias, e foi corroborada por artistas, muitas vezes estrangeiros, como Pierre Verger e Carybé, que assumiram posições de porta-vozes da cultura afro-brasileira. “É fundante para nós que estudamos artes produzidas por negros no Brasil atravessamentos com a religiosidade. Mas é também absolutamente perverso jogar essa perspectiva sobre toda e qualquer produção preta.” 

Isso não significa que a religiosidade afro-brasileira não esteja presente na exposição, porque ela está através de artistas de várias gerações. Ela aparece em vários dos sete núcleos – Romper, Branco Tema, Negro Vida, Amefricanas, Organização Já, Legitima Defesa e Baobá – que revenciancia pensamentos de importantes intelectuais negros da história do Brasil como Beatriz Nascimento, Guerreiro Ramos, Lélia Gonzales e Luiz Gama. 

No Núcleo Baobá, há uma lembrança a Emanoel Araújo, teórico, curador e idealizador do Museu Afro Brasil. “Aqui reverenciamos artistas e obras que continuam sendo árvores, ramificando, florescendo, frutificando, e ficando raízes”, dizem os curadores no catálogo. É o caso de Deoscóredes Maximiliano dos Santos, o Mestre Didi. 

A raiz em Mestre Didi 

Mestre Didi, para Igor Simões, é um “afrodiásporico por excelência”, já que ele desempenhou atividades diversas como escritor, educador e fundador da comunidade Ilê Axipá. Um dos destaques da mostra no Sesc Belenzinho são trabalhos comissionados, em que sete artistas integrantes do Ilê produziram obras inéditas para Dos Brasis. André Otun Laran, Antônio Oloxedê,  Edivaldo Bolagi, Wellington Mendes, Jurandyr Sobrinho, Marco Aurélio Luz e Petinho criaram para a mostra após uma visita dos curadores ao terreiro. Eles partem das raízes artísticas deixadas pelo Mestre, que segundo Igor, “é importante base para compreensão da cultura brasileira.” 

Nascido em Salvador, António Oloxedê é artista e sacerdote do Ilê Axipá e neto de Mestre Didi. Antônio utiliza taliscas de coqueiro, guizos e búzios na criação de esculturas que se assemelham visualmente àquelas produzidas por seu avô. Oloxedê foi o responsável pelo restauro das obras e mantém a continuidade do legado do escultor, contribuindo para manutenção e reinterpretação de ferramentas de tradição milenar no culto do Orixás.

Ele começou a criar as obras sem o avô saber. Quando Mestre Didi adoeceu,  mostrou que estava produzindo com base naquilo que havia aprendido com ele. “Ele ficou satisfeito, como se pudesse morrer alegre por saber que uma pessoa da família continuaria”, conta. Para Antônio, o diálogo entre o terreiro e o espaço de arte acontece desde a concepção, feitura e exposição das obras. “O sagrado pode estar fora do terreiro, porque os Orixás, os Eguns e os antepassados estão nas obras também”, explica o artista que já expôs em museus como o MAM-Bahia e MAR (Museu de Arte do Rio).

A Bahia foi um dos primeiros lugares de pesquisa curatorial de Dos Brasis, realizada em todos os estados do Brasil em 2022. Nas visitas, ficou nítido que a obra de Mestre Didi havia deixado um legado na formação de uma nova geração de artistas, que preservam sua técnica, mas também utilizam outras mídias como a fotografia e a instalação. “Quando estive no Ilê Axipá pela primeira vez, entendi que a produção artística do Mestre era parte de um empreendimento artístico, intelectual, civilizatório muito mais amplo”, conta Igor. 

Presente para Iemanjá 

Para a artista Glauce Santos, ser uma “artista de terreiro” tornou-se um lugar de potência. Encontrar essa identificação foi uma como um “aquilombamento”, um lugar de encontro, importante em sua trajetória nas artes em Belém.  Em uma parede do núcleo Amefricanas, inspirado no conceito político-cultural de Lélia Gonzalez, vemos um conjunto de 20 caixas azuis que se repetem em fileiras. Dentro delas, uma imagem de Iemanjá sincretizada, ao lado de um espelho (Abebé), um pente e conchas do mar. A obra, intitulada Presente para Iemanjá, é de autoria da artista visual, curadora e pesquisadora paraense Glauce Santos. A obra integra a série iniciada em 2020 pela artista que culminou em na exposição Entre o Rio e o Mar, realizada em Belém. 

“Eu me aproprio desses materiais vendidos em casas de artigos afro religiosos, adicionando outros elementos, como conchas e tecidos”, explica. A escolha da imagem sincretizada de Iemanjá vem porque era a divindade que ela cultuava no terreiro que frequenta desde a infância com a mãe. Desde 2015, a artista e pesquisadora organiza exposições reunindo a produção de artistas que se intitulam “artistas de terreiro”. Ao lado do artista e pesquisador Jean Ribeiro, também integrante de Dos Brasis, a dupla dá continuidade ao trabalho do professor da UFPA Arthur Leandro que cunhou a expressão “artistas de terreiro”. 

Obra de Glauce Santos (Foto: divulgação)

A artista lembra que o surgimento do termo foi fruto da insatisfação de muitos artistas que não viam seus trabalhos contemplados nas exposições realizadas na cidade. “Muitas pessoas não se viam como artistas, como se precisassem de uma validação institucional. Há dez anos atrás, artistas de terreiro se inscreviam em editais e seus trabalhos não eram compreendidos”, relata. O termo, para ela, surge como uma forma de conexão e oportunidade para aqueles que trabalham neste trânsito de espaços.

Durante 7 anos, Glauce e Jean organizaram uma programação expandida chamada ‘Nós de Aruanda’, que contemplava rodas de conversa, performances e mostras de filmes. Cada ano um Orixá era homenageado na exposição coletiva. “O projeto construiu uma geração de artistas, orientando, incentivando”, conta. 

O trabalho artístico de Glauce sempre esteve muito ligado às águas, como nas séries As águas e em A mulher cujos filhos são peixes. “Comecei a estudar essas divindades e a origem delas”. Como uma mulher afro-amazônida, que morou muitos anos no Marajó, as águas marcam a vida da artista, assim como as travessias.  

Na infância, a mãe a levava para o Terreiro, onde recebia banhos, defumação e passe. Hoje ela é suspensa para o cargo de Ekedji (mulher não rodante) em um terreiro de candomblé da nação Jeje Savalu no Pará. “Estar no mestrado e na exposição falando sobre religiosidade, com um trabalho artístico que é pautado nessas vivências,  é fazer um caminho de volta para me ressignificar”, conta. 

Obra de Rubem Valentim, 1962 (foto: acervo MASP)

Olhares ampliados  

Mesmo ao olhar o sagrado afrorreligioso, volta a ser importante atentar para a pluralidade que há nele. A discussão sobre a conexão entre o sagrado e a produção artística negra contemporânea passa por essa compreensão. O curador exemplifica citando artistas cujas poéticas atravessam e são atravessadas pelas religiosidades afro-brasileira, mas lembra que isso não é uma brecha para categorização ou uniformização dos trabalhos.  O esforço – acadêmico e curatorial – de Igor é também para que as leituras sobre as produções artistas negros e negras sejam expandidas e aprofundadas. 

Exposições como Dos Brasis trazem esse propósito de questionar olhares viciados em classificações reducionistas. “Quando pensamos em Rubem Valentim é evidente que os signos religiosos são a base de sua produção. Mas, além disso, Rubem Valentim consegue elaborar um pensamento que funda noções de contemporâneo a partir de um domínio de elementos formais e artísticos”, explica Igor. “Ele se conecta com uma modernidade atlântica que extrapola a noção territorial.” 

Assim como o curador parte do ponto de que “Arte afro-brasileira não é uma categoria estética, mas uma categoria política”, podemos observar que a religiosidade afro-brasileira também não é uma categoria estética em que se pode aproximar artistas apenas por compartilharem de um caminho religioso em comum. 

Obra de Ayrson Heráclito (Foto: divulgação)

Na conversa, Igor sinaliza que precisamos – públicos e agentes do sistema das artes – prestar atenção na inteligência artística e poética dos artistas negros e negras. “Se posicionarmos Rubem Valentim, Mestre Didi, Ayrson Heráclito e Moisés Patrício, nós teremos trabalhos completamente distintos, embora venham de artistas iniciados”, explica.“ A gente fala de um profundo mergulho na arte, na tradição artística e na elaboração de corpos poéticos específicos”, finaliza. 

Compartilhe
Ler mais sobre
processos artísticos
Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
Curadoria Processos artísticos

Do colo à cura: a presença de Oxum em trabalhos artísticos

Comunidades tradicionais Direitos humanos Reportagem

Da história à matemática, professores levam culturas de matrizes africanas às escolas