Raquel Lemos, especial para o Nonada Jornalismo*
“Nessa caminhada, eu nunca estou sozinho, São Benedito vai abrindo o meu caminho”, cantavam os congueiros da banda Beatos de São Benedito em frente a ladeira do Convento da Penha, em Vila Velha (ES), enquanto recebiam os peregrinos que seguiam os passos de Anchieta.
Os Passos de Anchieta é uma tradicional peregrinação realizada anualmente no Espírito Santo que reconstrói a rota percorrida pelo Padre José de Anchieta entre Anchieta e Vitória. A caminhada, com cerca de 100 km, é uma homenagem ao missionário jesuíta e uma oportunidade para os participantes vivenciarem uma experiência espiritual, conectarem-se com a natureza e conhecer a história capixaba.
O grupo misto formado por mulheres, homens, crianças, evangélicos, católicos e macumbeiros vestia roupas nos tons rosa, branco e azul, e balançavam a bandeira do estado do Espírito Santo. A imagem de São Benedito, que passava de mãos em mãos, conduzia os batuques dos tambores do congo, da cuíca e do reco-reco que agitava a dança diante do mastro fincado.
A caminhada até a casa da madrinha da banda, na Prainha, região central da cidade, anunciava o fim do cortejo. “A gente passa aqui na casa da nossa madrinha, para ser abençoados. Isso simboliza a nossa união”, conta Leonardo Osório Nunes dos Santos, conhecido como mestre Naio, após receber a benção de Dealdina Salles, a guardiã do mastro de Nossa Senhora da Penha.
“Era pra ser Guarará, não era pra ser congo”
O congo é uma manifestação cultural e religiosa que surge do sincretismo religioso e da mistura de culturas ocorrida no Brasil durante o período colonial. Originalmente, era uma dança indígena chamada Guarará, que passou a ser praticada por escravizados africanos que buscavam refúgio nas aldeias indígenas após fugirem das fazendas.
Já o sincretismo religioso presente nessa cultura é resultado das estratégias dos povos escravizados para professarem sua fé, já que eram catequizados e obrigados a tocar congo em homenagem aos santos católicos, como Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.
Na tentativa de fugir dos capitães do mato, os escravizados que percorriam as matas, encontravam refúgio nas aldeias indígenas, que eram locais dificilmente acessados por esses capitães. Por isso, era comum encontrar nessas aldeias uma mistura do Guarará e das manifestações religiosas afro-brasileiras.
“Tudo foi imposto pelos brancos portugueses, porque os escravizados tinham as religiões deles de matriz africana e os indígenas de origem indígena”, afirma o mestre Naio. Foi o sincretismo que permitiu que esses povos preservassem suas tradições ancestrais no Brasil colonial.
A pesquisadora Elvira Cerniavskis, em seu trabalho intitulado “Congo: fé ou festa? Eis a questão!”, destaca que o sincretismo religioso não se limitou à sobrevivência individual da fé, mas também fomentou a união e o intercâmbio entre diferentes grupos étnicos africanos. Compartilhando um sistema de crenças adaptado, esses grupos conseguiram fortalecer seus laços e preservar suas raízes culturais de forma coletiva. No Espírito Santo, as festas de São Benedito acontecem em diversas cidades do estado, no mês de dezembro, que era o período em que os senhores de engenho se deslocavam com os escravizados para celebrar o natal em Serra-sede.
Preservando a memória ancestral
A Festa de São Benedito e a fincada do mastro, como rituais do congo, são símbolos da memória ancestral do povo que era trazido escravizado do continente africano e desembarcava no litoral capixaba. Para o cientista social e congueiro Edson Lima Coutinho, o mastro representa a fé e a resistência dos africanos escravizados que, diante da tragédia iminente, fizeram uma promessa a São Benedito: se fossem salvos, realizariam uma manifestação em sua homenagem.
Edson destaca a história de um navio que carregava escravizados pela costa do Espírito Santo e naufragou, muitos conseguiram se salvar após agarrarem o mastro, que soltou do navio, permitindo que chegassem na praia. “A fincada do mastro é uma homenagem que aconteceu primeiro para cumprir a promessa feita a São Benedito, um marco que relembra a memória dos nossos ancestrais que sobreviveram ao naufrágio. E depois começou a ser recorrente com a Festa de São Benedito anualmente”, conta.
O sincretismo religioso no Congo se manifesta na fusão de elementos das religiões africanas com o catolicismo, criando uma expressão religiosa única. Assim, essa cultura popular é mais do que uma expressão artística, é o espaço onde acontece a manutenção da memória ancestral através da música, da dança e da religiosidade.
“O congo é a manutenção contínua de saberes e fazeres ancestrais, sem perceber, enquanto cantam, as pessoas estão alimentando a sua ancestralidade. O santo é para fortalecer, trazer a sabedoria. E o congo acolhe as pessoas com essa finalidade, de trazer pra perto dos seus antepassados, sempre tem a presença marcante do tambor como ao redor do mundo, as manifestações de cultura popular sempre tem a presença de um tambor”, pontua Edson Lima.
As dificuldades geracionais e o acesso aos recursos de fomento à cultura
As bandas de congo são as principais guardiãs dessa dança e expressão religiosa que também é um gênero musical brasileiro. Segundo o Museu Vivo Barra do Jucu, o Espírito Santo conta com 66 bandas espalhadas pelo estado, que geralmente são formadas por homens, mulheres e crianças, que utilizam vários instrumentos, estandartes e indumentárias para se caracterizarem em suas apresentações. Os instrumentos que apoiam o canto das músicas e poesias do congo são os tambores, caixas, casacas e chocalhos conduzidos pelos mestres.
A gestora pública e agente cultural, Lena Cogo, conta como a conexão familiar com a pesca e as comunidades tradicionais permitiram que ela se aproximasse do Congo ainda jovem. “Meu pai saiu da periferia de Cariacica (ES) e virou pescador, eu tinha de seis para sete anos na época. Eu só não virei pescadora porque os homens não me deixavam ir para o mar com eles, mas acabei ficando ali (Itapuã-Vila Velha). Isso me levou para o universo das comunidades tradicionais, porque meu pai ia andando com os pescadores de Itapuã até a Barra do Jucu. E esse dia eu fazia festa, era o melhor dia quando eu sabia que iria para a Barra”, relembra.
Enquanto percorria o trajeto com o pai, Lena se aproximava cada vez mais da colônia de pescadores do morro da concha, e se conectava com as manifestações culturais dessas comunidades ligadas pela Ponte da Madalena, símbolo cultural da região. Esse contato despertou a sua paixão pela cultura popular.
História que se assemelha a conexão do mestre Naio com essa cultura. Ele carrega o congo como herança familiar, já que desde cedo acompanhou o tio, que também era mestre, e aprendeu as músicas, a relação religiosa do congo, além de aprender a fazer casacas, instrumento do congo do qual tira recursos para seu sustento familiar.
“Meu tio, mestre Honório de Oliveira Amorim, depois que serviu o exército no Rio de Janeiro, foi viver na vila pesqueira, em Tapera, que fica na Rodovia do Sol. Hoje quando você passa lá só tem casas em condomínios de rico. Eu passei muito tempo da infância com ele, aprendendo tudo sobre o congo.”
De modo geral, a cultura do congo é familiar, ou seja, o mestre ensina um parente próximo para dar continuidade a banda. No entanto, os mestres encontram muitas dificuldades em passar adiante os ensinamentos do congo para as novas gerações.
Para o mestre Naio, a principal dificuldade está no desinteresse das novas gerações em se conectar com sua ancestralidade ou com a cultura popular, consequência também de uma política de apagamento social dessa cultura. “Se a criança ou o jovem não tiver inserido numa escola, numa comunidade do congo, dificilmente ele vai se interessar pela cultura. Lá na nossa comunidade de São Sebastião (Barra do Jucu), a gente começou plantando a sementinha na garotada e isso vem crescendo”, destaca enquanto aponta para o jovem da banda a quem passa seus ensinamentos.
A falta de valorização da cultura popular, consequência da ausência de políticas públicas eficazes, afasta o interesse dos jovens e ameaça a continuidade dessas práticas ancestrais. Para Lena Cogo, essas políticas podem contribuir tanto para o apagamento quanto para a preservação do Congo, dependendo de como são elaboradas e implementadas. Por isso, desde que começou atuar como agente cultural e gestora pública, se dedica a aproximar essas comunidades das leis de fomento à cultura.
“Quando eu entrei no universo do poder público, eu já atuava na sociedade civil, eu sempre fui comunitária. Por isso reforço que as políticas públicas de cultura tem que ser políticas públicas de estado e não de governo, para que sejam continuamente aprimoradas”, afirma.
Lena compõe a comissão de Cultura da Assembleia Legislativa do Espírito Santo (ALES), que tem pautado a construção de políticas públicas mais efetivas e acessíveis para grupos de cultura popular. A agente cultural destaca que a falta de estrutura organizacional e o acesso limitado a recursos financeiros representam obstáculos significativos para a continuidade de tradições culturais como o Congo no Espírito Santo. Um exemplo claro é a dificuldade na gestão de recursos pelas bandas de Congo, resultado da ausência de uma estrutura administrativa sólida e da falta de familiaridade com trâmites burocráticos e gestão financeira, que dificultam a obtenção e administração de recursos, mesmo quando estes são disponibilizados.
Esse problema se agrava com a falta de investimento na formação de gestores culturais dentro das próprias comunidades. “A capacitação de membros da comunidade para lidar com os aspectos administrativos e financeiros de um grupo cultural é fundamental para garantir a sustentabilidade da tradição”, afirma.
As batidas do símbolo cultural esquecido pelo colonialismo regional
No Espírito Santo, a diversidade étnica e cultural culminam em tradições trazidas pelos povos europeus como os italianos, pomeranos, alemães e holandeses nas cidades da região serrana do estado, como em Santa Teresa e Domingos Martins, cidades que mantêm algumas dessas tradições vivas. Além da região metropolitana, essas cidades estão sempre em evidência nas rotas turísticas do estado, e possuem eventos culturais que atraem pessoas de todo o país, entre eles a Festa do Imigrante Italiano e o Festival Cultural da Imigração Alemã.
Embora a Festa de São Benedito seja a principal celebração de tradição afro-brasileira e indígena no estado, as regiões tradicionais do congo não ganham tanta evidência no turismo capixaba. Para Lena Cogo, é a herança de preconceito ideológico que afeta a valorização do Congo e contribui com seu apagamento enquanto cultura que representa o Espírito Santo.
“O Espírito Santo é um estado muito conservador, e o reflexo disso é a falta de visibilidade dada ao Congo pelo capixaba. As pessoas que trabalham com a cultura popular e tradicional estão mantendo essa cultura viva, mas de modo geral a sociedade, ela não fala muito sobre isso, não valoriza como deveria e não reconhece sua importância”, afirma. Além da forte presença das culturas europeias, para Edson Lima, o racismo religioso também atravessa o dia a dia dos congueiros e contribui com o afastamento de muitas pessoas dessa manifestação tão importante para a preservação da memória ancestral.
Em 2014, o congo capixaba foi reconhecido como patrimônio imaterial do Espírito Santo. Agora em 2024, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) recebeu o pedido de registro do Congo como Patrimônio Cultural do Brasil.
Raquel Lemos
Jornalista independente e mestranda em Comunicação e Territorialidades (UFES)