Foto: Leo Otero/Ministério dos Povos Indígenas

Indígenas lançam manifesto pedindo retorno do Manto Tupinambá à aldeia em cerimônia oficial

Na cerimônia oficial de retorno do Manto Tupinambá realizada nesta quinta (12), indígenas Tupinambás leram um manifesto com críticas às tratativas e logísticas envolvendo a volta do manto ao Brasil. O evento ocorreu na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, com a presença do presidente Lula.

Quebrando o protocolo em um discurso de cerca de 10 minutos, a liderança Yakuy Tupinambá leu o manifesto, que pede o retorno do manto, chamado pelos indígenas de “nosso ancião de quase 400 anos” à aldeia de Olivença, no sul da Bahia. O manifesto também traz críticas ao Congresso, ao Judiciário e ao governo Federal. 

“Repudiamos desde já, quaisquer intervenções para nos reprimir. Também reiteramos aqui as nossas reivindicações: Retorno do manto para a aldeia Tupinambá de Olivença, construção do Museu de Arte Tupinambá. Exigimos o respeito e a garantia dos nossos direitos, estruturação e autonomia”, diz o manifesto.

Em resposta ao manifesto, ainda na cerimônia, Lula sugeriu ao governador da Bahia que construa um museu apto a salvaguardar o manto. “Eu espero que todos compreendam que o lugar do manto Tupinambá não é aqui [No museu nacional]. O retorno do ancião para o Brasil representa a retomada de uma história que foi apagada, que precisa ser contada e preservada, assim como esse manto que muitos indígenas só conhecem pela memória de seus ancestrais”, disse.

Foto: Ricardo Stuckert

O Manto Tupinambá retornou ao Brasil após um acordo com a Dinamarca, que guardava o ente há pelo menos três séculos. Um dos itens do acordo foi a permanência do manto no Museu Nacional, que está sendo restaurado e será reinaugurado. Desde que o manto chegou ao país, nas últimas semanas, os indígenas têm criticado a forma com que o ente chegou ao país e afirmam que os indígenas não tiveram acesso imediato ao bem. Após as críticas, o Museu Nacional disponibilizou o manto para que as lideranças fizessem uma vigília e rituais religiosos, que começaram no início desta semana e terminaram antes da cerimônia oficial.

Leia o manifesto lido dos Tupinambás:

Manifesto da vigília ao Manto Sagrado Tupinambá

“Por um mundo melhor, ao povo brasileiro, sociedade internacional. Irmãs, irmãos, nós, Tupinambá de Olivença, vivemos no território delimitado indígena Tupinambá de Olivença, único e contínuo, composto por 23 comunidades, porém, ainda guardando a vontade política desde 2009, para que seja assinada a portaria declaratória pelo Presidente da República e Ministro da Justiça. 

Hoje, reiteramos nossa insatisfação com a postura colonizadora unificada pelo Estado brasileiro, através das autarquias representativas que, mais uma vez, dilaceram nossos direitos originários e, muito mais que isso, fere profundamente o que mais prezamos, a nossa crença e a nossa fé. Nosso desejo, principalmente dos nossos anciãos, era que, no desembarque do manto sagrado, pudéssemos estar presentes para recebê-los com os ritos honrosos merecidos por se tratar de algo, para nós, de extrema importância espiritual e de identidade cultural.

Porém, mais uma vez, as justificativas apresentadas não convenceram. São as seguintes: conservação da peça. Concordamos, porém, não nos termos apresentados. Tratativas de acordo com o MNRJ, Museu Nacional do Rio de Janeiro e o Museu da Dinamarca. Não sabemos quais acordos foram feitos. Faltou transparência. Políticas não foram esclarecidas e também não houve transparência.

O manto sagrado esteve exposto recentemente no Museu do Ibirapuera, São Paulo. Mostra Redescobrimento Brasil 500 anos. E, na ocasião, Tupinambás foram convidados para fazer o reconhecimento da peça. Este foi um momento ímpar na história do povo, com a reconexão do manto e nossa ancestralidade.

Decidimos, portanto, fazer uma vigília que é antecedente à data do cerimonial, no caso antecedeu, saindo da Bahia até o Rio de Janeiro, conclamando todas as nações do Pinambá e demais nações indígenas, povo de quilombo, de terreiro, classe trabalhadora, movimento LGBTQIA +, aliados da sociedade civil brasileira, movimentos de luta pela terra e por moradia, movimentos de base comunitária, comunidades tradicionais, classe artística, demais aliados, simpatizantes de todos que se sentem excluídos e aterrorizados a juntarem-se conosco para cobrar nossos direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988.

Nós somos violados há muito tempo, mas ultimamente o Estado e instituições patrimonialistas desencadearam uma retirada dos direitos que afetam todo a contenção da vida do planeta. Temos hoje o pior congresso da história da República. Um judiciário egocêntrico e parcial. Um governo, senhor presidente, que nós entendemos o porquê, enfraquecido, acorrentado às alianças para se manter no poder. E ainda uma quantidade considerável de veículos de imprensa que fazem um papel sujo para o sistema dominante. Não respeitam as leis, nem os tratados e convenções internacionais. Vivemos uma democracia distorcida. 

Já são 524 anos de luta e resistência.Primeiro contra a invasão de Portugal, quando milhões dos nossos foram tombados, homens, mulheres e crianças. Nossas mulheres foram estupradas. Fomos os primeiros a experimentar a primeira guerra biológica do mundo. Quando trouxeram roupas infectadas e nos vestiram. Fomos catequizados e escravizados. Proibiram a nossa língua e a nossa crença. Usurparam nosso território. Nos declararam extintos. Roubaram nossos sagrados. Mentiram sobre nós. Distorceram e desqualificaram nossa história. Nos colocaram à margem da sociedade. Impediram de mostrar nossos rostos. Calaram nossas vozes. Por décadas e décadas. Submeteram-nos à obediência de leis que não são nossas. 

Desrespeitaram nosso direito originário. Esfoliando e explorando nosso território sagrado. Nos deixando sem terra, sem comida, sem saúde e sem dignidade. Nos tiraram a nossa autonomia. E implantaram um Estado egóico. Com estruturas que oprimem. Através do medo, aterrorizando-nos para manter a dominação. Mas não pararam por aí. Ainda continua o impulso do genocídio e a negação da nossa existência. 

O Estado brasileiro, através de suas autarquias de governo, corrobora com o processo de colonização ainda em curso. Quando, por exemplo, trazem um ancião nosso de quase 400 anos como uma propriedade. Ancião que para nós é um ente vivo, de muitas nações. E que sustenta a nossa existência. Resistência. E resiliência. Mesmo passando por riscos perigosos, do direito à vida plena. 

Graças a essa nossa resiliência, não conseguiram retirar-nos com o completo território sagrado e ancestral. Mas é evidente que o nosso patrimônio material e imaterial não está sendo tratado como merece, sem o devido respeito. E desconsiderando a importância que ele tem para nós e para todos os povos originários. Eu quero deixar bem claro aqui que não é dos cuidadores do Museu da Biblioteca Central, de quem está cuidando dele, que estamos falando. Hoje, dizemos basta. Somos os herdeiros verdadeiros do Manso Sagrado.

Ele chega trazendo força. Fé e coragem. Para todos nós, povos indígenas e povo brasileiro. E todos aqueles que existem em Alguém. O Manto Sagrado é o primeiro símbolo de força e união, genuinamente do povo que habita esse território. Desde tempos imemoriais. Por isso foi roubado de nós. E finalmente retorna para sua origem.

Porém a estrutura de poder dominante não permite que retorne para seus verdadeiros donos. Apelamos a todos nossos irmãos para que se juntem neste apelo como única forma de garantir a vida. E evitar a morte pela fome. Passe a missão insaciável de um sistema dominante e exploratório, composto por conservadores e ultraconservadores. Exigimos que parem com a colonização ainda em curso no Brasil, patrocinada pela maioria que compõe o atual congresso nacional, Sistema judiciário e governo. São estes os que ainda se mantêm nas esferas de poder do Estado. Que representam os colonizadores. Que invadiram nosso território. E saquearam as nossas riquezas. Para enriquecer as nações europeias. A ambição permanece até hoje, o desejo se mantém alimentado pela dominação que promove toda forma de justiça. 

Nos afastam de algo que para nós é inalienável, matam nossos rios. Lagos e nascentes, queimam nossas florestas. Exterminam nossa fauna, poluem nosso ar. E envenenam nossa mãe terra. Destroem elementos vitais para a manutenção de uma vida saudável. Estes são os mesmos que hoje querem tomar tudo de nós. Absolutamente tudo. Estamos ameaçados pela lei de número 14.701, que é um risco gravíssimo para o nosso, para o meio ambiente.

Basta. É preciso evitar mais inventos de genocida. Com esta declaração, anunciamos que viemos ao Rio de Janeiro para que juntos, com o nosso ancião mais velho, possamos ser escutados pelas autoridades com o poder de decisão. O Estado precisa se fazer presente onde o povo chama e não onde ele determina. E precisa também impedir o genocídio continuado e  não apoiar direta e indiretamente as diversas formas de extermínio contra o nosso povo.

Repudiamos desde já, quaisquer intervenções para nos reprimir. Também reiteramos aqui as nossas reivindicações: Retorno do manto para a aldeia Tupinambá de Olivença, construção do Museu de Arte Tupinambá. Exigimos o respeito e a garantia dos nossos direitos, estruturação e autonomia. Universidade dos povos indígenas. Reestruturação da FUNAI. Reparação aos povos indígenas e africanos. Não ao marco temporal. Demarcação já.”

Compartilhe
Ler mais sobre
comunidades tradicionais
Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
Ler mais sobre
Comunidades tradicionais Reportagem

Rede une indígenas e agricultores familiares na resistência ao avanço da soja na Amazônia mato-grossense