Pontão de Cultura Ancestralidade Africana no Brasil (Foto: divulgação)

Pontões de cultura ressurgem e ampliam atuação temática e territorial em todo o Brasil

Melissa Sayuri, especial para o Nonada Jornalismo*

Democratizar o fazer literário, valorizar as culturas de matrizes africanas, produzir pesquisas e formações sobre diversos setores da cultura. Essas são algumas das ações das dezenas de Pontões de Cultura espalhados pelo Brasil. Reconhecidos pelo governo Federal no âmbito da Política Nacional da Cultura Viva, os pontões têm o papel de mobilizar comunidades em torno de territórios ou temáticas específicas. 

Com a retomada dos recursos para o Cultura Viva, que haviam minguado ainda no governo Dilma, chegando à paralisação nos governos Temer e Bolsonaro, o Ministério da Cultura apoia atualmente 27 pontões territoriais e 15 pontões temáticos, que desenvolvem projetos em áreas como cultura popular e tradicional, diversidade, cultura indígena, literatura, entre outras. As organizações receberam entre R$ 400 mil e R$ 800 mil do Ministério da Cultura para desenvolverem atividades durante um ano.

 Os pontões têm ainda a função articuladora de conectar os pontos de cultura, que são coletivos ou entidades que atuam mais de forma local e hiperlocal, e se destacam como agentes de transformação social, promovendo o acesso à cultura e à arte nas comunidades. A proposta é tratar a cultura como um direito de todos para fortalecer a cidadania e a identidade cultural e a expectativa é que os pontões ofereçam formações  para mais de 19 mil pessoas por meio da parceria com os pontos em um ano de fomento. Cada pontão precisa também contar com um comitê gestor formado por cinco pontos de cultura. 

O Nonada conversou com integrantes de pontões de cultura do Brasil para conhecer as ações desenvolvidas pelas organizações.

De ponto a pontão, a resistência se expande

O Centro Cultural Orùnmilá, fundado em 1994 pelo estudioso e ativista Bàbá Paulo Ifatide, surgiu como uma resposta ao racismo estrutural no Brasil, buscando valorizar a cultura negra e as tradições de matriz africana. Ifatide, já sacerdote da tradição Iorubá na época, percebeu que a negação do valor cultural africano contribuía para a criminalização dos africanos e seus descendentes no país. Assim, o centro se propôs a usar o legado cultural africano como uma ferramenta de resistência e transformação social.

Localizado na periferia norte de Ribeirão Preto (SP), o Centro Cultural Orùnmilá oferece uma variedade de atividades gratuitas e abertas ao público durante todo o ano. As oficinas incluem percussão, dança afro, culinária, introdução à língua e cultura iorubá, capoeira, hip hop, maracatu e slam. Um destaque é o Afoxé Omó Orùnmilá, criado em 1995, que promove um desfile público durante o carnaval, além de seminários e festivais que celebram datas significativas para o movimento negro, como o Seminário Ojo Aiku, realizado anualmente no 20 de novembro.

Atividade no Pontão de Cultura Ancestralidade Africana no Brasil (Foto: divulgação)

O reconhecimento do Orùnmilá como Pontão de Cultura em 2023, após atuar como Ponto de Cultura desde 2009, marca uma conquista significativa para o centro, que agora passa a ser conhecido como Pontão de Cultura Ancestralidade Africana no Brasil. “Ter pontões de cultura de matriz africana é uma demanda  que apresentamos ao Ministério da Cultura há anos. E finalmente eles chegaram”, diz Ifatide. Para ele, é um grande desafio cumprir as determinações do edital e atender as expectativas dos povos tradicionais de matriz africana. “Estamos falando de um segmento da população brasileira historicamente vilipendiado pelo racismo e esquecido das políticas públicas”, afirma.

O papel dos Pontões de Cultura, segundo Ifatide, é mais que necessário para a gestão intra-rede e para o fortalecimento da rede cultural, permitindo que grupos e indivíduos que compartilham uma mesma linguagem cultural se articulem e colaborem mais efetivamente. “Ser Pontão de Cultura é a possibilidade de ir além, de articular lideranças e territórios a nível nacional, de promover a atuação em rede”, afirma. 

Além disso, destaca que os Pontões “conseguem chegar a quem faz cultura na ponta, nas quebradas, onde muitas vezes o Estado demora a alcançar, ou nem alcança”. Nesses espaços, as memórias, as identidades e as histórias, muitas vezes marginalizadas ou esquecidas, encontram voz e visibilidade, como fios que costuram o tecido cultural do Brasil.

Abrindo a palavra, iniciando a transformação

Reconhecido como o único pontão de cultura no segmento de literatura, o Instituto Abre Palavra realiza oficinas, formações para narradores e eventos culturais que envolvem toda a comunidade. A presidente do Abra Palavra, Aline Cântia, explica que o nome do instituto foi inspirado por um festival que participou em Cuba, chamado Afro Palavra.

Fundadores do Pontão de Cultura Abre Palavra (Foto: divulgação)

 “A gente queria formar jovens para que eles pudessem também escrever seus próprios projetos. A gente queria que outras pessoas também contassem histórias”, conta Aline. “E aí, esse desejo nosso de criar um instituto para que a gente pudesse ter financiamentos públicos, para que a gente pudesse ter espaço, ter uma sede, e principalmente, ter mais pessoas trabalhando com a gente de maneira mais organizada”, compartilha.

O pontão realiza cursos gratuitos sobre escrita e o mercado editorial e também explora novas formas de acessibilidade ao mundo literário, como os e-books e audiobooks, para tornar a literatura ainda mais tangível. “A gente quer também pensar alternativas e possibilidades do livro chegar, da escrita chegar, das pessoas serem consumidoras e também fazedoras de livro, leitura e literatura”, complementa Aline. 

Para Aline, o livro é mais do que um simples objeto; ele é um ponto de partida para diversas conexões culturais e sociais. É a partir do livro que são realizadas as feiras do livro, o contato com os escritores, com os ilustradores e com os contadores de histórias. Nesse momento, o livro deixa de ser apenas um apanhado de páginas e de conhecimento e passa a atuar também como um catalisador que pode conectar uma vasta rede de profissionais e atividades culturais. “A gente quer justamente pensar o livro como um start, para que a gente possa chegar a todas essas pessoas, a todas essas cadeias”, diz Aline.

O pontão também tem desenvolvido parcerias com bibliotecas, percebendo seu potencial para além de um local de armazenamento de livros. Para Aline, as bibliotecas são espaços vitais de mediação e encontro, que acolhem jovens e recebem grupos de seriedade, promovem a leitura e renovam a cultura.

O ciclo da arte: da inspiração à ação

Com 20 anos de atuação, a Associação Sociocultural Cidade Livre, localizada em Aparecida de Goiânia (GO), trabalha com artes de base comunitária, oferecendo um espaço para que a população local possa se expressar. A Associação nasceu de maneira orgânica, formada por um grupo de amigos que compartilhavam a paixão pelo teatro e o desejo de levar essa forma de arte para a comunidade. Inicialmente, as atividades da Companhia de Teatro Cidade Livre ocorreram em um fundo de quintal, onde improvisaram o ambiente necessário para seus ensaios e apresentações. O que começou como uma iniciativa modesta rapidamente ganhou força, à medida que mais pessoas da comunidade se interessaram e se envolveram nas atividades.

Atividade no Pontão de Cultura Cidade Livre (Foto: Roger Thomas)

Ao longo das duas décadas de existência, a Associação Sociocultural Cidade Livre expandiu suas atividades, diversificando suas ações. Hoje, o pontão promove gratuitamente uma variedade de expressões artísticas e culturais, incluindo oficinas de audiovisual, de danças urbanas, de danças árabes e de canto. Essas atividades são direcionadas principalmente para jovens e adolescentes da comunidade, oferecendo uma alternativa positiva em um contexto social muitas vezes marcado por desafios econômicos e falta de oportunidades.

“Como artista formado de lá, para mim é de uma satisfação imensa”, comenta Allan Silva, atual presidente do pontão, sobre sua experiência como ex-aluno da associação. “Eu vivo em uma comunidade periférica, distante do centro, uma região de vulnerabilidade social, e, através da arte, eu pude me encontrar como pessoa, como cidadão, como ser pensante”, complementa.

Allan relata que sua experiência com a arte no pontão foi um ponto de virada em sua vida. Motivado pelo impacto que o espaço teve em seu desenvolvimento pessoal, ele tomou a decisão de deixar sua casa e buscar novos horizontes através da educação. Com o tempo, formou-se como professor de danças urbanas, uma conquista que ele atribui ao apoio e às oportunidades oferecidas pelo pontão. 

Agora, em um ciclo de retribuição e gratidão, Allan retorna ao lugar que foi fundamental para sua jornada. Dessa vez, ele volta não como aluno, mas como educador. “Eu voltei para casa para poder ofertar algo para a casa, porque ela me salvou, enquanto pessoa”, explica Allan. “Eu vou poder ajudar e contribuir para transformar outras pessoas através da arte, assim como a arte me transformou como pessoa”, compartilha.

Melissa Sayuri

Melissa Sayuri é estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Fascinada pela comunicação e interessada nos estudos sobre o leste-asiático e a migração. Busca ouvir o que uma vez foi silêncio.

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