Érika Muniz, especial para o Nonada Jornalismo
Olinda (PE) — Até ganhar as ruas, o carnaval exige a dedicação de muita gente antes dos dias oficiais da festa. No segundo semestre de cada ano, as prévias já começam a habitar as ladeiras do Sítio Histórico de Olinda. Com suas gentes, músicas e cores, o sobe e desce das ladeiras é uma espécie de aquecimento para a tão aguardada folia.
É como se aquelas faíscas momescas dos fins de semana olindenses anunciassem aos moradores ou aos que simplesmente estão de passagem pela cidade – que é Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade, pela Unesco – que o tempo de frever se aproxima. Para essa tal “máquina de fazer festa” acontecer é preciso energia de sobra e investimentos. Há quem trabalhe antes, durante ou depois. Mas há também aqueles que vivem de carnaval o ano inteiro. É o caso de Carlos da Burra, o corpo que segura o Homem da Meia-Noite e de Adilson e Silva, o atual presidente do bloco.
“O Carnaval para o Homem da Meia-Noite não tem fim. A gente acaba o carnaval de um ano e já começa o planejamento do outro. A gente não trabalha só com a saída oficial. Somos solicitados em vários eventos”, conta Adilson e Silva Correia Neto, atual presidente do bloco, em entrevista ao Nonada. Ele explica que o Homem da Meia-Noite extrapola o carnaval e todo ano homenageia pessoas, organizações e empresas através do Prêmio Gigante Cultural. Ele diz: “não consigo mensurar a responsabilidade de estar à frente do Homem da Meia-Noite”, por toda simbologia que sua história carrega. Para quem faz o carnaval acontecer, o Homem da Meia-Noite significa uma “família”.

Engana-se quem pensa que a energia se limita a quem ergue a folia, no sentido material, pois os foliões – cerca de 500 mil a cada ano – também exercem papel importante ao topar colocar seu corpo no mundo e cair na brincadeira. Carnaval é festa feita de gente e Olinda leva isso a sério, pois lá só acontece com uma multidão sendo levada por uma orquestra de frevo capaz de aquecer os corações, a temperatura e os Quatro Cantos da cidade.
Além das agremiações, dos trabalhadores e trabalhadoras que montam e desmontam as estruturas, dos artistas que se apresentam nos palcos ou nas ruas e dos que vendem comidas e bebidas, os amantes dessa festa também confeccionam seus dias, através dessa experiência regada a sonhos, suor e uma certa melancolia. Nessa espécie de suspensão, cada um pratica a sua fé na festa da maneira que lhe couber.
No Brasil, diferentes cidades trazem rituais e formas de expressão específicas. Cada lugar do país que relate as vantagens do seu carnaval diante dos outros – mesmo quando as chances para alguns, nessa disputa regada a memes, comentários e ironias em mesa de bar, sejam bastante reduzidas. Mas quando o assunto é carnaval, a cidade de Olinda ocupa as primeiras posições, considerando o critério de muitos foliões pernambucanos, mas também de quem vem de fora do estado para usufruir de sua arte de celebrar. E, entre os principais símbolos dessa experiência, está o Clube de Alegoria e Crítica Homem da Meia-Noite, cujos preparativos para o carnaval começam tão logo a madrugada finda, o dia amanhece, o frevo se acaba e a quarta-feira de cinzas insiste em deixar saudade.
Quem segura o Calunga?
Encantando a multidão, o Homem da Meia-Noite faz sua evolução nas ruas, mas às vezes os que o acompanham não sabem quem está ali lhe dando corpo e vida por dentro de sua estrutura de cerca de 4 metros. O segurador é Carlos Alberto Fernandes da Silva, o Carlos da Burra, esse artista que sustenta um dos principais símbolos do carnaval no braço. O nome artístico desse olindense apaixonado pelo carnaval chegou na infância, por ter sido “mordido por uma burra” aos nove anos de idade.

Foi ainda menino que ele também iniciou sua história com os tradicionais bonecos de sua cidade. O avô de Carlos tinha uma casa na Avenida Joaquim Nabuco e, ao longo de todos os carnavais, ele assistia aos cortejos que por ali passavam. Um certo dia, de madrugada, Carlos acordou e viu o Homem da Meia-Noite desfilando na rua.
O encanto foi imediato. “Quando vi aquele boneco gigante, achei muito bonito. No outro dia de manhã, já comecei a tentar fazer um boneco com um caixão de tomates, colocava uma meia e tentava imitar. Como a gente cresceu em Olinda, aqui tem muitos blocos e Seu Djalma me deu a chance de carregar a boneca dele, a Menina da Tarde. Fui gostando desde os 12 anos de idade”, relata sobre o ofício que permanece fazendo até hoje, aos 55 anos.
A partir dos 14, Carlos foi somando outras experiências com os bonecos gigantes. E de lá para cá, a lista de personagens desse símbolo importante da cultura de Olinda que ele já segurou só cresce, passando pelo Menino e pela Menina da Tarde, o charmoso John Travolta, o Garoto de Vassoura, o Chorão, a Cabaçuda e muitos outros. Mas foi somente aos 22 anos que ele foi convidado para substituir o então carregador do Homem da Meia-Noite. Até posteriormente ser convidado para integrar a equipe do bloco, inicialmente, como auxiliar e, em 2019, se tornar oficialmente o carregador do Calunga, considerado filho de Iemanjá.

Tal atribuição definitivamente exige preparação física e emocional, pois a estrutura formada por madeira e outros materiais, pesa aproximadamente 50 kg. Isso, além do calor, da multidão encantada que sempre quer chegar perto do Homem e da responsabilidade que é sustentar parte importante do carnaval de Olinda, aqui nenhuma grandeza do campo da física consegue mensurar.
Sua preparação, ele conta que se dá com bastante caminhada e, na semana pré-carnavalesca, carregando outros gigantes, entre os quais o Menino da Tarde, o Garoto da Vassoura, o Raparigueiro, o Chorão, a Galícia em Folia, pelas ladeiras. Por aí já vai aquecendo. O gosto pelo que faz há tantos anos é que o movimenta e o faz seguir, ele diz. “A gente está com o peso, mas parece mágica, quando chega na rua e vê o pessoal batendo palmas, aplaudindo a gente, eu penso que desaparece aquele peso, porque vem tanta energia. Eu gosto muito de ver as pessoas felizes com o que faço”. De lá de dentro, ele consegue observar a multidão e ver as expressões de encanto que o Calunga arranca das pessoas no sábado de carnaval.
O Homem das Chaves, do Terno e da Cartola
Patrimônio Vivo de Pernambuco desde 2006, o Homem da Meia-Noite a cada ano coleciona fãs por onde passa. Misterioso e místico, o famoso Calunga olindense, que concentra toda a energia da agremiação, nasceu no dia 2 de fevereiro de 1932, a partir da dissidência de seis integrantes do Cariri Olindense, outro clube bastante importante para a tradição – fundado em 1921, portanto centenário.
Lá na primeira metade do século XX, os criadores e responsáveis por tecer parte da alegria de multidões até hoje foram Benedito Bernardino da Silva, Cosmo José dos Santos, Luciano Anacleto de Queiroz, Sebastião Bernardino na Silva, Eliodoro Pereira da Silva e Manoel José dos Santos. Seis homens negros, apaixonados pelo carnaval e representantes da classe trabalhadora olindense.

Naquele tempo, o mundo era outro, mas até hoje alguns rituais permanecem, como a saída e o percurso do gigante da sede, localizada no Bonsucesso, e todo o trajeto sendo acompanhando de uma orquestra de frevo e de passistas. Ao longo dos anos, porém, sua estrutura foi sendo adaptada e ficando um pouco mais leve, o que acabou contribuindo para que seus movimentos e manobras durante o desfile ficassem ainda mais expressivos e bonitos.
Em 2025, o Homem da Meia-Noite completou 93 anos. Seu aniversário é celebrado com festa anualmente, todo 2 de fevereiro, dia de Iemanjá. Neste ano, a festa faz juz à conexão entre entidades: começou nas águas. A celebração teve início em uma travessia de catamarã iniciada pela Bacia do Pina e pelo Rio Capibaribe até o desembarque no Marco Zero do Recife. De lá, o Calunga foi em direção ao Paço do Frevo – centro dedicado à salvaguarda e documentação dessa tão pernambucana expressão artística, no Bairro do Recife.
Cada aniversário é único, assim como os trajes utilizados por ele. “Há uma concentração grande dos blocos líricos no Recife, somente um, o Flor da Lira, é daqui de Olinda. Por isso, este ano, fizemos o nosso aniversário lá. Pela primeira vez, a gente fez um cortejo marítimo, diferente dos anos anteriores”, conta o presidente.
A cada ano, existe a expectativa para saber como ele estará vestido, mas há sempre a certeza de que ele estará charmoso e elegante para se apresentar ao público. No aniversário, o Homem da Meia-Noite caprichou no terno estampado de cor azul, na sua cartola afinada e no sorriso com dente de ouro, encantando a grande multidão que o aguardava. “É uma tradição muito simples, mais que manter a orquestra de frevo e passistas acompanhando, que consegue seduzir milhares e milhares de seguidores”, define Adilson.

Para quem nunca foi à saída do gigante durante o sábado de Zé Pereira, ele faz a abertura oficial do carnaval de Olinda, levando seu relógio e a chave da cidade num cortejo até entregá-la ao Cariri Olindense. Todo ano, o gigante encontra os que o aguardam ansiosos em frente à sede pontualmente à meia-noite. O percurso dura em média quatro horas e percorre, entre outros locais, o Amparo, a Rua Treze de Maio, os Quatro Cantos, Bonfim, São Bento e segue num trajeto intenso em todos os sentidos ladeado por gente de todas as idades.
Memória viva de sua gente
Com forte caráter crítico, o bloco homenageia a cada ano diferentes artistas e levanta temas importantes como mote de seu carnaval. O escritor Ariano Suassuna e o músico Lucas dos Prazeres são alguns dos que já foram prestigiados em anos anteriores, além dos povos indígenas, que, em 2024, trouxeram a importância da demarcação de terra de seus territórios para a folia em Olinda. Este ano, o Homem da Meia-Noite presta homenagem ao compositor Getúlio Cavalcanti autor de centenas de músicas, entre as quais o frevo de bloco Último Regresso (1981), e os blocos líricos tradicionais Coral Edgar Moraes, Bloco da Saudade, Bloco das Flores, Bloco Batutas de São José e Bloco Flor da Lira.
Funcionando em alguns meses do ano, a sede, que mantém uma loja com produtos relacionados ao gigante, fotos históricas e um museu no andar de cima do espaço, a memória do bloco também se perpetua na vizinhança. Há sempre pessoas passando e olhando, comentando, tirando fotos, apontando para o local e lembrando de carnavais vividos por ali.
Bem ao lado da sede mora Dona Eliane Bernardina,“vizinha de porta” do amado Calunga e que há muitos anos mora ali, bem “ao lado do carnaval.” A surpresa mesmo foi revelar que o seu avô, Bernardino, foi um dos fundadores do bloco, responsável pela confecção da estrutura do primeiro boneco, que a equipe têm até hoje. Olinda tem seus carnavais guardados nas ladeiras, mas também nas portas e janelas, e na memória viva de sua gente.

Érika Muniz
Jornalista cultural pernambucana, formada em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e em Comunicação Social pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Atualmente é do PPGCom-UFPE e pesquisa e escreve na área de cultura, assinando trabalhos em vários veículos e portais.