Mascarada, com três olhos e desenhada com traços retos: é geralmente assim que Bonikta aparece nas produções do artista Caio Aguiar, natural de Ourém (PA). Como uma espécie de entidade, ela é uma presença constante no trabalho do artista visual, e os dois parecem andar de mãos dadas – fundindo-se em uma mesma autoria.
Desde a adolescência, a figura de Bonikta é como “uma extensão” de Caio. Juntos, já integraram exposições nacionais como a 1ª Bienal da Amazônias, a Delírio Tropikal, na Pinacoteca do Ceará, e a 14ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre. O artista conta que a afetação profunda acontecem em uma travessia, entre Belém e Ourém, quando entraram em contato pela primeira vez. Muito além de um personagem, ele afirma que ela é um universo: “Ela [Bonikta] sai desse lugar de personagem, de persona. Ela acaba se tornando algo mais. Eu acho que o universo pode ser uma palavra que não define, mas que contempla ela”, explica o artista.
“Elas [boniktas] são também espíritos que conversam comigo pelos sonhos, que estão comigo, que vivem, que habitam esse lugar”, diz Caio Aguiar sobre as formas desse universo em entrevista ao Nonada. A forma como o artista leva Bonikta para suas obras é através da irreverência, subvertendo as estruturas rígidas do universo canônico da arte. É a partir da manifestação de entidade, na mescla de tecnologias e linguagens artísticas, que sua produção honra os próprios caminhos e percursos da vida.
O artista foi entrevistado enquanto finalizava um trabalho inédito no projeto Ling Apresenta: Amazônias, em Porto Alegre. Na conversa, é possível perceber que Bonikta está sempre presente. A partir da obra de arte, realizada com colagens, ilustrações digitais, lambe e intervenções com caneta posca, ela se estende por todo o entorno, e, irreverente, convoca também os visitantes.
Confira a entrevista completa:

Nonada – O que você produziu aqui para o Ling?
Caio Aguiar (Bonikta) – É uma obra inédita que eu produzi para o Ling Apresenta. O nome da obra se chama Quintal da Rua de Casa, que traz principalmente o lugar de onde eu venho, do interior do Pará, uma cidade que se chama Ourém. É um lugar pequeno, pouco urbanizado, que ainda tem muita presença das águas, da floresta. A proposta é criar um quintal ilustrativo, que eu considero ser o meu primeiro ateliê.
[Ourém] é o meu primeiro ateliê desde criança, de onde vêm minhas ideias, minha brincadeira, minha possibilidade de criar sobre o mundo. Um cenário onde posso habitar os meus sonhos. Para mim, esse é o lugar onde se cria, se pensa, se fabula sobre a vida.
Nonada – O lugar onde você cresceu foi seu primeiro atêlie, isso?
Isso. Um lugar ilustrativo. Eu sempre fui uma criança muito artista, de brincar com as coisas e criar com o que se tem, com as folhas, de riscar o chão. De uma forma ingênua, talvez, sem entender o que era a arte. Eu trago esse quintal de casa para que as pessoas possam acessar o meu ateliê que agora existe. Enquanto artista, existe essa possibilidade de poder abrir uma janela para o meu ateliê.
Nonada – Bonikta já existia nessa época do primeiro ateliê? Ou veio depois?
Caio Aguiar (Bonikta) – Eu considero que ela sempre andou comigo, a Bonikta é uma extensão da minha pessoa. Mas a Bonikta surge na minha travessia, quando eu saio do meu interior com 16 anos e eu vou morar para Belém, capital do Pará, a gente acaba tendo essa migração para estudar, para trabalhar, para acessar outros horizontes.
A Bonikta surge na travessia entre o interior e a cidade. Ela é esse lugar da travessia mesmo, onde tenho paz – diferente da cidade, um lugar mais caótico.
Nonada – Existe uma diferença entre o universo da Bonikta e do Caio?
Caio Aguiar (Bonikta) – Eu acho que não, eles se encontram. Acho que é o mesmo. A Bonikta vive em um imaginário, e quando eu exponho ela, quando eu coloco ela para fora, torna-se parte do imaginário das pessoas também.
Nonada – Você trabalha bastante com intervenções na fotografia. Você acha que essas intervenções enaltecem algo que já está na fotografia ou elas revelam algo oculto, no mistério?
Caio Aguiar (Bonikta) – Elas mais revelam. Por si só, a fotografia já conta, já é um registro da memória. Eu sempre gostei muito de fotografar, de forma muito livre e ingênua, de registrar a paisagem, de registrar ali o lugar de onde eu venho.
Esse trabalho com as fotografias já tem três anos e meio e eu chamo de Memórias Encantada. A série traz a memória da fotografia como encanto, em que uma outra camada revela algo que não está à mostra, mas que faz parte no processo criativo, no fazer artístico, na feitura.
Eu considero meu trabalho artístico como um ritual, como um feitiço. Tem esse encanto, algo com propósito de pegar as pessoas pelo olhar, de enfeitiçar de alguma forma quando elas olham.
Você diria que a sua produção artística está associada à espiritualidade também?
Caio Aguiar (Bonikta) – Totalmente. As boniktas são espíritos que conversam comigo pelos sonhos, que estão comigo, que vivem e habitam nesse lugar. De alguma forma, eles estão presentes. Eu acredito muito nisso. Tem a ver com a minha espiritualidade, com as águas. Eu venho de um lugar onde eu sempre acessei as águas. Sempre estive submerso e banhado nessas águas. As águas são essa tecnologia, onde me banho, me alimento, mergulho. É uma grande fonte do que me inspira
Nonada – Como é seu processo criativo com as Boniktas?
Caio Aguiar (Bonikta) – Eu digo que as Boniktas aparecem através da minha fissura de desenhar. Em 2015 e 2016, comecei a ter uma fissura mesmo de pixar na rua, assinar, querer deixar uma marca na rua. Esse lance da travessia, de morar na cidade também e de querer ver as pichações na rua, querendo deixar ali a minha marca também. Ela surge na inquietação de rabiscar até que a Bonikta surge com esse rosto, com o rosto quadrado, com esses olhos, um bocão quadrado, traços retos.
Ela vem surgindo. Não tinha esse nome ainda, Bonikta. Então, quando eu adquiri meu material de tatuagem. Um amigo falou: “bicha, bora ali tatuar. Vou te ensinar, bota aqui a agulha”. Na primeira tatuagem fiz, ele falou: “bicha, ficou bonikta (sic)”. Aí eu falei: “bicha, vai ser esse nome dela”. Foi esse ritual batizado ali, na feitura da primeira tatuagem. Depois disso, ela foi se firmando.
A tatuagem foi e, ainda é, uma das principais linguagens do meu trabalho, porque ela é essa forma de marcar uma pessoa, é como se a pessoa carregasse uma tela que anda.
Depois disso, tudo criou forma, criou corpo. Fui também pintando em roupas, telas. O trabalho foi se expandindo para além do desenho. A máscara [das Boniktas] são importantes porque incorporam essa persona. É um desenho que acaba virando um universo, em que as pessoas acabam querendo também serem Boniktas.
Torna-se algo muito além do físico mesmo, tem uma ligação espiritual com as pessoas e faz com que elas se conectem e se identifiquem para além da arte. Esse nome “arte” é uma coisa ocidental. Acho que a Bonikta existe para além do que é a palavra “arte”. Ela é muito além.

Nonada – Você trabalha com muitas linguagens e tecnologias. Como você escolhe a aproximação? Por exemplo, aqui [obra no Ling] você resolveu trabalhar com lambe.
Caio Aguiar (Bonikta) – Tem fotocolagem, lambe, intervenções, pixo, desenho. É uma grande mistura. É um grande experimento para mim. Meus processos artísticos não são definitivos. Nunca é uma coisa só. Nunca é totalmente finalizado. Sempre deixo um caminho aberto no que eu faço.
Acho que a minha arte surge do que eu tenho em mãos. Claro que hoje em dia eu já consigo buscar, pesquisar, talvez, ir atrás de coisas que eu desejo, mas nem sempre foi assim. Acho que às vezes [o trabalho] surge muito da escassez, do pouco que você tem.
Nonada – Essa mescla de linguagens parece ter muito a ver com a tua perspectiva sobre a arte que você acabou de comentar. No âmbito acadêmico, mais ocidental, a gente está acostumado a ter faculdades de arte, uma artista que se alinha mais à escultura, à pintura. Você parece brincar com várias delas. Você acha que isso tem a ver com o lugar de onde você vem?
Caio Aguiar (Bonikta) – O meu trabalho vem muito desse território da Amazônia, das Amazônias, que são muitas, são complexas, são diversas. Eu crio sobre a minha perspectiva do lugar que eu venho. Eu crio a partir disso, é uma grande influência, inclusive para os materiais que eu uso. Futuramente, talvez eu trabalhe com outros materiais, mas no momento eu gosto de trazer essa paisagem que é de onde eu venho mesmo.
Nonada – Você falou da relação das Boniktas com a identificação: “Eu também quero ser uma bonikta”, “eu também quero ter uma bonikta”. E agora você falou que ao mesmo tempo é uma visão muito sua, do lugar de onde você vem. Você acha que essa visão íntima e particular sua ajuda a encontrar e achar respostas em outras pessoas também?
Caio Aguiar (Bonikta) – Acho que sim. Quando as pessoas se identificam é como uma lança que atravessa de um ponto a outro ao ponto. A Bonikta tem um lance de liberdade, de brincadeira, de não ter um gênero. Ela só é. Não tem uma definição e as pessoas se identificam também por isso, abre muito a mente de quem vê.
Nonada – Ao mesmo tempo que gera essa dúvida, ela também traz uma certa familiaridade, parece.
Caio Aguiar (Bonikta) – Sim, porque ela tem referência. Bonikta vem desse lugar, ela não é uma coisa à toa. Ela surge das águas, é bicho do mato, bicho das águas. Ela é tudo na minha vida. Eu consigo dizer que ela é minha melhor amiga. Surgiu no momento em que eu havia largado trabalho, relações, estudo.
Bonikta constrói pontes. Ela me deu asas. Ela é um grande ponto firme da minha vida mesmo. Do que me faz viver, do que me faz sonhar também. Então, eu acho que ela é tudo. A Bonikta é babado.
Nonada – Então você não vê esse vínculo se encerrando tão cedo.
Caio Aguiar (Bonikta) – Não. Apesar das dificuldades de ser um artista, de trabalhar com isso, de me sustentar disso, de vir do Norte, da Amazônia. São muitas dificuldades, mas ela é um ponto firme. Apesar de às vezes o corpo cambalear pelas enfermidades da vida, ela [Bonikta] é o que me faz me não arregar, não desistir.
Nonada – E as Boniktas pedem para aparecer?
Caio Aguiar (Bonikta) – Elas se mostram. Elas vêm nos sonhos. Não só no sonhar de olhos fechados, mas no sonhar de olhos abertos mesmo, quando tu enxerga e tu vê negócio. Eu estou aqui e aí vem. Na minha mente, na minha visão. Uma ideia, uma possibilidade, então vou ali e rabisco.
Então elas já não pedem mais. A Bonikta é bem ousada, mostrada mesmo. Ela é bem além. Eu sou apenas quem comunica isso. Ela é ousadíssima.

Nonada – Qual sua relação com arte digital?
Caio Aguiar (Bonikta) – Eu gosto do digital, mas prefiro o manual. Eu gosto de pintar. E é justamente isso: mesclar. Eu gosto muito do digital, acho que é uma ferramenta que nem sempre é acessível para todo mundo, mas que abre um leque de possibilidades, de trabalhar com ilustração, com animação – que é algo que eu já trabalho, mas que eu pretendo expandir mais.
Nonada – Nos últimos anos, você tem integrado diversas exposições nacionais, como a Bienal das Amazônias, o Delírio Tropical, agora a Bienal do Mercosul. Como você analisa esse momento da sua carreira?
Caio Aguiar (Bonikta) – O caminho tem que ser próspero, tem que ser. Tem que ter uma fartura. É o que eu almejo para o meu trabalho. Eu boto muita fé no que eu faço. Botar fé no sentido de acreditar mesmo e de almejar isso, de fazer. Eu faço as coisas de uma forma ainda muito ingênua, de criar, de me expressar mesmo, de manifestar o que eu sinto.
Mas eu almejo também estar e acessar esses lugares, de levar não só o meu trabalho, mas também de muitos outros artistas. Na Amazônia, você tem inventividades múltiplas de diversas linguagens, pessoas que criam e inventam também sobre o seu mundo, sobre o seu imaginário.
Acho um desafio acessar esses lugares, porque não foram projetados para a gente, mas hackear é possível. Quando eu consigo acessar esses lugares [institucionais], sinto que estou conseguindo mudar os códigos. Almejo muito um dia estar em acervos de museus, lugares que historicamente contam sobre a arte.

Nonada – Olha como as coisas se sobrepõem de novo. Agora você usou o termo hackear, que é uma coisa super digital e contemporânea, mas ao mesmo tempo na sua arte tem muito isso da natureza e do espiritual. Então todas essas coisas estão convivendo ali. A natureza, o digital, o espiritual, tudo isso faz parte e é inseparável.
Caio Aguiar – Sim, acaba que a gente vive um futuro, esse lugar onde você tem as tecnologias. É sobre dialogar com tudo isso, hackear mesmo. Hackear o Photoshop, hackear o sistema, hackear o lugar, apesar de não ser fácil, mas é isso, é uma mistura mesmo. O meu trabalho é a mistura de várias possibilidades de invenção de sonhos.
Nonada – E você acha que a arte pode ser importante então para, quem sabe, apontar caminhos para a sociedade aprender a coexistir melhor com os sonhos, com a tecnologia, com o digital, com a natureza? Você acha que é possível uma coexistência de todos esses elementos?
Caio Aguiar (Bonikta) – Sim. Só a arte mostra coisas que não seriam visíveis. A arte é o lugar onde habitam os sonhos, as histórias, as possibilidades.
Nonada – E pro futuro, pra onde você imagina a sua arte indo? É possível pensar nisso agora?
Caio Aguiar (Bonikta) – O futuro pra mim é o agora também. Eu e Bonikta estamos acessando lugares inimagináveis, no sentido de que eu nunca imaginei chegar. Eu venho de um interior pequeno, onde nunca tinha acessado a arte nesse formato. Então, para mim o futuro está acontecendo agora. Mas, claro, acredito muito que a gente vai ir muito adiante, territórios mais distantes para além mar, para outros oceanos.
Nonada – O que hoje você diria para o Caio pequenininho lá atrás, que primeiro conheceu esse universo?
Caio Aguiar (Bonikta) – Eu diria que ele é muito criativo, que foi uma criança que tinha muitas habilidades. Lembro de subir no topo de uma árvore e ter a visão de mundo, mesmo que naquele momento o mundo fosse tão pequeno quanto aquele interior. Só que ele conseguia enxergar tão longe. Acho que aquela criança sempre foi muito artista, criativa, inventiva. E eu diria: “só brinca, só se diverte. É isso. É o que você vai fazer mesmo sem saber, mas você tem uma imaginação, uma mente gigante.”