Brumadinho (MG) – “Você já amanheceu o seu coração hoje?” A pergunta é um gesto ensinado por Luiza Lopéz, avó do artista guatemaleco Edgar Calel. Sentir o próprio estado de espírito antes de iniciar um trabalho no campo das artes e da cultura é uma prática que o artista de origem indígena kaqchikel-maia e sua família nutrem em suas vidas e que ensinaram para as equipes com quem trabalharam na produção de sua primeira grande mostra individual no Brasil, no Instituto Inhotim .
A exposição de longa duração Ru Jub’ulik Achik’ – Aromas de um sonho, com curadoria de Beatriz Lemos e Lucas Menezes, oferece um percurso pela produção de Calel através da conexão entre o sagrado, a ancestralidade e os territórios da Guatemala e de Minas Gerais. O Nonada acompanhou a abertura da exposição e conversou com o artista e sua família sobre suas práticas artísticas fundamentadas no coletivo.
O gesto de perceber a si e ao outro antes de começar a trabalhar é uma espécie de pacto contra-colonial de Calel que, aliado a outras práticas, recusa um sistema da arte historicamente baseado na individualidade, na competição e na própria ideia de aquisição. A desconexão com o corpo individual, e a consequente consciência sobre o corpo coletivo estão presentes no modus operandi do trabalho em cultura.
Calel sugere outro modo de fazer: “Gosto sempre de perguntar se as pessoas com quem trabalho estão bem, ou estão mal. Às vezes, antes de iniciar a arte, você pode ter outras necessidades”, reflete antes da abertura da exposição. “Amanhecer seu coração significa entender se você já pode ver determinadas coisas ou não. Se você está mal, não consegue começar um diálogo”, diz em entrevista ao Nonada.
A cidade onde nasceu, Chi Xot (San Juan de Comalapa), a 80km da Cidade da Guatemala, é o ponto de partida e de retorno do artista. É lá o nascedouro daquilo que sua produção multimídia comunica. A paisagem montanhosa e vulcânica, em meio às brumas, aos sismos e ao Oceano Pacífico, foi onde sua mãe, Vidalia Alvertina deu à luz a ele e nove irmãos.
Desde pequeno, ela e o pai Pedro observavam a curiosidade do menino em perguntar um pouco de tudo, desde a plantação de milho na roça até o tecer artesanal. Sempre foi um grande “experimentador”, mas como a arte é parte da vida para cultura kaqchikel-maia, o caminho para tornar-se um artista seguiu um fluxo semelhante ao de outras profissões.
Através do desenho, da instalação, da fotografia e da performance, Calel é um artista que aborda as complexidades das experiências indígenas, por meio da produção de imagens da cosmovisão e da vida comunitária kaqchikel-maia. Nos últimos anos, participou de diversas exposições de destaque, como a 12ª Bienal de Liverpool, a 14ª Bienal de Gwangju e a 35ª Bienal de São Paulo.
A recém inaugurada exposição no Inhotim, em cartaz até 2027, marca um momento inédito na trajetória do artista: é a primeira vez que seus trabalhos são produzidos fora de casa, longe do chão da Guatemala. Até então, as obras eram criadas em Comalapa e transportadas para os lugares de exibição. Ao todo, 12 dos 15 trabalhos que compõem a mostra foram comissionados pelo Inhotim.

Começo antes do começo
Embora exista uma distância física do território de origem, a exposição trata sobretudo do movimento contrário: o de aproximar. O gestual de Calel no espaço expositivo é como o de um professor — move-se ensinando. Ao falar da pedra, toca-a. Ao deitar sobre o chão, acarinha-o. Ao ensinar sobre as diferentes velas, acende-as. Não há distância entre o que diz e o que faz. O percurso expositivo da exposição é generoso ao elucidar um caminho de pensamento, em que a prática do bem viver indígena costura toda a produção.
A primeira obra, posicionada na área externa da Galeria Lago, é uma pedra de quatro toneladas, Rajawal Ramaj [Dono do Tempo], aquela que veio antes de todos nós. “Às vezes para ler uma pedra, temos que tocá-la. Deixar que a pedra nos veja também”, anuncia Calel. Ao entrar na galeria pela primeira vez, Calel perguntou: o que era a arquitetura desse lugar antes de ser um espaço de arte? De algum modo, é a pergunta que orienta a caminhada do artista: o que éramos antes do que somos agora.
O trabalho diz, de imediato, que há uma reverência ao povo-pedra, às avós. Antes de pisar naquele chão, é preciso pedir licença aos mais velhos. Como nas cosmologias indígenas de outros povos, e nas tradições afro-diaspóricas, a ordem dos preparos importa. Não se pode pular etapas. Tudo é como deve ser, ou como diz Calel, “como mandam os deuses”.

Na abertura da exposição, as equipes curatorial e diretiva da instituição se dispunham ao lado de Calel e sua família. A presença da mãe, do pai e dos três irmãos, em uma linha, antecede a entrada, uma postura que já é, em si, um lugar de partida. Onde está Calel, é também onde está sua família. Todos os processos transcorrem de forma compartilhada: a concepção, a criação, a decisão poética e estética, a abertura. O trabalho é coletivo e o usufruto do sucesso também. “Não quero ser o único a experienciar tudo”, diz.
No alto, sob suas cabeças, a obra Ru b’ix Qa Tzub’al [Canto visual para nosso espírito], traz a expressão Kit Kit Kit, palavras grafadas em uma lona de caminhão, em referência a um canto que a avó Luiza entoava para chamar os pássaros em Comalapa. A presença dessa obra nos diz que não há como seguir o caminho sem passar pelas avós, sem saudar as que vieram antes e que seguem presentes. Só, então, depois de reverenciar os ancestrais minerais e humanos, adentra-se as montanhas da Guatemala–Minas Gerais, territórios mais semelhantes do que diferentes, que se encontram nos processos de exploração, colonização, e reinvenção.


Diálogos com o sagrado
O diálogo com o sagrado kaqchikel-maia atravessa toda trajetória de Edgar Calel. Antes de começar os trabalhos no Inhotim, o artista firmou sua presença com uma oferenda de flores, alimentos e velas. O gesto de agradecer e pedir licença é o primeiro passo para começar qualquer trabalho. “Nos deram permissão aqui [no Brasil] e lá [na Guatemala]. Às vezes tem desejo, mas não tem permissão das divindades.”
Uma das obras que compõem a exposição é Kej- chi’ch’ [Veado de metal], caminhonete vermelha com dimensões reais, em que encontramos todos os membros da família de Calel esculpidos em argila. Essa imagem surge a partir de um momento marcante da vida do artista, quando recebeu seu primeiro cachê e comprou um carro para que toda a família pudesse andar.
Na escultura elaborada no Ateliê, cada membro da família tem um papel, ocupando uma função. Não existe alguém menos importante, pois todos ali contribuem para o que se vê no fim. É como também se dão práticas como essas – artísticas e espirituais. Há quem faça a vela, há quem a acenda. Há quem faça o pedido, há quem reze. Há quem fotografe. Há quem troque o pneu do carro. Todos têm um lugar e o “artista”, nessa visão, não é o centro de tudo.
Sobre os pés de algumas das esculturas humanas em argila, encontram-se amontoados de grãos de milho. Fundamental e sagrado na espiritualidade maia, o milho pode ser visto em diversas obras de Edgar Calel. O grão é como um conector de culturas. Em tradições indígenas latinoamericanas, o milho é a base das festas e rituais ligados à abundância, colheita e agradecimento aos encantados. Em tradições afro-brasileiras, também é um alimento de axé: base de comidas sagradas, como o ebô e o acarajé, oferecido aos orixás e ancestrais.

O milho sobre os pés dos familiares de Calel também pode remeter, ou constelar, com uma outra imagem importante da arte contemporânea brasileira. As pipocas sobre as cabeças na série Borí, de Ayrson Heráclito. O que está tecendo Calel pode ser um diálogo com artistas que se dedicam à transladação entre mundos e cosmologias. Beatriz Lemos reflete sobre isso ao dizer que “é uma questão da arte contemporânea pensar como trazer o sagrado para dentro do museu sem que esses símbolos se tornem fetiches.”
Assim, Calel também “brinca” com o que é permitido ou não ser feito dentro dos espaços institucionalizados da arte. A sagacidade do seu trabalho está em provocar o público e a instituição sobre os gestos de acender uma vela na galeria, de fazer fogo e oferenda no museu. O que é ou não a arte? Ou que é ou não o sagrado? Sem demandar respostas, o artista está desenhando perguntas para o sistema das artes e também reconfigurando expectativas do “o que querem/esperam de mim?”.
Em outras galerias do Inhotim, é possível encontrar ecos desses debates. Na exposição Esconjuro, de Paulo Nazareth, se adentra, entre outras temáticas, o território sagrado. Na Galeria Praça, e com uma linguagem múltipla — de pinturas a instalações, o artista convoca para um outro modo de fazer, negociar, planejar, construir, reposicionando obras ao longo do período da exposição no parque. Um exemplo é a obra Iemanjá, uma “arte preceito”, como define o artista. Uma coleção em construção, composta por barco-oferendas a Iemanjá, exibidos em forma de instalação, em um reflexo do que o artista chama de negociação entre ele e as divindades a quem os barcos estavam destinados.
Já a exposição em cartaz Maxita Yano, que celebra os 10 anos da Galeria Claudia Andujar, pode prolongar as reflexões trazidas pela indvidual de Calel. Em uma reformulação da galeria, realizada neste ano, trabalhos em fotografia e vídeo de 22 artistas indígenas da América do Sul ocupam o espaço e aprofundam discussões iniciadas por Andujar sobre a pluralidade dos povos indígenas e as relações éticas e estéticas que surgem no transladar de cosmologias indígenas para o campo artístico.
Ou seja, embora nos oferte o que é específico de seu território, Calel e sua família também convidam a uma reflexão sobre os nossos próprios lugares. Antes de acenderem as velas pela primeira vez diante do público, a família faz um gesto de apoiar a cabeça sobre o chão de palha, como em um cumprimento. Saudar o chão é reverenciar as divindades ali presentes. Assim, a Guatemala vai se aproximando do Brasil. Edgar Calel consegue conectar os dois territórios como um mestre, sem que tudo precise ser falado, embora, segundo ele, “a palavra seja o gesto mais espiritual que uma pessoa pode ter.”

O sonho ensina
Assim como a menção aos avós, a relação com os sonhos é cerne da criação artística de Calel. Ao trocar poucas palavras com o artista, logo se pode escutar uma memória de um sonho que teve à noite. O sonho é como um sinal vital. Pedro Lisandro Calel Apén, professor de educação física, irmão de Calel e artista colaborador na exposição, explica que o mundo onírico é como uma escola. “Os sonhos não são um hábito. Eles são uma forma de educação e comunicação que aprendemos com nossos avós”, conta.
A rotina da família em Comalapa é atravessada pelo compartilhamento diário dos sonhos. “As atividades se dão a partir dos sonhos que compartilhamos quando comungamos de um café da manhã”, conta Edgar. “Às vezes não damos importância ao que sonhamos, mas são mensagens que nos são concedidas.”
A espiritualidade para Calel e sua família é vista como uma parte essencial da vida, em lugar de importância como outras atividades. As fronteiras entre o corpo, a arte e o espírito são diluídas. Esse entrelaçamento entre os campos pode suscitar debates sobre a tendência das artes e do campo das humanidades, de modo geral, de enquadrar os conhecimentos indígenas e afro-diaspóricos como alegorias ou apenas representações. Como diz Luiz Rufino, em entrevista ao Nonada, entender cosmologias como metáforas é uma forma colonial de esvaziamento e descrédito.
A Ru Jub’ulik Achik’ – Aromas de um sonho de Calel também dá corpo a esse debate, caro à arte contemporânea. “Há coisas que são representações, mas existem coisas que não são. Há coisas aqui que têm espírito”, explica o artista. “As pessoas pensam que é só colocar a pedra na exposição, mas não é só isso”, reflete Calel. “A arte é mais complexa do que se pode pensar. Temos que pedir licença às divindades, pedir licença à natureza. Às vezes forçamos o caminho, mas o caminho não é por ali”, explica. A obra de Edgar Calel nos convida a levar o sonho a sério.

Convocar a instituição
A chamada crítica institucional é parte fundamental do que propõe o artista. Não como temática, mas como um meio para produção de reflexões sobre a lógica dos museus e de seus agentes. Em 2023, a sua obra Ru k’ox k’ob’el jun ojer etemab’el [O eco de um conhecimento ancestral] passou a integrar a coleção do Tate Modern, em Londres, uma das mais importantes do mundo.
Só que ao invés de uma relação de posse, usual em qualquer aquisição de obra por instituição, Calel propõe uma outra maneira, um comodato. Ou seja, o Tate detêm direito à obra, com todas as implicações deste contrato, pelo período de 13 anos — número sagrado para os povos Maia. Depois, a instituição precisa reconversar com a comunidade para entender como dar continuidade.
Na ocasião, o artista reforçou ao Tate que “nem tudo está à venda”, uma frase-irmã de “O amanhã não está à venda”, de Ailton Krenak, afirmações que não nos deixam esquecer de uma história violenta da relação institucional entre museus com artistas indígenas.
Para Júlia Rebouças, diretora artística do Inhotim, artistas como Calel jogam luz aos processos, muitas vezes, invisíveis ao público, onde são frequentes as violações e as precarizações estruturais. “Mais do que enunciarmos pela linguagem artística um discurso decolonial, a pergunta que fazemos é: como transformamos isso, de fato, em um prática?”, reflete.
A língua Kaqchikel, assim como a Kaingang, o Guarani, e outras várias línguas indígenas, não possui a palavra arte. “A arte é um estado de passagem. Poderia ser chamada de plantio, mas também de espiritualidade, de poesia”, completa Júlia.


Outro sentido que o trabalho de Calel questiona é a própria noção do artista como único criador. A criatividade para Calel e sua família não é vista como um ato individual, ou mesmo genial, como é comum nas narrativas eurocêntricas sobre a “pessoa artista”. O irmão Pedro enfatiza isso ao dizer que: “todas as pessoas que nascem e que estão caminhando sobre a terra são artistas, porque temos a arte de caminhar, a arte de pensar.” Para os kaqchikel-maia, o modo de ser não está desconectado do modo de criar – e ele é, necessariamente, coletivo.
O diretor do Ateliê do Inhotim, Elton Damasceno, conta que a articulação entre o sagrado e o estético, apreendida com a família Calel, foi compartilhada com toda a equipe que participou da produção das obras. O trabalho deles propicia debates fundamentais sobre uma prática artística que tenciona algumas lógicas já estabelecidas na produção de artes visuais. “A vivência com ele e com a família nos deu uma abertura de conhecimento dessa essência que fala de um aterramento e de uma ancestralidade.”
Pisar no chão
A pesquisa para a exposição no Inhotim começou em julho de 2024. As equipes de curadoria, educação e Ateliê visitaram Comalapa e a família de Calel para entender a partir do território como seria pensada a exposição. “Se nem todos da equipe tivessem ido, a exposição seria muito diferente. Talvez não tivéssemos optado por uma escultura da caminhonete, mas sim por uma pintura, mas uma foto”, diz Calel.
Para Beatriz Lemos, há pesquisas curatoriais que pedem o deslocamento, e essa foi uma delas. A curadora acredita que a ida à Guatemala significou a compreensão a partir do chão, da bruma das montanhas. “Entendemos que esse embate do corpo é importante. Precisamos entender a cosmologia com todos os sentidos — não só os cognitivos ou teóricos.” Já Lucas Menezes lembra a importância do dia em que a equipe conheceu a plantação de milho da família. Eles começaram a caminhar pelo terreno, enquanto ouviam as histórias sobre a avó Luiza.
Por outro lado, o artista, influenciado pela paisagem de Minas Gerais, inclusive pelo trajeto em que máquinas retroescavadeiras oriundas da mineração são encontradas em boa parte da paisagem, escavou a parede da Galeria Lago, em formato de jaguar. A obra Ix b’alam Winaq [Mulher Terra, Jaguar Pessoa Completa] nos encara como um corpo que diz que há algo por trás do que se escava. De diferentes formas — por fotografia, performance e instalação, o artista corporifica as divindades como a onça-pintada, uma figura presente nas culturas mesoamericanas, e no próprio trabalho de Calel. Como um animal de poder, a onça é uma mediadora entre os seres vivos e os ancestrais.

Os ciclos da vida
Os dois avós de Calel já haviam falecido quando ele nasceu. Só que o sonho atua como um conector entre passado, presente e futuro. “Uma vez sonhei que estava conversando com os dois, mas só os conheci através de fotografias.” Aqueles que já partiram estão vivos no trabalho — e na vida — de Calel e sua família. “O corpo vai, mas o espírito fica”, explica.
A irmã Elsa Yolanda Calel conta que é por isso que a avó segue sendo uma figura muito presente em todos os seus passos. “Falamos muitas vezes de nossa avó, porque ela é uma pessoa de muita sabedoria. Aprendemos através do conhecimento dela a relacionar a arte com outras atividades.”
A repetição faz parte dos ensinamentos dos mais velhos. Edgar lembra que ele os irmãos conviviam com a avó, ou abuelita, todos os dias e ouviam seu repertório vasto de histórias. “São conselhos de coisas que você tem que aprender e que [teus mais velhos] só vão deixar de te dizer quando você tiver aprendido.”
Uma das obras da exposição, Q’eq Ulef Xan [Parede de Terra Fértil] é um bordado de 8 metros com tijolos tecidos. Uma casa cuja estrutura é feita a muitas mãos. A produção de Calel surge dos laços familiares, ao mesmo tempo que evoca o silêncio, a introspecção para contemplar e adentrar temas profundos como a morte, o silêncio e os ciclos da vida.
Na performance Xi ni chajij [Me protegeram com a essência do fogo / me cobriram de cinzas para me proteger], o pai e a mãe cobrem o artista, da cabeça aos pés, com cinzas. Micropartículas do pó tomam conta da área externa e chegam a nós, público. A defumação, como um ritual, retoma o corpo como um lugar de poder e proteção. É como canta o músico Mateus Aleluia quando diz que a cinza tem poder: Não aceita quando dizem que o fim é cinza. Se eu vejo cinza como um início em cor. […] Quando tudo finda, dizem, virou cinza. Equívoco pois cinza cura, poesia eu sou.” Algum dos pássaros das mais de cem espécies que sobrevoam diariamente o Inhotim, respondem à performance, entoando junto, como quem reconhece o convite.

No profundo do sonho, é que surgem as reflexões centrais do trabalho de Calel sobre a ancestralidade. “Ao invés de morte, penso em ciclos. Um ciclo termina para outro começar. A morte para mim é transformação”, reflete o artista.
“Na performance, utilizo cinzas. Só que as cinzas já foram fogo um dia; antes, foram madeira; antes, uma árvore; antes, uma semente. Se regressamos cada vez mais, vamos ver como a transformação não tem fim. Penso que a vida é muito parecida com esse processo. O corpo morre, o espírito continua. Por isso, a gente tem que ficar tranquilo. Não precisamos temer a morte.”
No fim da exposição, encontra-se o altar, a casa da família. A sala expositiva, montada aos fundos da galeria, é separada por uma parede, com duas aberturas, uma no extremo esquerdo e outra no lado direito. Cortinas ocultam do público o interior até o momento em que se pisa naquele chão.
Ao entrar na casa, sente-se, enfim, o Aroma — palavra que integra o título da exposição. Cheiro de vela, de erva, de palha. Ali, como em uma gira, entra-se por um lado e se sai pelo outro. Há reverência a todos os elementos da natureza. São práticas e cosmologias que ensinam um tempo não-linear. Na exposição de Calel se lembra, se acuerda, por meio do corpo, que não estamos saindo de lá os mesmos.
*A repórter viajou a Brumadinho (MG) a convite do Instituto Inhotim ao Nonada.