Na orla de Balneário Piçarras, em Santa Catarina, a praia virou sala de aula. Ao lado de estudantes das escolas municipais, as integrantes da banda Manas do Reggae e Brasilidades – todas professoras — conduzem uma oficina onde música e educação ambiental se encontram.
Em uma manhã ensolarada, crianças pintam frases como Viva com menos, O mar começa aqui e Cuide do que é vivo em tábuas reaproveitadas de construções locais, que depois foram instaladas ao longo da faixa litorânea da cidade catarinense de 30 mil habitantes.
A ação faz parte do projeto “SeMente Consciente: Profs que Cantam”, financiado pela Lei Paulo Gustavo em 2023, que uniu escolas, artistas e comunidade em torno do consumo consciente e da gestão de resíduos. A canção Viva com Menos, composta pela banda de reggae, serviu de ponto de partida para palestras e rodas de conversa em unidades de ensino da rede pública.
Ao todo, mais de mil alunos participaram das atividades, com a instalação de 40 placas de sensibilização ambiental na orla. “Queremos unir nossas atuações para incentivar uma cultura mais harmoniosa e coerente com os princípios de funcionamento da vida”, resume Jazz Borges, engenheira florestal e multi-instrumentista do grupo.
O exemplo de Balneário Piçarras se repete, de maneiras diferentes, em várias partes do país. Bandas, soundsystems e coletivos ligados ao reggae têm levado para fora dos palcos os princípios que sempre estiveram em suas letras: respeito à natureza, equilíbrio e comunitarismo. Em mutirões de limpeza, plantios de árvores, oficinas em escolas e festivais com logística sustentável, o reggae tem se afirmado como um instrumento de educação ambiental e mobilização social.

Festivais mais verdes
Em maio deste ano, em Belém, no Pará, no horizonte da COP30, a edição do Tributo a Bob Marley adotou o tema Reggae pela Vida, Justiça Climática e Amazônia Viva e aproximou música e educação ambiental em defesa dos territórios amazônicos, do cuidado coletivo e da consciência sobre os impactos climáticos.
Já em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, o Dread Day Festival é outro festival de música com um canal direto entre celebração e consciência ambiental. Idealizado pelo músico e produtor cultural Patrick Sendim, o evento reúne bandas do reggae, além de oficinas e atividades culturais voltadas à sustentabilidade e à inclusão.
“Nossa filosofia se baseia na preservação e na evolução como seres que habitam e coexistem em harmonia com a grande Mãe Terra”, explica Patrick. “Música, cultura e sustentabilidade caminham juntas. Através do reggae, buscamos despertar a consciência: é possível celebrar, aprender e cuidar do planeta ao mesmo tempo”, completa.
Na última edição, realizada em junho deste ano, o festival arrecadou mais de 500 quilos de lixo eletrônico, em parceria com uma empresa responsável pela coleta e separação correta dos materiais e pelo descarte de componentes com metais pesados. “O lixo eletrônico é um grande problema ambiental e ainda pouco discutido”, diz Patrick. “Por isso, fazemos questão de garantir que tudo seja tratado com responsabilidade e não volte para a natureza”.
A estrutura do evento também segue o princípio da sustentabilidade. Ao invés de recorrer a geradores movidos a combustível, o evento utiliza a energia elétrica do próprio local, com ajustes técnicos que permitem alimentar som, luz e palco sem sobrecarga na rede. A decisão reduz o impacto ambiental e elimina o uso de fontes poluentes.
Instalação de bituqueiros e placas de conscientização ambiental no espaço são outras ações que se somam. “A redução do impacto precisa estar em cada detalhe”, afirma o produtor. Além das ações práticas, o festival promove palestras sobre reciclagem e consumo consciente, e todas as edições oferecem opções de alimentação vegana e vegetariana, reforçando o compromisso com o respeito à natureza. “A cada edição buscamos evoluir — não só nas questões culturais, mas também nas ambientais”, completa Patrick. “Isso exige esforço e dedicação, mas é o que dá sentido ao Dread Day.”
Natural do estado, a compositora e pesquisadora Marina Peralta entende a pauta ambiental como parte inseparável das lutas sociais vocalizadas historicamente pelo reggae. “A cultura reggae já tem como fundamento amplificar, denunciar e conscientizar sobre as demandas do povo, especialmente preto e periférico”, pontua. Para a artista, discutir o meio ambiente é também discutir desigualdade. “São as pessoas mais pobres as que mais sofrem com os problemas ambientais”.
Como exemplo, em São Paulo, Marina cita o trabalho da Associação Nacional Reggae. A entidade atua como representante da sociedade civil no Conselho Gestor do Parque Chácara do Jockey (2025–2027) e possui termo de autorização para realizar feiras agroecológicas e culturais no Butantã, na zona oeste da cidade. Para Marina, essas iniciativas refletem a força do reggae em mobilizar comunidades e promover consciência coletiva. “Não há justiça ambiental sem passar pela justiça social”, afirma. “A desigualdade racial e econômica coloca as pessoas mais pobres em situações muito mais prejudiciais, perigosas e insalubres”.

Mais que um estilo musical
Em Barra de São Miguel, em Alagoas, o agente ambiental e produtor cultural Dilton Peixoto fundou a banda Anauê S.A em 2011, ao lado do filho Dió Leão, hoje guitarrista e vocalista. O grupo nasceu em meio à biodiversidade do litoral sul alagoano, de manguezais e dunas a falésias e restingas. Desde o início assumiu o compromisso de usar a arte como instrumento de conscientização. “A banda já nasceu com a ideologia de usar o poder da arte para passar mensagens de respeito à natureza”, diz Dilton.
O trabalho inclui palestras, mutirões de limpeza, campanhas educativas e plantios de árvores nativas, além de mostras de arte com materiais recicláveis e apresentações em escolas. As ações, realizadas em parceria com instituições públicas e privadas, buscam fortalecer o vínculo entre cultura e clima. “Ao plantarmos uma só árvore no nosso quintal, estamos fazendo o bem para todo o planeta”, afirma o responsável pela banda. “Os impactos foram positivos”, emenda.
Para a artista e comunicadora Negra Eve, o reggae vai além de um gênero musical — é uma linguagem de transformação social e ambiental nas periferias. “A cultura reggae carrega uma filosofia de conexão”, cita. “O reggae possui uma linguagem acessível, rítmica e política, e faz com que temas como sustentabilidade e cuidado coletivo cheguem às pessoas de forma simples e afetiva.” Em rodas, festas e oficinas, essa conexão se traduz em pertencimento e educação: o som e o corpo se tornam meios de aprendizado e de reconstrução comunitária.
Eve também articula o reggae à luta antirracista e à justiça ambiental, mostrando como esses campos se entrelaçam. “Não existe separação entre justiça ambiental e justiça social”, diz. “A destruição da natureza e a exploração da população periférica têm a mesma raiz: o colonialismo e a lógica de dominação.” Em sua visão, o reggae nasce do inconformismo e da esperança — e é nessa força ancestral que mora sua potência de mobilizar comunidades inteiras para a defesa da vida e do território.

Feiras, campanhas e música
O potencial educativo do reggae é também desenvolvido em Salvador, Bahia, na Associação Alzira do Conforto, um exemplo de entidade que integra cultura, reggae e sustentabilidade ambiental em suas ações culturais. Segundo Alisson Sodré, gerente de projetos da entidade, o trabalho “articula memória, consciência étnico-racial e cuidado com o território”, combinado com oficinas, exposições e caminhadas direcionadas à sustentabilidade e justiça climática.
O Festival Multicultural Raízes do Reggae e o movimento Reggae O Bloco estão entre as iniciativas que unem cultura afro-brasileira, o ritmo e educação ambiental por meio de feiras sustentáveis, rodas de conversa sobre racismo ambiental, além de campanhas para redução de lixo. As ações nasceram do legado de Alzira do Conforto, empreendedora cultural que criou um dos primeiros bares de reggae da Bahia.
Para Negra Eve, o futuro do reggae está em unir ancestralidade e inovação. “Vejo o futuro do reggae conectado à tecnologia e à ancestralidade”, afirma. “É possível usar ferramentas digitais para ampliar ações de educação ambiental, criar plataformas colaborativas, registrar as histórias dos coletivos e promover campanhas de mobilização”.



Na ‘Jamaica brasileira’
Em São Luís, no Maranhão, cidade conhecida como a ‘Jamaica brasileira’ por sua forte ligação com o reggae desde os anos 1970, o ritmo caribenho se tornou parte da identidade local. É nesse contexto que surge a Casa da Tribo, uma extensão do trabalho da banda Tribo de Jah.
Administrada por Juliana Beydoun, a pousada é descrita como “mais do que um local de hospedagem, um espaço de reconexão com a natureza e de respeito à terra”. Situada em meio à vegetação nativa, “preserva cada árvore e mantém o equilíbrio do ecossistema local”, evitando “qualquer tipo de supressão vegetal” e priorizando “o uso de materiais naturais e reciclados na construção e na decoração dos ambientes.”
As ações sustentáveis são parte da rotina. “Realizamos a compostagem dos resíduos orgânicos, incentivamos o consumo responsável de água e energia e orientamos os visitantes a adotarem práticas sustentáveis durante a estadia”, explica Juliana. A Casa mantém áreas de reflorestamento com espécies nativas, valoriza o trabalho de moradores da região e promove atividades culturais e educativas que unem reggae, cultura maranhense e consciência ambiental. “A Casa da Tribo nasceu com alma, e preservar essa alma exige cuidado constante”, emenda.
Como regueira, Negra Eve defende o fortalecimento das bases comunitárias, como as ruas, os quintais, as feiras e os quilombos urbanos como espaços onde a cultura se transforma em prática cotidiana de resistência. “O caminho é unir a diversão e o conhecimento, festa e formação, ancestralidade e inovação”, aponta. “O reggae, assim como outros ritmos que surgem das periferias, são ferramentas de transformação de vida e isso inclui o debate ecológico”.