Em uma época em que a quantidade de informação é infinitas vezes maior do que a capacidade do ser humano para absorvê-la, o ato de ouvir música vem perdendo espaço para inúmeras outras atividades. Escutar um disco inteiro parece ser coisa de apaixonados; afinal, as opções de lazer são inúmeras, mas o dia continua tendo “só” 24 horas. Não é de se estranhar, então, que a música tenha se tornado apenas mais um ruído entre buzinas num engarrafamento.
Dentro desse contexto, a realização de um festival como o El Mapa de Todos torna-se uma experiência mais do que necessária. Um espaço para um público que ama música em suas variadas formas, e que não se contenta em tê-la como mera trilha sonora para lavar a louça.
Em 2014, o El Mapa se expandiu em tamanho (pulou de três para cinco dias, entre 11 e 15 de novembro) e espaço (deixou de ser realizado apenas no bar Opinião, com shows no Ocidente, no Theatro São Pedro e no Teatro Bruno Kiefer, da Casa de Cultura Mario Quintana). A ideia, como explicou o curador do festival, Fernando Rosa, era ampliar e diversificar o público. Deu certo: em alguns dias, havia gente bem mais jovem – crianças, até, como no caso do sábado –, além de pessoas com mais de 70 anos, que talvez nunca tenham ido a alguma edição anterior, mas sentiram-se mais à vontade para assistir a um show no conforto de um teatro.
Sem dar um passo maior do que a perna, o festival mostra, em 2014, que tem potencial para crescer ainda mais, ampliando o interesse do público pela cultura latino-americana e tornando Porto Alegre uma referência importante no cenário musical do continente. Organização competente, atrações interessantes e ingressos a um preço justo: isso é El Mapa de Todos. Bom, se você gosta de música, já deve saber disso muito bem.
Primeiro dia (por Daniel Sanes)
Uma espécie de “esquenta” para o El Mapa de Todos, a terça-feira foi nada menos que o tradicional Sarau Elétrico do Ocidente, mas com temática latina, encaixando com a ideia do festival. A mestra de cerimônias do sarau, Katia Suman, acompanhada por Cláudio Moreno, Diego Grando e Sergius Gonzaga, recebeu o escritor paulistano Santiago Nazarian, que veio a Porto Alegre para lançar, na Feira do Livro, sua oitava obra, Biofobia. Bem-humorado, Nazarian confessou que a literatura latino-americana não foi sua principal influência, e acabou lendo um trecho de seu novo livro, enquanto os demais citaram obras de autores clássicos como os argentinos Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, o colombiano Gabriel García Márquez e o peruano Mario Vargas Llosa, entre outros. A noite foi encerrada com uma breve apresentação de Andrés Correa, cujo som, meio folk, meio pop, foi apresentado de forma crua, somente com voz e violão. O “cantautor” colombiano voltaria ao festival na noite de sexta-feira, com banda completa.
Segundo dia (por Daniel Sanes)
A ideia de levar o El Mapa de Todos para o imponente Theatro São Pedro funcionou, especialmente porque o público de Daniel Viglietti dificilmente acompanharia uma apresentação do uruguaio em pé, em uma casa de shows. Mas a grande sacada foi a inclusão, no mesmo dia, de Luiz Marenco. Um show de música tradicionalista no São Pedro? Não é todo dia que se tem uma chance de ver isso acontecer.
Dono de uma voz potente e admirado por muita gente não familiarizada com o cancioneiro nativista, Marenco fez valer a oportunidade (“é a realização de um sonho me apresentar aqui no São Pedro”) e caprichou no repertório. Em “Querência, Tempo e Ausência”, contou com o “irmão” Thedy Corrêa, que ainda dividiu o microfone com o amigo em “Diga a Ela”, sucesso do Nenhum de Nós.
O grupo que acompanha Marenco é um show à parte, com destaque para o acordeonista Aluisio Rochembach, que, diante da acústica perfeita do teatro, mostrou todo o seu talento na gaita. Ao som de “Cantador de Campanha” e “Batendo Água”, Marenco se despediu do público, tão entusiasmado quanto ele.
Aos 75 anos, Daniel Viglietti é uma lenda da música uruguaia. Sentando em um banquinho com seu violão, sem um músico de apoio sequer, o cantor mostrou que a idade não lhe tirou a voz e muito menos a irresignação com as injustiças do mundo. Em cerca de uma hora e meia, apresentou seus principais clássicos, além de canções dos saudosos Alfredo Zitarrosa, seu compatriota, e Violeta Parra, do Chile. Sempre interagindo com a plateia, Viglietti emocionou ao tocar “Milonga de Andar Lejos”, cuja letra inspirou o nome do festival, e “Canción para mi América”. Uma boa síntese do show, feita pela estudante de Jornalismo Bárbara Ramos, no Twitter: “Hoje eu aprendi com Viglietti mais do que em qualquer aula de história. #ElMapaDeTodos#PraVida *-*”. Simples assim.
Terceiro dia (por Henrique Coradini)
Em sua terceira noite, o El Mapa de Todos buscou explorar as novas perspectivas pop do continente sul-americano. A primeira banda a subir no palco do Opinião foi a Skrotes, que brindou o público com um misto instrumental encorpado de ritmos como rock, funk, jazz e samba. Trocando a guitarra por um conjunto de teclados, o trio parece estar criando uma alternativa tropical ao Krautrock (com bem mais calor humano). O show teve ainda participação especial de Tonho Crocco, que fez algumas intervenções no talkbox acompanhando os catarinenses.
O público que chegou depois da Skrotes foi recebido pelo indie folk morno dos uruguaios da Molina Y Los Cósmicos. As melodias perenes, que bailam entre o doce e o melancólico, dão um ar subtropical a conjuntos derivados de Los Hermanos, como Banda do Mar e Little Joy. O show acabou com uma versão de “Cowboy Fora da Lei”, de Raul Seixas, com a participação dos músicos locais Alex Vaz, Clarissa Mombelli e Santiago Neto.
A explosão criativa da noite ficou por conta do Bomba Estéreo. Logo de início, o grupo de Bogotá já mostrou o “poder caribenho” que propõe em sua “música tropical psicodélica para bailar” (palavras da vocalista Liliana Saumet). A banda colombiana funciona incrivelmente bem ao vivo, há uma coesão explícita em busca de intensidade e, para além dos sintetizadores, a bateria e a guitarra ganham papéis essenciais no arranjo. Nesse momento, até mesmo algumas pontas de beck podiam ser vistas circulando como vagalumes pelo Opinião.
A dura tarefa de tocar depois da Bomba Estéreo ficou por conta dos sergipanos da Coutto Orchestra, que, aos poucos, conseguiu animar o ainda extasiado público remanescente com suas incursões regionalistas envoltas de texturas eletrônicas e performance teatral.
Quarto dia (por Daniel Sanes)
A quarta noite do festival – segunda em seu mais tradicional palco, o do Opinião – manteve o ritmo da anterior. Logo de cara, o público foi sacudido pelo grupo La Cumbia Negra, que, entre outros, tem em sua formação o ex-Pata de Elefante Gabriel Guedes, Guri Assis Brasil, da Pública, e o produtor musical Carlos Eduardo Miranda. Mesmo desconhecida, a banda fez todo mundo dançar com sua cumbia instrumental – incluindo, aí, uma versão suingada de “Marta”, da Pata de Elefante.
O pernambucano Juvenil Silva trouxe fortes doses de saudosismo a seu som, com teclados que remetem à Jovem Guarda e um quê de Raul Seixas na voz. O certo é que ele agradou ao público com canções simples, mas eficientes. Pena que, nesse momento, o som dos microfones estava irregular, dificultando a compreensão das (boas) letras de Juvenil. No final, ele chamou Wander Wildner ao palco para tocar o clássico “Eu não Consigo Ser Alegre o Tempo Inteiro”, do ex-Replicante, que acabou em ritmo de marchinha.
Andrés Correa, que já havia tocado sozinho na terça-feira, voltou com banda completa. Mesmo assim, o som melancólico do cantor não animou muito a plateia, bem dispersa na hora do show. O colombiano só teve mais atenção quando Ian Ramil subiu ao palco para fazer uma participação, e olhe lá.
Do Chile, veio Camila Moreno. Pouco conhecida, a cantora de jeito meigo arrebatou o público – e, pelo que se via na pista, alguns corações. Com voz marcante e uma performance intensa, ela simplesmente matou a pau. O repertório deu destaque para seu disco mais recente, Panal (2013), mas, diante de uma plateia que ignorava sua existência, isso é um mero detalhe. O importante é que, depois dessa incrível apresentação, o Brasil – ou pelo menos Porto Alegre – descobriu que não é possível passar batido pela música de Camila Moreno.
Em um festival raramente acostumado a atrasos, o Mundo Livre S/A, com problemas nos equipamentos de som, demorou mais do que o previsto para subir no palco. Mas os fãs não arredaram pé, pois sabiam que Fred Zero Quatro e cia. iriam apresentar seu debut, Samba Esquema Noise, de cabo a rabo, em comemoração aos 20 anos do álbum. Não foi exatamente na ordem, mas rolou o disco inteiro e, melhor ainda, algumas coisinhas mais, como músicas dos amigos da Nação Zumbi (“Meu Maracatu Pesa Uma Tonelada”), uma homenagem ao mestre Jorge Ben (“Mexe, Mexe”) e hits inevitáveis (“Meu Esquema”). Com um bis atrás do outro, o show dos pernambucanos foi terminar perto das cinco da manhã. Todo mundo estava acabado, mas ninguém reclamou.
Quinto dia (por Henrique Coradini)
Em seu último dia, voltado à produção independente, o festival foi realizado no Teatro Bruno Kiefer. Após alguns problemas com um porteiro meio megalomaníaco que insistia que o local estava lotado (não estava), adentrei para acompanhar os shows do três-coroense Jéf, que conquistou parte do público com seu indie rock baseado em Coldplay e Keane, e Bob Shut, que apresentou um pop rock sem muitos atrativos e que fez parte do público começar a esmorecer.
No primeiro suspiro criativo do dia, o duo caxiense Projeto Ccoma apresentou um misto de ritmos típicos de culturas diversas com acompanhamentos orgânicos e eletrônicos. A apresentação já agradava bastante, mas os caxienses fizeram o público botar o teatro abaixo ao chamarem ao palco os senegaleses do Tam Tam Africa. A celebração multicultural que misturou ritmos africanos com batidas eletrônicas fez o público levantar das cadeiras do teatro para dançar pela primeira vez na noite. Um momento memorável.
Após um show morno dos brasilienses da Beto Só e Banda, que só conseguiu animar o público com uma cover de “Banana”, da Superguidis, e uma participação especial de Frank Jorge, o teatro foi tomado pelos argentinos da Bestia Bebé, que logo de cara conquistaram o público com um guitar rock de arranjo carismático e estética tipicamente interiorana. Formada no bairro de Boedo, em Buenos Aires, a banda mostrou que boas bandas baseadas em peso e melodia já são tradição no país, como os compatriotas do El Mató a Un Policía Motorizado, velhos conhecidos do público do El Mapa.
A grande atração da noite ficou por conta dos goianos da Boogarins, que tocaram para um teatro já lotado (com muitas pessoas de pé). A banda já tinha o público a seu favor, mas superou qualquer expectativa com sua música, que cadencia peso e lisergia em ambientações psicodélicas – elementos que tornaram o disco de estreia, As Plantas que Curam, um dos destaques da produção nacional em 2013. Sem subterfúgios, o quarteto tocou por uma hora, deixando o público em êxtase com uma união certeira de vocais lânguidos, guitarras versáteis e cozinha poderosíssima. Ao final, ficou óbvio que o som da banda subverteria o clima de teatro. Logo estavam todos de pé. E assim se encerrou o El Mapa de Todos: com o dia em que a Boogarins botou o Teatro Bruno Kiefer para dançar.