Festival Porongos: música preta independente do Rio Grande do Sul

Resenha: Thaís Seganfredo
Fotos: Anselmo Cunha

20 de setembro, meia-noite. Enquanto o tradicionalismo muitas vezes machista, racista e homofóbico do Rio Grande do Sul era celebrado no Parque Harmonia, um ponto de resistência tinha início não muito longe dali. Nessa hora, começava o Festival Porongos, que reuniu diversas artistas no Bate, casa de shows da Cidade Baixa, mostrando que cultura gaúcha não é sinônimo do tradicionalismo hegemônico e excludente.

A cada ano, mais e mais eventos de contraponto à narrativa oficial e omissa da história gaúcha surgem no dia 20 de setembro, muitas delas protagonizadas pelo movimento negro. Afinal, parece inacreditável ser possível o estado comemorar uma guerra marcada por uma traição que resultou em um massacre dos negros que lutavam. O absurdo todo torna-se dolorosamente mais palpável quando ouvimos repetidas vezes “povo que não tem virtude acaba por ser escravo” ou quando um manequim é acorrentado em um galpão, em uma ação perversa e racista, resultado justamente dessa hegemonia branca, que foi forçadamente construída, institucionalizada por uma organização retrógrada e também confirmada pela mídia tradicional.

(foto: Anselmo Cunha/Nonada)

É por isso que festivais como o Porongos são tão importantes, para lembrar que a cultura negra não é uma cultura alternativa, ainda que contra-hegemônica. Invisibilizada pela narrativa oficial, ela é elemento central na formação cultural e artística gaúcha. Basta lembrar de nomes como Giba Giba e Mestre Borel, que deixaram um legado para a música produzida no RS.  Esse protagonismo, agora contemporâneo, segue cada vez mais fortalecido e visibilizado por iniciativas da cena independente, como é o caso do Porongos, produzido por Daniele Rodrigues, integrante do We are not With The Band e da Segunda Negra e Thaise Machado, do Negra Ativa e também do Segunda Negra.

Nesta edição de estreia, o festival trouxe alguns dos principais nomes que vem despontando na nova cena musical porto-alegrense, passando por gêneros como o MPB, rap, eletrônico e pop. Em comum, o fato de todas as atrações da noite serem protagonizadas por mulheres negras: Camila Toledo, Saskia, Negra Jaque e Sara Nina, vocalista da banda Ivy King – além da DJ Suelen Melo.

Camila Toledo (foto: Anselmo Cunha/Nonada)

Dona de uma voz ao mesmo tempo imponente e aveludada, Camila Toledo foi a primeira a subir no palco, apresentando algumas das músicas que compõem o repertório de seus projetos, Camila e a Ponte e Motherfunky. Destaque para “Banho de Folhas”, da Luedji Luna, que colocou o público para dançar e, apenas com a voz da cantora, o atabaque e uma guitarra, manteve a mesma energia que a original. Outra surpresa foi a versão de Camila para “Cheguei”, da Ludmilla, que ganhou uma roupagem centrada no batuque bem interessante. A cantora também mostrou um pouco de seu trabalho como compositora, apresentando “Antes”, canção romântica que também se mostrou bem gostosa de dançar. Entre hits cantados em coro pelo público, como “Olhos Coloridos”, “Mulher do Fim do Mundo” e “I Feel Good”, a cantora ainda fez questão de lembrar Marielle Franco, cujo assassino ainda não foi descoberto.

Saskia (foto: Anselmo Cunha/Nonada)

A hipnotizante Saskia foi a artista seguinte a subir no palco, com um microfone e um teclado de música eletrônica. Compositora e produtora, a artista é uma das revelações da cena e já abriu shows de Letrux e Carne Doce. Como ela mesmo resume em suas redes sociais, “crio, produzo, mixo, corto, canto, danço, guitarra, baixo, bateria, beat, teclado, samples, barulhos estranhos e uma pitada de sal, ta feita a salada.” Performática, Saskia fez o público dançar ao som de algumas de suas composições mais recentes, várias em inglês. Infelizmente, a acústica do local não fez jus ao trabalho minucioso da Saskia, e apenas quem estava muito perto do palco conseguia ouvir com atenção. Ainda assim, quando ela cantou sua música mais conhecida, a viciante “Crush”, foi difícil não se deixar contagiar. Vale muito a pena conhecer as músicas dela no Soundcloud.

Negra Jaque (foto: Anselmo Cunha/Nonada)

Atração aguardada da noite, Negra Jaque chegou por volta das 3h da manhã ao palco, animando o público que seguia apesar da hora já avançada para um festival. Ela abriu a apresentação ao som de uma música tradicionalista completamente ressignificada na sua composição “Tradição dos Pampas”, na qual fala sobre hip-hop e a cultura que formou sua infância, na zona leste da cidade. Ao lado de MC Camilinha,  seguiu com várias do EP Deus que Dança: “Negonas”, “Cabelo Crespo”, “Batuque Funk” e a mais cantada entre as mulheres negras, “Falam Demais”. Foi um momento de catarse e talvez o de maior energia da noite.

Sara Nina e a Ivy King (foto: Anselmo Cunha/Nonada)

Já com a casa bastante vazia, pouco antes das 4h da manhã, a banda Ivy King começou seu  show cheio de músicas autorais, que transitam entre o groove e o pop da nova MPB, além de covers como Tribalistas. Entre as autorais, destaque para “Quem Sabe” e “Tirando a Sorte”, bastante dançantes. Sara Nina tem uma voz potente e não perdeu o pique em nenhum momento durante a apresentação. É uma pena que tenha ficado pouca gente, porque a banda com certeza merecia ser ouvida por muito mais pessoas. Teve espaço até para um momento mais político, quando a cantora dedicou “O Tempo Fechou” para o prefeito de Porto Alegre, Marchezan Jr (Na somália o tempo já fechou de vez/Irã todos os dias morre mais de cem/Marquezan chora mais alto: não deu pra te ouvir/Eu sou da perifa e não escuto daqui). Seria interessante ouvir essa em um EP.

Com a melancolia das 5h da manhã batendo na porta, o desfile de vozes e estilos deixou um gosto de quero mais e a boa notícia é que Porto Alegre tem uma lista respeitável de nomes que podem compor uma segunda edição. Glau Barros, Pâmela Amaro, Afroentes, Kiai, Alabê Ôni, Raquel Leão, Gil Collares, só para citar alguns. O público porto-alegrense só tem a ganhar com toda essa diversidade de estilos, ainda mais com edições que comecem mais cedo. Com alguns ajustes técnicos, o Porongos tem potencial para crescer e se consolidar na cena. Talento é que não falta.

(foto: Anselmo Cunha/Nonada)

 

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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