Não é só pelo MinC: ocupações dos artistas chegam a 27 cidades do Brasil

O casarão do número 867, na avenida Independência, em Porto Alegre, é um dos diversos símbolos de resistência ao governo interino de Michel Temer espalhados pelo país. O endereço é a sede do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e, assim como em outras capitais, está ocupado por coletivos artísticos desde a semana passada. O prédio não é o único ocupado em Porto Alegre (estudantes secundaristas ocupam dezenas de escolas estaduais por melhorias na educação e a Ocupação Lanceiros Negros segue na luta pela moradia).

Visitamos a ocupação do Iphan na manhã de sexta-feira, 20 de maio, quando os artistas realizaram a primeira assembleia, que contou com conselheiros, artistas de rua, coletivos de teatro e integrantes de Pontos de Cultura. Do lado de fora, barracas de nylon contrastavam com as paredes do palacete da instituição, que começou a atuar anos 30. Nos outros ambientes da sala, os servidores seguiam trabalhando – minutos antes, haviam manifestado apoio ao ato com plaquinhas que formavam a frase “Iphan é MinC”.

Logo se via que a assembleia, com mais mulheres e pessoas negras, representava melhor a sociedade brasileira que a Câmara de Deputados, majoritariamente masculina, branca e heteronormativa. Aquele primeiro encontro definiu os eixos da reivindicação dos artistas: a volta imediata do Ministério da Cultura, a saída de Temer do governo e a prisão de Eduardo Cunha e a manutenção dos direitos culturais e sociais conquistados até o momento.

A demarcação dos quilombos, que passa pelo reconhecimento da Fundação Palmares, foi uma das questões levantadas. “Não adianta a gente conseguir aprovar nossos projetos. Também temos que pensar na cultura como um todo, nos povos indígenas e quilombolas”, disse um dos ocupantes. A luta pela moradia e o apoio aos secundaristas também foram citados, revelando a ampla pauta de temas pelos quais luta a ocupação.

Plenária lotada no Ocupa Minc Porto Alegre (Foto: Fábio Cunha)
Plenária lotada no Ocupa Minc Porto Alegre (Foto: Fábio Cunha)

O movimento, que começou em âmbito nacional aparentemente relativo aos direitos dos próprios artistas, logo se revelou maior: uma reação à caça às bruxas promovida pelos setores conservadores da sociedade. O Ocupa Minc começou em Curitiba, na sexta-feira, 13 de maio, dia seguinte ao anúncio oficial de extinção do Ministério. Nos dias que se seguiram, artistas de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro se juntaram ao movimento. Na cidade maravilhosa, o glamouroso Palácio Capanema acabou recebendo mais atenção da grande mídia e também da mídia alternativa.

Porto Alegre foi a décima quinta ou décima sexta capital nesta onda de ocupações de prédios federais do Ministério da Cultura. Depois de trocarem mensagens com integrantes do Ocupa Minc e buscarem apoio, os porto-alegrenses combinaram o ato no prédio da Companhia de Arte, sede de vários coletivos e grupos artísticos do município. Por volta das 18h de quinta-feira (19), cerca de 50 artistas entraram no prédio do Iphan, alguns com barracas e colchões para passar a noite.

A comunicação oficial do movimento é feita pela página Ocupa Minc Porto Alegre no Facebook. A mesma estratégia é adotada pelas outras 26 ocupações espalhadas pelo país, e as fotos de perfil dos movimentos acabam por formar uma espécie de arco-íris, refletindo a diversidade inerente à cultura brasileira. Porto Alegre adotou a cor-de-rosa. Na página, os artistas publicam a programação artística e vídeos com visitantes ilustres – como os músicos Nei Lisboa e Hique Gomez. A ocupação está aberta para os visitantes que queiram participar de oficinas, saraus e assistirem a apresentações gratuitas de teatro e música.

No último sábado, o anúncio da volta do Ministério da Cultura foi celebrado com desconfiança. Para surpresa da mídia hegemônica e de Michel Temer, que esperava acalmar os ânimos, as ocupações não só continuaram como cresceram. Os artistas davam o recado: não é só pelo MinC. Representantes do Ocupa Minc anunciaram na audiência pública da Comissão da Cultura da Câmara – realizada nesta terça (24): “não aceitamos diálogo com governo golpista”. O movimento também declarou repúdio a grupos como o Procure Saber e a Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro, que naquela tarde preferiram estar presentes na posse de Marcelo Calero como ministro da cultura. A audiência teve convidados como a liderança indígena Sônia Guajajara, que reforçou a importância da cultura indígena e denunciou: “existem 182 medidas anti-indígenas tramitando nesta casa”.

A próxima etapa do Ocupa MinC, além de pedir a saída de Temer do governo, é garantir as políticas culturais conquistadas até agora. Como já abordamos em nosso editorial, a comunidade cultural cobra a manutenção dos avanços conquistados desde o mandato de Gilberto Gil como ministro da Cultura em 2003. Gil revolucionou o conceito de cultura adotado até então pelo Estado brasileiro, ampliando as políticas e elevando as culturas populares, indígenas, quilombolas e periféricas ao mesmo status das artes acadêmicas. A preocupação dos artistas é pelo respeito à Lei Cultura Viva (que garante esses avanços) e com a importância dos conselhos de cultura. “É a sociedade que tem que definir o que é cultura”, afirmam.

As ocupações seguem em todo o país sem data para acabar. Em Porto Alegre, os artistas comunicam que estão precisando de doações urgentes de verduras, frutas e legumes, além de feijão, lentilha, leite, aveia, ovos, água, bacias grandes, assadeira, água sanitária, pão e margarina/manteiga.

Atualização: Leia o Manifesto dos artistas de Porto Alegre:

“Carta Manifesto Ocupa MinC Porto Alegre
Somos o que somos: inclassificáveis

Nós, trabalhadorxs da cultura, estudantes, educadorxs e coletivos artísticos do Rio Grande do Sul, diante da consolidação do golpe político-jurídico-midiático que anulou os nossos direitos de cidadania e invalidou 54 milhões de votos, declaramos que NÃO RECONHECEMOS ESTE GOVERNO GOLPISTA! Não compactuamos com uma estrutura governamental composta majoritariamente por homens brancos cisgêneros e heterossexuais, fundamentalistas religiosos e intolerantes com a diversidade, para os quais a nossa existência é uma ofensa.
Somos mulheres, homens, cisgêneros, transgêneros, interssexuais, homossexuais, heterossexuais, bissexuais, assexuadxs, pansexuais, adultxs, crianças, idosxs, adolescentes, negrxs, brancxs, estrangeirxs, refugiadxs, quilombolas, Guaranis, Charruas, Kaingangs, vermelhxs, amarelxs, mulatxs, mamelucxs, cegxs, surdxs, loucxs, batuqueirxs, pagãxs, cristãxs , judeus, espíritas, muçulmanxs, ateus, do campo, da cidade, das matas, altxs, baixxs, gordxs, magrxs, saradxs, feixs, sujxs, belxs. Somos tudo isso e, ao mesmo tempo, somos o que somos: inclassificáveis.

Tão logo os usurpadores do poder tomaram posse dos cargos, extinguiram os Ministérios das Comunicações, do Desenvolvimento Agrário, da Igualdade Racial e Direitos Humanos, das Mulheres e da Cultura, órgãos estratégicos para a garantia das políticas públicas e direitos sociais.

Perante uma grande mobilização nacional dxs trabalhadorxs da cultura, o governo golpista decidiu restituir o Ministério da Cultura, gesto que demonstra a força indiscutível da pressão popular. Entretanto, não comemoramos vitória, pois entendemos a cultura como a própria forma como se organiza uma sociedade em suas dimensões simbólica, social e econômica. E hoje é esta forma que está ameaçada: a nossa livre expressão, o nosso direito de ser.

Motivadxs por todo esse contexto nos unimos ao Movimento Ocupa Minc, hoje pulsante em TODOS os estados do Brasil. E, no dia 19 de maio, ocupamos o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), único prédio próprio do MinC em Porto Alegre, um espaço que detém o valor de preservação material e imaterial da nossa história e memória, apesar de estar orientado por uma perspectiva hegemônica. Aqui inicia a Ocupa MinC Porto Alegre! O IPHAN RS se mantém em pleno funcionamento. Não somos nós que queremos o fim da cultura!

Entendemos o ambiente da Ocupação, que se constrói a partir de uma atemporalidade e de um não lugar da cultura, como um ponto de encontro de pessoas que reconhecem nela a potência de criação e transformação da realidade. Não aceitamos nenhum retrocesso! Queremos a retomada e o avanço dos programas político-sociais extintos por esse governo fundamentalista! Queremos os nossos direitos, a nossa cidadania, não apenas garantir um valor monetário para um setor! Queremos de volta o direito de decidir as nossas vidas!

Pela cultura da democracia e pela democratização da cultura:
#ForaTemer!
#NãoÉSóOMinC!
#PelasPolíticasSociaiseCulturais!

“Um homem roubado nunca se engana”
(Chico Science – Da lama ao caos)
#OcupaMinCPortoAlegre, 25 de maio de 2016.”

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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