Mel Duarte: “Não precisamos ficar presos na Flip, temos feiras literárias plurais e incríveis”

Foto: Fundação Telefônica/reprodução

Poeta, slammer e produtora cultural, a paulista Mel Duarte conheceu a poesia aos 8 anos de idade. Autora de Fragmentos Dispersos (2013) e Negra Nua Crua (2013), Mel é uma das fundadoras do Slam das Minas SP.

Ela esteve no Rio Grande do Sul entre os dias 29 de junho e 2 de julho, quando realizou uma oficina de slam, participou de rodas de conversa sobre poesia e resistência e de slams em Porto Alegre e Pelotas. O Nonada – Jornalismo Travessia conversou com a autora que falou sobre início da carreira, o movimento marginal na literatura, a Flip e o genocídio da população negra. Confira:

Nonada – Como você começou a escrever?

Mel Duarte – Eu comecei a escrever muito nova, conheci a poesia com oito anos e foi amor à primeira vista. A partir dali eu falei: “Poxa, isso é muito acessível, é fácil. Só precisa ter um papel, uma caneta e escrever. Por que eu nunca pensei nisso antes?”. Foi por conta da escola, eu lembro que a gente tinha um caderno de exercícios para ajudar na dissertação, na escrita, e nesse caderno tinham vários versos, explicava a questão da literatura e principalmente como se escrevia uma poesia, um soneto, e eu achei isso muito legal, porque eu nunca tinha parado pra pensar que existia uma regra para se escrever aquilo. Aí eu comecei a treinar versinhos, e eu acho interessante rimas, já que meus pais são muito ligados à música – isso fez muita diferença para eu ter um ouvido mais sensível para a poesia mesmo. Comecei a pedir livro de poesia para os meus pais.

O primeiro livro que ganhei foi de Fernando Pessoa, e eu decorei o livro inteiro. Conforme eu ia lendo, ao mesmo tempo que achava lindo e gostava, eu não entendia muita coisa. Primeiro, porque eu era uma criança, e segundo porque minha família não falava daquele jeito, ninguém que conhecia usava certos termos. Então me lembro que eu tinha um dicionário que ficava comigo do meu lado o tempo todo, e as palavras que eu não conhecia eu anotava. Fiz um caderno só de palavras. E depois eu fazia um caderno só de palavras que rimavam – todas as palavras que rimavam com -ar, com -er, etc. Enfim, não tinha mais o que fazer, eu era criança, a minha distração era brincar com palavras, literalmente. Eu escrevia muito, de feliz mesmo, e eu acho que isso fez toda a diferença para eu começar a escrever de fato poesia e encaminhar nessa vida. Porque foi algo que eu fazia por hobby. Se eu não tava na rua brincando, eu tava em casa escrevendo.

Eu nunca levei a sério, nunca pensei nisso como profissão. As coisas foram acontecendo de uma forma muito natural conforme eu fui me envolvendo com isso e percebendo que eu gostava. Quando tava pensando em vestibular, faculdade, eu parei pra me perguntar: “Mel, o que você gosta de fazer? Qual é o seu dom? Poesia”, aí caiu a ficha de querer trabalhar com isso. Mas nunca conheci ninguém que trabalhasse, que ganhasse dinheiro, que sobrevivesse fazendo poesia. Você não cresce na escola ouvindo que as crianças e os adolescentes querem ser escritores. É uma coisa que você não vende. Fui vendo também a carência de pessoas jovens escrevendo, e ainda menos mulheres negras, então eu fui percebendo que estou em um espaço que eu tenho essa ferramenta potente na minha mão e que quero fazer a diferença no mundo, então tinha que começar a me movimentar. Acho que foi o melhor caminho que eu tomei na minha vida, apesar de ser muito difícil viver de arte.

Nonada – O que você acha da presença de mais autoras mulheres e de autores negros na Flip desse ano?

Mel – Eu quero ver a Flip acontecer de fato para entender como que vai ser. Ano passado teve muito essa discussão de que não tinha mulheres negras na Flip. Acontece que até tinha, o problema é que não tem a mesma visibilidade, a mesma divulgação do que outros nomes, outros poetas. Eu acredito que depois da cobrança do ano passado a equipe resolveu dar mais abertura. Mas acho também que a gente se preocupa demais com a Flip, sabe? Parece que se você não estiver lá, não chegar lá, você não tem um certo aval, e na verdade a gente não precisa ficar tão preocupado com quem vai estar Flip e com quem não vai. A gente tem feiras literárias da periferia que são incríveis e que tem autoras e autores negros, indígenas, transexuais, uma pluralidade incrível. E a gente fica preso na Flip, tá ligado? É uma coisa que cada vez tem diminuído mais, que tem ficado mais sem graça, sinceramente.

Quando eu fiz o sarau de abertura [em 2016], até teve muito esse retorno de “destaque”, mas falei: “Gente, vocês vivem numa bolha. O que estou fazendo aqui eu já faço há muito tempo e de onde eu vim tem muito mais. Não é novidade. Há mais de dez anos a periferia tem esse movimento e é muito forte, tem muita literatura boa”. Então essa questão de “a voz da periferia”, “a voz das mulheres”… Voz todo mundo tem, como indivíduo e como força. A questão é quem quer ouvir. Porque nós, mulheres, estamos falando há muito tempo, a gente está jogando nossas pautas há muito tempo, mas ninguém dava atenção.

Eu acho muito pesado quando falam que eu represento a voz da periferia. Meu, eu represento a minha voz, da Mel Duarte, pessoa no mundo. As pessoas se sentem contempladas com isso? Que legal, fico feliz. Mas assim, você tem a sua voz, então fale por você também. Acho que a gente tem que parar de colocar em um todo e entender que cada um tem um recorte. Eu, da periferia, saio de lá e vou para o centro, compro seu material, vou no seu evento, vou para a Flip, viajo, gasto uma puta grana porque eu quero estar ali. Não dá para participar dos eventos porque eles não são baratos, então você fica assistindo do lado de fora e fazendo intervenções na rua para vender livro porque quer que as pessoas conheçam seu trabalho. Convidada a participar de uma mesa da Flip eu nunca fui, por exemplo. Consigo contar nos dedos quantas pessoas que fazem parte do movimento marginal da periferia que foram convidados. Essas pessoas estão fazendo esse mundo girar há muito tempo, fazendo muita coisa acontecer, a gente está falando há muito tempo. Todo mundo é a voz.

Agora quando vocês estão interessados em ouvir e sair da bolha de vocês, ir pra periferia, ir assistir um sarau da Cooperifa, ir à Felizs, que é a feira literária da Zona Sul, que o Binho (do Sarau do Binho) organiza – ele é um monge do sarau, um cara que está há muito tempo fazendo muita coisa acontecer. Então, acho que a gente tem que dar menos valor a essas coisas que já têm valor demais e começar a olhar também um outro movimento que já existe e que aparentemente é silenciado por conta desses outros eventos. Eu fico feliz em saber que dessa vez eles chamaram mais pessoas negras, mas eu vou pra Flip esse ano por conta própria porque eu quero ver com os meus olhos para entender o que são essas “mais pessoas negras” e como elas estão, porque não adianta você chamar Conceição Evaristo, Elisa Lucinda, pessoas fodas, e colocar numa mesa em que o ingresso é 80 reais. Quais pessoas negras vão comprar esses ingressos para ir lá assistir? Se também não é acessível, acaba ficando, de novo, para as mesmas pessoas. Preciso entender aonde que entra isso, essa é a minha curiosidade. Eu acho que tem uma diferença de você levar essas pessoas e deixar ser acessível e colocar elas numa salinha e só quem pode pagar ingresso pode ver, porque aí continua da mesma forma. Acho isso muito complicado.

Nonada – A sua poesia é muito forte e empoderadora para mulheres, e talvez principalmente para mulheres negras. Quem te empodera? Quem te inspira?

Mel – Nossa, muitas pessoas. A primeira mulher que é foda, que eu percebi que é maravilhosa, é minha mãe. Para além dela, na literatura, eu sou apaixonada pela Elisa Lucinda, tenho uma paixão platônica por aquela mulher. Pela história de vida dela, pela produção literária que ela tem, de tão segura que ela é, carismática, maluca. Ela sozinha é uma show woman – faz a energia do lugar mudar, um evento parar. Gosto muito da Conceição Evaristo, da Luz Ribeiro – minha parceira maravilhosa que foi representante do Brasil esse ano na Copa Internacional de Poesia. Acho que principalmente as mulheres que caminham comigo e que vejo trilharem esse ar do caminho da poesia. Tipo, de várias meninas que conheço que são mães, que estão na periferia e se dedicam à poesia, que lançam livros e que estão presentes nos espaços de fala e de militância.

Eu acho isso muito incrível, porque fazer militância no seu sofá, na sua internet, é muito fácil. Quero ver você estar no meio da rua – com duas crianças gritando – escrevendo e causando para uma melhora da sociedade. Acho que as mulheres que caminham comigo são, hoje em dia, as que mais me inspiram, porque estar perto delas, dessa movimentação, e ver como uma fortalece a outra, eu acho isso incrível. Mas se a gente for pensar na literatura, tem várias mulheres: Esmeralda Ribeiro, Miriam Alves, nossa, tem muita gente. O bom de estar em São Paulo é mulheres que eu admirava, que eu conhecia da literatura, que eu lia, hoje eu converso, tenho contato, sou próxima. Nunca imaginei estar próxima dessas pessoas. Nunca imaginei fazer um evento com Elisa Lucinda, uma vez a gente foi convidada juntas a apresentar um evento. Foi lindo.

Mel lançou Negra Nua Crua em 2016 (Foto: Raphael Carrozzo)

Nonada – Eu li em um poema do seu livro Negra Nua Crua que a ditadura está solta e é preciso brigar por uma nova aurora. Como você gostaria que fosse essa nova aurora? O que você quis dizer com isso?

Mel – É algo bem utópico, na verdade. A gente tem uma problemática muito grande com a questão do genocídio da nossa população negra. Em São Paulo e no Rio de Janeiro isso é muito gritante nos meninos da periferia. A gente perde pessoas o tempo inteiro. Eu estive no Rio há pouco tempo com alguns amigos, no Morro do Alemão, e a gente tava conversando, trocando uma ideia, sentado em um dia lindo de sol, e de repente começaram uns disparos que você não sabe de onde vem, e você percebe como sua vida é frágil e a todo momento qualquer coisa pode acontecer com você, com seu amigo, com a sua mãe, com seu familiar, com seu vizinho. É horrível você viver nessa sensação de “minha vida não vale nada para ninguém”. O começo de tudo é a questão da nossa Polícia Militar.  No dia em que a gente falar “não temos mais Polícia Militar” já vai ser um começo de uma nova aurora. Daí a gente vai entrar em várias outras questões, políticas principalmente. Que as mulheres não sejam tiradas de seus devidos lugares de poder, para começar.

Acho que a gente tem que repensar muita coisa, mas infelizmente eu não sei se eu vou estar viva para ver essa nova aurora acontecer. Eu sinto que hoje a gente faz parte de uma geração que não se cala mais, que se movimenta para trazer a mudança, que sofre repressão – porque isso acontece até com os eventos que a gente faz na rua – mas eu não sei se é uma mudança para já. Eu sinto que ainda é um movimento muito pequeno perto de todo um poder que existe, toda uma massa que controla a gente e a gente nem sabe. O que a gente sabe é muito pouco perto do todo que essa galera faz. Às vezes eu fico pensando: “pô, a gente quer que mude, mas para onde? Para onde tem que ir, o que tem que ser feito?”. Eu também não sei a ponto de se a gente der o poder todo para o povo se o povo vai saber gerenciar esse poder. Até porque ao mesmo tempo que a gente pensa muita coisa igual, muitas pessoas pensam diferente. É difícil você sentar 20 pessoas ligadas à cultura e fazer com que todo mundo pense igual, para que todo mundo saia ganhando, dentro de uma política pública. Então imagina pegar uma população inteira nisso. São coisas bem complicadas de se parar para pensar.

Eu não sei para onde a gente iria, mas o começo de tudo, para mim, é acabar com a polícia militar, e começar a repensar toda essa forma de se cuidar do nosso Estado e da nossa juventude, de menores infratores, da questão da escola, dos professores. É o início de um todo que vai ser maior – vão ser essas pessoas que vão crescer, que vão cuidar do país. A gente tem que entender aonde começa isso para plantar uma semente de uma forma correta para que, mais pra frente, a gente possa também possa colher coisas que a gente queira. Não adianta utilizar violência e depois querer que aquele menino cresça sendo a pessoa mais amável do mundo, isso não vai acontecer. Acredito que seja por aí. Mas assim, o mundo perfeito  também não sei qual que é – na verdade eu acho que não é nem nessa dimensão. Aqui a gente tem que passar por uns testes para evoluir e sair daqui. Na verdade, eu tô pensando em quando que a galera lá de cima vai chegar logo. Olha, tá foda viver aqui, tá foda.

 

Nonada – A voz da periferia está ecoando cada vez mais alto, eu tenho percebido isso. O que você acha que está possibilitando isso? As pessoas estão mais abertas a outros pontos de vista?

Mel Duarte – Acho que, para além de estarem mais abertas, a gente está num movimento novo, diferente, a juventude está muito mais atenta, muito mais questionadora e está se posicionando mais. Acho que por conta de tudo o que o país está passando, não tem como ficar muito indiferente, e principalmente porque é a periferia que sempre acaba sofrendo mais, no elo mais fraco é onde a corda estoura. Acho que as gerações vão passando e conforme vem uma nova geração, tem alguma outra mudança para se transformar, e principalmente por conta de 2013, quando rolaram as manifestações em São Paulo, isso também trouxe um gás para a juventude.

A gente precisa se unir mais, colocar mais pautas em espaços públicos, falar, e a arte tem feito também muito isso. E no fim, a poesia acaba vindo como essa arma totalmente potente para que a gente possa colocar outras coisas. Você estar num espaço, como um sarau ou um slam, que é democrático, que você pode trazer o seu discurso, as coisas que você acredita, que quer mudar, e principalmente na periferia, onde você passa a maior parte do tempo calado, ninguém quer te ouvir, ninguém quer saber quais são suas necessidades, o que você precisa, de repente surge um espaço em que você pode trazer tudo isso. Acho que conforme as pessoas vão percebendo que está rolando essa movimentação, isso acaba crescendo. É importante a gente começar a ouvir o que essa galera está falando, por que está rolando todo esse movimento. E eu percebo que isso é uma crescente, ele está vindo e vai aumentar mais com mais pessoas à frente do movimento querendo discutir novas pautas.

Nonada – O que é o slam?

Mel – Slam é uma batalha de poesia, que na verdade já existe há muito tempo, mas no Brasil chegou em 2008 com a Roberta Estrela D’Alva. É outra proposta, totalmente diferente das batalhas de rima, como as pessoas já estão acostumadas. Tem que utilizar três textos próprios de até três minutos – existem umas regrinhas para poder brincar no slam, que na verdade é só uma desculpa para levar poesia para a rua, para os espaços públicos, para se comungar a palavra, também uma outra forma de ressignificar poesia. A periferia tomou isso completamente para si, isso eu acho incrível.

Nonada – E como surgiu o Slam das Minas?

Mel – O Slam das Minas São Paulo surgiu por conta da ideia já de um encontro com o Slam das Minas do Distrito Federal, que foi o primeiro slam para o gênero feminino. Então, ano retrasado, conversando com as meninas – porque todas nós estávamos na final do campeonato nacional de slam – percebemos essa falta de representatividade das mulheres de outros estados também, das meninas nunca chegarem na final das batalhas. A gente sempre ficou incomodada e questionando o porquê disso, e conversando com as meninas lá elas disseram: “Olha, a gente tá fazendo esse movimento aqui, tá dando muito certo”, porque é um espaço onde as mulheres vão para se encontrar, onde as meninas podem se testar, não tem essa cobrança do masculino observando e analisando tudo, então elas começam a se sentir mais confortáveis de falar poesia ali. E junto com outras três amigas – a Luz Ribeiro, a Carol Peixoto e a Pam Araújo – a gente trouxe o braço do Slam das Minas para São Paulo – por isso o nome é Slam das Minas – SP.

A ideia era manter mesmo essa unidade para a gente conseguir criar um movimento específico de slam, de batalha de poesia voltada para o gênero feminino. E deu muito certo. No primeiro mês, a gente fez duas edições que foram incríveis. A gente lotou um espaço lá em São Paulo chamado Casa das Rosas, que é um espaço mais burguês. A gente conseguiu levar a periferia, as mulheres em peso para batalhar. Enchemos a casa, foi lindo, e a gente viu como tinha muita gente e não tinha espaço realmente, a demanda era grande. Conforme a gente foi fazendo, a gente viu que a coisa só foi aumentando, cada vez mais indo meninas novas que a gente nunca tinha ouvido falar, nunca viu em nenhum outro slam, outro sarau – porque elas tinham essa vergonha de se colocar nesses espaços – e no Slam das Minas elas se sentiam à vontade.

A partir daí a gente brinca que a gente criou monstras, que é até o grito de guerra do Slam:  “Slam das minas, monas e monstras”. A gente criou várias monstrinhas, do caso de as meninas chegarem lá tremendo com o papel na mão, de não conseguir falar direito, e aos pouco ir trocando, ir conversando, ir se soltando e hoje estão ganhando outros slams em outros lugares de São Paulo, indo até a final. Então é um movimento que é importante para isso, para reforçar a presença da mulher nesse espaço e para a gente se preparar, se cuidar também, trocar ideias, porque normalmente, em outros lugares, a gente acaba não conseguindo. Lá a gente tem até uma rede de mulheres: fazem fotografia, organizam os eventos, é tudo feito por mulheres. E ele é itinerante, então cada vez – é uma vez por mês – a gente tenta fazer em lugares organizados por mulheres também. A gente também acaba dando um giro pela cidade, conhecendo espaços, se conectando a outras mulheres e outros trabalhos, bem legal.

Nonada – Falando nisso, como você aperfeiçoou essa coisa da declamação?

Mel – Eu não sei, eu nunca tive nenhum pensamento de “eu preciso ser a melhor” ou “eu preciso conseguir isso”. Eu só fiz pela vontade de fazer. Sei lá, acho que tem coisas na vida que são chamados, você veio para fazer elas e ponto. Conforme eu fui vivendo, eu percebi que a poesia estava interligada na minha vida de qualquer jeito, eu não podia escapar dessa missão de trabalhar com a poesia. E é isso, a partir do momento em que você escreve, você quer que as pessoas leiam o que você escreve, mas eu tinha muita necessidade de falar.

Eu sempre fui muito comunicativa, então eu descobri na poesia também que essa coisa da fala, para mim, é muito importante. Claro que é um processo, até chegar naquele espaço, conversar com outras pessoas, falar um texto que é seu, e sei lá como as pessoas vão reagir a isso. Porque às vezes é legal, mas às vezes não é, ainda mais se você mexe com certos temas que incomodam as pessoas, então nem sempre vão vir só flores, você tem que estar preparada. Fui participando dos eventos que eu sempre participava, e as pessoas até me chamavam para apresentar coisas, e eu vou!, não tenho muita vergonha de lidar com o público, eu gosto, então foi um processo que eu fui também aprendendo e amadurecendo com o lidar com as pessoas.

Não é fácil, eu ainda tremo, eu gaguejo, eu erro poesia. Normal, não sou perfeita. Isso é legal também, porque faz parte do ser humano. Mas foi algo muito natural. Eu tenho um coletivo que a gente trabalha com poesia dentro de transportes públicos há cinco anos, em metrô, trem e ônibus. O Poetas Ambulantes me ajudou muito com isso, com essa questão da fala, de saber me colocar, de apresentar na frente das pessoas, de pessoas que nem sei se querem ouvir poesia, nem sei como elas vão reagir a isso, mas tentar trazer o melhor de mim, o melhor daquela poesia para que o fim da tarde daquela pessoa seja agradável. E a resposta é ali na hora: se ela gostou, você vai ver; se não gostou, também. Isso me ajudou muito a aprender a me colocar, a projetar minha voz, enfim, a trabalhar toda essa questão de performance também para além do slam. Acho que o Poetas Ambulantes vem antes disso ainda, para me ajudar a trabalhar tudo isso na livre e espontânea pressão.

Nonada – Quais são as dificuldades que você enfrentou e ainda enfrenta por ser uma escritora mulher negra?

Mel – Eu acredito que, comparada com a geração anterior à minha, eu já enfrento muito menos problemas, porque a gente tem internet, uma grande aliada que me faz chegar em lugares e pessoas que talvez fisicamente eu nunca vá chegar – eu acho isso incrível, eu recebo mensagens do interior da Paraíba, da Bahia, de cidades que eu nunca ouvi falar, essas pessoas conhecem meu trabalho por conta da Internet, e eu acho isso um ponto muito positivo porque é uma porta de entrada, e acredito também que a gente também tenha mudado muito na questão de apresentar mesmo.

Muitas professoras estão dando aula para pessoas mais novas que já estão nesse outro universo, já estão conhecendo outras coisas e querendo levar isso para a escola. Porque quando eu cresci, eu não tinha referência de mulheres negras, e eu nem sabia onde procurar, para quem perguntar. Na minha família eles também não tinham esse conhecimento. Só depois que fiquei mais velha eu fui trabalhar numa livraria e conheci outras pessoas, além de que ali eu tinha um arsenal de livros à minha disposição e eu pude conhecer isso. Acho que por questão de gerações mesmo isso facilite muito pra que tu chegue às pessoas. Mas é claro que existem espaços e espaços. Tem lugares que é muito mais difícil de você acessar, até porque a poesia não é bem vista. Agora que a gente tá conseguindo mudar, mas geralmente as pessoas acham chato, não é prioridade em nenhum lugar. Para nenhuma escola, para nenhum tipo de evento.

Nonada – Poesia é sempre vista como uma coisa difícil.

Mel – É, de difícil acesso, e tudo o mais. Então eu acho que as dificuldades que eu tive foi mais por querer levar a própria poesia para lugares que não são os lugares onde elas costumam estar. Tipo, eu quis fazer poesia na Fundação Casa [Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente]. Eles não querem que a mente dos meninos abra, que as pessoas tenham outros tipos de atividades para ajudar a crescer. Então, em certos lugares, eu tenho uma dificuldade. Mas durante a minha caminhada eu não posso dizer que não fui bem recebida nesse lugar porque eu era uma mulher negra, por exemplo. Acho que eu também sempre fui muito chata, de me posicionar e estar em certos lugares. “Eu vou, vou fazer, vou falar e foda-se”. Sempre me joguei muito, nunca tive muita vergonha de me expor para mostrar o meu trabalho, então isso também fez muita diferença. Quando mais a gente se omite, menos seguro a gente fica e é mais fácil de as pessoas te passarem a perna. Enfim, acho que é uma questão de se posicionar, de vida. Tive amigas que tiveram muito mais dificuldade. Eu ainda me considero muito privilegiada por já vir com esse ímpeto diferente de me colocar de uma outra forma e conquistar certos espaços que não são fáceis de acessar.

Nonada – Eu li numa entrevista que quando você começou a participar dos saraus, eles eram muito machistas ainda. Você já notou um avanço?

Mel – Sim, até porque ultimamente tem tantas mulheres naquele espaço que, se vir fora do contexto, não passa mais. Totalmente diferente de quando eu tava num evento que tinha 30 caras e só eu de menina. Vou falar o que ali? Você não tem coragem de se posicionar, não vai para a linha de frente, é difícil. Não é nem questão de ser machista, é a questão mesmo de ter muitos homens. A figura masculina ali já te bloqueia para muitas coisas, isso é complicado. Mas de uns três anos para cá, a gente teve uma crescente muito grande de mulheres participando desses eventos – organizando, participando, declamando, e isso faz toda a diferença para que a gente consiga eliminar certas coisas. Já participei de sarau que eu vi várias meninas fazendo uma cara feia quando homens falavam e de repente elas falando: “olha, não dá”, e parou tudo para se discutir. Aí eu falei: “Nossa, que lindo isso acontecer”. Porque é isso, né, são lindos esses discursos mas, você pratica o que você fala? Isso é importante também. Então a partir do momento em que a gente começa a falar que estamos incomodadas e que para continuar em certos espaços precisa que certas coisas fiquem claras, é muito bom. Então vamos lavar roupa suja. Isso não acontecia, isso não se fazia na caminhada que eu tive em saraus, da mulherada se posicionando. Hoje em dia não tem como, não passa mais, e eu acho isso incrível.

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Editora, nordestina, nômade e entusiasta de produções autorais. Gosta de escrever sobre música e qualquer coisa que seja cultura.
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