Reportagem: Laura Galli
Quem circula hoje pelas regiões do 4º Distrito e do bairro Floresta possivelmente não imagina a efervescência ali existente em outros períodos da história de Porto Alegre. O projeto Caminhos Operários, realizado pelo GT História e Marxismo em parceria com o GT Mundos do Trabalho da ANPUH-RS (Associação Nacional de Pesquisadores Universitários em História), busca trazer à tona as memórias operárias dos sujeitos que naquela região fizeram suas vidas entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX. Participamos de uma edição no final de setembro, com mediação do historiador Francisco Duarte Bartz e a presença de mais de trinta pessoas, mesmo sob um sol escaldante de início de primavera, acompanharam atentamente o percurso de cerca de 3 quilômetros.
“Caminhos Operários” existe desde 2015, numa iniciativa que surgiu em meio aos debates sobre a preservação do patrimônio e a importância da memória daqueles que foram esquecidos pela história oficial, que não são nomes de rua, nem marcam o espaço urbano com monumentos em sua homenagem. O trajeto foi pensado privilegiando espaços de trabalho, lazer, moradia e militância da classe trabalhadora no início do século XX começando no antigo 4º Distrito, região que vem sendo objeto de especulação imobiliária nos últimos anos, passando pelos bairros Floresta, Bom Fim e encerrando no Parque da Redenção.
Do encontro na Igreja São Geraldo, datada dos anos 1930, a caminhada seguiu para a avenida São Pedro, onde na Primeira República funcionava a sociedade Águia Branca, que posteriormente uniu-se à Tadeusz Kosciusko e se tornou a Sociedade Polônia, até hoje existente. No prédio que hoje não existe mais (foi substituído por outro, maior), a sociedade com fins beneficentes congregava imigrantes poloneses em atividades sociais. Além disso, abrigou reuniões de grupos como a Sociedade Naprzod (Avante), de socialistas poloneses.
Dali, seguimos para a antiga avenida Eduardo (atual Avenida Presidente Roosevelt), por onde passavam os bondes da cidade. Na esquina com a rua Moura Azevedo se localiza o prédio onde funcionou a Sociedade Gondoleiros. Fundada em 1915 com influência dos imigrantes italianos (o nome de Gondoleiros lembra as gôndolas de Veneza), se tornou ponto de referência de festas e carnavais do bairro São Geraldo. Até mais ou menos os anos 1930, a sociedade servia como lugar de encontro principalmente de festas da comunidade operária.
A avenida Eduardo abrigou não apenas os bailes fechados de carnaval, mas também a festa que ocorria na rua nos dias de Momo. Até meados dos anos 1950 a via fazia parte do circuito carnavalesco dos coretos, em que blocos, tribos e grupos faziam seus desfiles por vários locais. Ali era montado o coreto organizado por trabalhadores e trabalhadoras que viviam na região norte da cidade, com apoio dos comerciantes locais e grande participação de foliões. Na parada em frente à Sociedade Gondoleiros, Frederico chamou a atenção para as dimensões da presença e da ausência no espaço da cidade. A presença, representada pela Sociedade Gondoleiros, prédio que apesar de inativo ainda existe e está preservado, e a ausência, por um terreno na Avenida Eduardo a poucos metros dali: onde hoje há um estacionamento havia até 1944 o Cine Theatro Thalia, local importante de organização de classe, onde comunistas se reuniam para comemorar os aniversários da revolução soviética e a data do Primeiro de Maio, além de ser utilizado também por anarquistas. A memória do Thalia é apagada sem qualquer referência ao que ali havia, num terreno cheio de carros e anúncios em outdoors que esvaziam de sentido um lugar que no passado foi foco de vida cultural e política das classes trabalhadoras.
Seguindo pela Avenida Eduardo, chegamos à Rua do Parque, importante local de encontro na década de 1920. Frederico destacou a rua como reduto operário, com associações anarquistas e comunistas nos anos 1920, por se localizar próxima aos locais de trabalho. Entre os locais de reunião havia o restaurante Hoffman, local de reunião dos comunistas, a União Marítima, que se localizava próxima ao porto, e o grupo anarquista Nova Era.
Foi nessa rua também que entre os anos 1925 e 1927 funcionou a Federação Operária do Rio Grande do Sul (FORGS), que sediou o 3º Congresso Operário em 1925, prédio hoje abandonado e sem qualquer sinal de utilização. Neste local também se reuniam o Sindicato dos Metalúrgicos, da Construção Civil, dos Trabalhadores em Madeira e dos Ofícios Vários. Apesar de algumas casas dessa rua serem tombadas, a impressão geral é a de abandono das construções históricas que, ao invés de nos contarem a história do movimento operário pela materialidade das construções, contam sobre a desvalorização de nossa história urbana e sobre o gradual apagamento das memórias de sujeitos importantes no desenvolvimento de Porto Alegre.
Seguimos pela Avenida Eduardo até a Farrapos e dali para a rua Conde de Porto Alegre. Nesta rua, paramos em um terreno de esquina onde funcionava a barbearia de Abílio de Nequete, imigrante libanês que foi forte liderança operária nos anos 1910, com participação na greve de 1917. Fundou a União Maximalista em 1918, primeira associação a identificar-se como seguidora dos princípios da Revolução Russa. Depois, seria um dos principais responsáveis pela fundação do Partido Comunista, tornando-se seu primeiro Secretário Geral em 1922.
Da rua Conde de Porto Alegre saímos do 4º Distrito em direção ao bairro Floresta, considerado primeiro bairro industrial de Porto Alegre e que assim se chama em função do antigo nome da Avenida Cristóvão Colombo: Estrada da Floresta. Na rua 7 de abril paramos no Moinho Germani, construído na década de 1930 e que se tornou um dos principais da cidade, fundado pelo italiano Aristides Germani e empregando um grande número de operários. Após o moinho ser desativado, a instalação industrial se preservou e atualmente o edifício está cercado por tapume, indicando que está em processo de “revitalização” – não se sabe se reforma ou derrubada. O Germani concentrava mais de cem trabalhadores, sendo um dos maiores da cidade. Ainda que representasse a grande indústria, coexistia com outros espaços, menores, de artesãos e oficinas.
Logo adiante, a algumas quadras dali, chegamos no atual Vila Flores, que hoje se tornou espaço cultural, abrigando diversas iniciativas locais. Há cerca de dez anos o dono do espaço então abandonado transformou-o em um polo de economia criativa, buscando valorizar o local e o bairro em que se localiza. O conjunto de prédios foi construído entre 1928 e 1929 para ser um condomínio popular para trabalhadores das fábricas da região, projetado por Lutzemberger (pai do ambientalista).
Ao caminhar por tantos lugares, vamos entendendo que a região congregava diferentes espaços relativos à classe trabalhadora de Porto Alegre: de moradia, trabalho, lazer e militância. O ato de caminhar por esses lugares nos traz uma noção de presença, de materialidade, e podemos entender a história da cidade através do espaço. Contudo, o gradual apagamento da memória é evidente em inúmeros prédios destruídos ou mal preservados, nenhuma referência ao que existiu antes, abandono. Aos poucos, corre-se o risco de que a história operária, sindical, socialista, comunista e anarquista da região seja esquecida, substituída por edificações sem identidade.
A próxima parada foi na Rua Comendador Azevedo, onde também estavam concentrados locais de militância, como a sede da Federação Operária, em prédio que não existe mais. Foi um local importante na greve de 1919 e também onde ocorreu o 2º Congresso Operário em 1920. Ao lado, funcionou na década de 1910 o Florida Burgerklub, sede da Allgemeiner, principal associação de operários alemães durante a Primeira República, funcionando de 1892 até 1928. O prédio existia desde 1883, depois passou a se chamar Sociedade Flórida na época da 2º Guerra Mundial.
Ali se reuniu durante muitos anos a Allgemeiner Arbeiter Verein, principal associação social-democrata de Porto Alegre, uma das maiores impulsionadoras do movimento operário da cidade na virada do Sec. XIX para o XX. Nessa rua ficava também o sindicato dos cervejeiros. Assim, vimos que na Comendador Azevedo coexistiam diversas organizações – anarquistas, nacionalistas poloneses, social-democratas alemães – e o local foi palco de eventuais conflitos entre as opiniões divergentes. Conforme a caminhada foi evoluindo, mais concreta a dimensão da efervescência das regiões visitadas, ao entrarmos em contato com os múltiplos espaços da vida cotidiana de trabalhadores e trabalhadoras em Porto Alegre no passado. São milhares de camadas de esquecimento sobrepostas pelas ruas da cidade.
A próxima parada não foi em um espaço específico de trabalhadores, mas sim na esquina da Cristóvão Colombo com a Ramiro Barcelos, eixo onde surgiram diversas sociedades operárias na década de 1890 a 1900. Na Ramiro Barcelos funcionaram a Liga Operária Internacional (na esquina com a São Carlos), a União Operária Internacional, anarquista, o Sindicato dos Marceneiros, a Liga dos Operários Republicanos e ainda o Grêmio Republicano Pinheiro Machado, positivista. Mais adiante, na mesma região, ficava o Cine-Theatro Ypiranga, onde havia reuniões e exibições de filmes nazistas na década de 1930.
Frederico ressaltou que ainda que o nazismo estivesse presente em Porto Alegre àquela época, o movimento antinazista e antifascista também sempre esteve em ação, como foi o caso da Livraria Internacional, inaugurada por Friedrich Kniestedt na década de 1920, na Avenida Voluntários da Pátria. Tornou-se um ponto de difusão do anarquismo e chegou a abrigar a sede da FORGS a partir de 1929. No começo dos anos 1930, tornou-se também ponto de resistência ao nazismo, abrigando a Liga dos Direitos do Homem, principal organização antifascista na cidade. Na Ramiro Barcelos já em direção ao Rio Branco, foi fundada em 1916 a Escola Moderna, com o objetivo de ser um centro do pensamento anarquista em Porto Alegre e que foi um importante local de formação.
Caminhando pela Cristóvão Colombo em direção ao centro chegamos à rua Comendador Coruja. Nessa rua fica a casa de Theo Wiederspahn, arquiteto, e onde funcionou a Handwerk Verband – Associação dos Artesãos, criada em 1930. A associação tinha perspectiva de valorização do artesanato e dos artistas, em uma época de avanço da automação na processo produtivo. A rápida difusão da organização mostrou que mesmo no final da Primeira República estas formas de trabalho não haviam desaparecido. Nos anos seguintes, a sociedade também editou um jornal, chamado “Das Handwerk” (O Artesão).
Em frente à Comendador Coruja, está localizada a maior construção pela qual passamos, onde hoje funciona um shopping center, e era a antiga cervejaria Bopp, construída em 1911 pelo arquiteto Theo Wiederspahn. Esta foi uma das maiores fábricas da região da Floresta, onde trabalhava um grande contingente de operários de diversas origens e nacionalidades, fazendo com que a região concentrasse grande número de trabalhadores, tornando-se uma área tanto de diversão quanto de conflito. Nos bares em frente à fábrica, os trabalhadores e trabalhadoras se reuniam em um ambiente em que se mesclavam sentimentos de solidariedade e rivalidade.
Após uma pausa para o almoço, a caminhada seguiu para a esquina da Estrada da Floresta com a Rua Aurora (Cristóvão Colombo com Barros Cassal). A Rua da Aurora era a primeira grande rua dos arrabaldes de Porto Alegre, ligando o Caminho Novo (Voluntários da Pátria), o Arrabalde da Floresta, o Bom fim e o Campo da Várzea (Parque da Redenção). Nessa esquina foi fundado o Clube Floresta Aurora, em 1872, por trabalhadores negros, se tornando sua referência. Teve atuação destacada no movimento operário na década de 1890, além de realizar atividades culturais, beneficentes e festivas. Esteve à frente de comemorações do Primeiro de Maio e participou do Primeiro Congresso Operário. O Floresta Aurora existe até hoje, com sede no Belém Velho, sendo o mais antigo clube social negro da cidade.
Descendo rumo ao Bom Fim, chegamos a uma nova concentração de locais de memória operária em Porto Alegre. Na rua Santo Antônio, paramos em frente ao local onde funcionava a União dos Tipógrafos, que teve como dirigente Francisco Xavier da Costa. Tipógrafo e ilustrador, Xavier da Costa foi um dos mais importantes militantes social-democratas na virada do século XIX para o XX. Negro e com fortes ligações com a comunidade alemã, se tornou um elo entre diferentes grupos étnicos que atuavam no movimento operário. Fundou, junto a outros militantes, o Partido Socialista em 1897 e a Federação Operária do Rio Grande do Sul em 1907. Mais tarde, se ligou ao Partido Republicano e tornou-se vereador do município de Porto Alegre. Ao lado da casa, onde hoje é uma farmácia, funcionou a Federação Operária de 1911 a 1918. Ali foi planejada a greve de 1917 e organizada a Liga de Defesa Popular, que deflagrou e geriu a greve, sendo sede do movimento operário no período de radicalização. Nessa greve, por dois dias, Porto Alegre parou e esteve sob controle dos operários.
Chegando à rua João Telles, a penúltima parada da caminhada foi a atual Sociedade Italiana, antiga sociedade Elena di Montenegro. Associação beneficente da comunidade italiana, durante a Primeira República o local se destacou como espaço para atividades culturais e políticas para o movimento operário de Porto Alegre. Em seu salão foram feitas as homenagens ao anarquista Franscisco Ferrer, quando este foi condenado a morte, era local onde se realizavam peças de teatro do Grupo Dramático e Social, e além disso, também abrigou a reunião que impulsionou a greve de 1918, quando os anarquistas retomaram o controle do movimento operário. No mesmo eixo, na esquina da João Telles com a Vasco da Gama, funcionou a sede do PCB em 1920.
Já na esquina da avenida José Bonifácio com a Osvaldo Aranha, onde hoje é a Igreja Espírito Santo, seria o Atheneu Operário, que deveria ser a principal instituição de ensino para a classe operária de Porto Alegre. A Intendência Municipal havia cedido o terreno e a FORGS estava organizando festivais para arrecadar o dinheiro necessário para a construção, que iniciaria em 1910. Sua construção arrastou-se por anos, inclusive por problemas de divergências entre socialistas e anarquistas, e ao que tudo indica, não chegou a ser concluído.
A última parada do trajeto foi no Parque da Redenção, que até o início do século XX era o Campo da Várzea, funcionando como entreposto comercial na confluência de bairros populares e do centro da cidade. Em relação à história operária, foi ali que teve lugar a Batalha da Várzea, episódio da greve de 1917 em que os grevistas enfrentaram a polícia armados. Uma personagem que ficou marcada nesta batalha foi a jovem Espertirina Martins, uma das principais militantes libertárias do estado. Oriunda de uma família anarquista, Espertirina estudou na Escola Moderna, centro da difusão do anarquismo nos anos 1910 e desde muito cedo participou das lutas do movimento operário da capital. No episódio da Batalha da Várzea, ela, ainda adolescente, jogou bombas, ocultas em um buquê de flores, contra os agentes da repressão. Espertirina permaneceu anarquista durante toda a sua vida.
No Parque da Redenção, local importante em inúmeros momentos da história de Porto Alegre, encerramos a caminhada unindo passado e presente de luta. Foi naquela tarde de 29 de setembro e naquele local que milhares de porto-alegrenses se reuniram em um grande ato contra o retrocesso e a favor da diversidade, da democracia e da liberdade, concomitante a atos semelhantes em praticamente todas as grandes cidades do país. Com esperança para sonhar o futuro, pessoas de diferentes orientações políticas se encontraram e caminharam lado a lado, em prol de uma causa maior: a manutenção de direitos básicos de cidadania. A imensa mobilização, que teve continuidade em atividades durante todo o mês de outubro, não resultou em vitória nas urnas no processo eleitoral.
Justamente por isso se faz cada vez mais necessário o estudo da história de trabalhadoras e trabalhadores de Porto Alegre e do Brasil. Neste final de 2018 e nos próximos anos, será imperativo conhecer os sujeitos que lutaram pela dignidade de classe, e que foram vítimas do esquecimento imposto pela história oficial e por aqueles que detêm o poder. Os nomes desses sujeitos não estão nas ruas, nos monumentos e no cotidiano da cidade e suas organizações são pouco conhecidas. Por isso, a necessidade de valorizar a memória trabalhadora, para aprender e difundir esse conhecimento. Iniciativas como “Caminhos Operários” contribuem para que se evidencie nos espaços da cidade os momentos de luta e resistência de nossa história.
Sugestões de leituras relacionadas:
Site “Trabalho e trabalhadores no Rio Grande do Sul”: https://www.ufrgs.br/trabalhoetrabalhadoresnors/
BARTZ, Frederico Duarte . Abílio de Nequete (1888-1960): os múltiplos caminhos de uma militância operária. História Social (UNICAMP) , v. 14/15, p. 157-173, 2008.
BARTZ, Frederico Duarte . Liga de Defesa Popular: a construção de um espaço de luta política entre os trabalhadores organizados de Porto Alegre após a Greve de 1917. Revista Mundos do Trabalho(online) , v. 8, p. 117-130, 2017.
BARTZ, Frederico Duarte . O Horizonte Vermelho: o impacto da Revolução Russa no Movimento Operário do Rio Grande do Sul , 1917-1920. 1. ed. Porto Alegre: Sulina, 2017. 319p
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz; LUCAS, Maria Elizabeth. Antologia do movimento operário gaúcho (1870-1937). Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS/Tchê!, 1992.
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Que a União Operária seja a Nossa Pátria – História das lutas dos gaúchos para construir suas organizações. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001.
JESUS, Nara. Clubes sociais negros em Porto Alegre – RS: a análise do processo de recrutamento para a direção das associações Satélite Prontidão e Floresta Aurora, trajetórias e a questão da identidade racial. Programa de Pós-graduação em Sociologia. UFRGS. Porto Alegre, 2005.
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