Entrevista: Scholastique Mukasonga

Texto e entrevista: Thaís Seganfredo*
Fotos: Diego Lopes e Bere Fischer/CRL
(Augusta da Silveira de Oliveira contribuiu para essa matéria. Originalmente publicado no site da Feira do Livro de Porto Alegre)

A história de Scholastique Mukasonga é a jornada de uma ruandesa que se descobriu escritora como que predestinadamente, assim como costumam dizer que acontece com os heróis. Scholastique precisava registrar a tragédia vivida por sua família e por toda a etnia tutsi em narrativa literária, se é que é possível dizer que existe uma obrigação no destino de cada um de nós. Há registros na literatura sobre o genocídio que matou 800 mil pessoas na Ruanda em 1994, mas é inédito que uma escritora tutsi o tenha feito. Scholastique vivia na França quando houve o extermínio. Sua família não sobreviveu.

O desejo de se libertar desse devir interno de ser uma guardiã da memória de seus parentes – e de seu país – atormentou a ruandesa por 10 anos. A dor a impedia de falar sobre o fato, e a solução encontrada foi colocar no papel tudo que sabia e sentia, o que deu origem a seu primeiro livro, “Baratas”.  “Eu escrevi sem pensar em publicar, era para salvar a memória, porque eu não tinha nada além disso. A ideia de escrever foi quando tive força de ir para casa, para Ruanda. Dez anos foi o tempo necessário para que eu pudesse ir para lá sem enlouquecer”, a autora contou à plateia lotada do auditório Barbosa Lessa, no Centro Cultural CEEE Erico Verissimo. A conversa, com a mediação de Claudia Laitano, ocorreu na tarde de sábado (10), na 64ª Feira do Livro de Porto Alegre.

Foto: Bere Fischer/CRL

Em “Baratas”, Scholastique revive a história da Ruanda desde antes do genocídio, contando como o ódio ganhou força no país décadas antes da tragédia. “O livro traz uma menininha de três anos que olha ao seu redor e vê ruídos por toda parte. Depois, as coisas avançam tão rápido, estou no campo com a minha mãe. Eu acho que ela não sabia que as coisas aconteceriam daquela forma, mas ela buscou os filhos na escola. As mulheres estavam completamente perdidas, os homens não sabiam o que fazer”, relatou, em francês.

Enquanto ela falava ao público, era como se as linhas de sua escrita se encontrassem com as lembranças ainda vivas da autora, e foi com detalhes que ela nos compartilhou oralmente sua memória,  cuja dor e cujo tempo não compreendemos em sua totalidade. “Todo mundo dormia junto, amontoado na sala de aula. Havia o pânico nos olhos da minha mãe, eu tinha arroz, que não costumávamos comer. Fomos empurrados para dentro de um caminhão. Na Ruanda, o sol se levanta muito cedo, às 6 horas da manhã. Numa bela manhã, chegamos um pátio empoeirado e foi como se o caminhão despejasse todo mundo amontoado. Quando somos crianças, somos protegidos pelo fato de desconhecer”.

Foto: Bere Fischer/CRL

O trauma que devastou o país é narrado pela autora sem poupar o leitor da crueza dos fatos.  Relembrando os momentos em que era criança, ela conta que haviam campos da juventude, nos quais os jovens eram treinados para matar, sendo os responsáveis pelos assassinatos décadas depois. “Eu diria que sobrevivemos em um contexto em que as pessoas não poderiam sobreviver. Sobrevivemos porque em vez de olhar o presente, pensamos o futuro”, disse.

Outros dois livros da ruandesa já foram publicados no Brasil: “Nossa Senhora do Nilo” e “A Mulher dos Pés Descalços”, no qual homenageia sua mãe. “Eu sou muito apegada a esse livro, com ele ganhei o prêmio que mais me tocou. Minha mãe nos criou com amor para que o filho que sobrevivesse pudesse ficar de pé. Ela era uma contadora de histórias, passava a tradição ruandesa para os filhos através da oralidade. A capacidade de escrever eu devo muito a ela”, contou.

Com “Nossa Senhora do Nilo”, obra na qual a autora escreve um romance além de suas obras de cunho memorialístico, Scholastique fez as pazes com seu devir, pelo menos por enquanto. “Ao escrever esse livro, eu resgatei o prazer de viver”, confessou a escritora, hoje vencedora de diversos prêmios literários. Agora, ela toma distância da História e faz da criação também um meio de libertação. “Quando comecei a escrever, eu nem me perguntava se alguma editora aceitaria meus manuscritos. Quando foi publicado, senti alívio em compartilhar a dor, eu não me sentia mais sozinha, não me sentia mais trancada com a dor”.

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Foto: Diego Lopes/CRL

Nos encontramos com Scholastique um dia antes de sua fala, para um conversa de 20 minutos traduzida por Augusta da Silveira de Oliveira, uma das pessoas que acompanhem autores estrangeiros na Feira do Livro de Porto Alegre . Nesta entrevista exclusiva, ela falou sobre a situação de Ruanda hoje, sobre protagonismo das mulheres e sobre a valorização da cultura africana.

Acredita que há uma responsabilidade, um peso maior, quando se escreve sobre violência, sobre dor? Como é teu processo de criação literária ao escrever sobre o genocídio, sobre a tragédia?

Eu escrevo por um dever de memória. Se eu comecei a escrever sobre esse tema da violência, do ódio, da discriminação, que é muito grande, porque foi um genocídio, é porque eu vivi essa história dolorosa. Eu nasci extremamente vítima, já que toda a minha família foi assassinada. Com a deportação, onde eles nos colocaram em outro lugar, a violência sempre foi o meu lugar cotidiano. Os meus pais tinham medo que nós desaparecêssemos e, por isso, fizeram a escolha de me enviar para o exterior, para a França, o que não foi uma coisa fácil porque tive que passar pela fronteira de um país pequeno, Burundi. Eu tive que me afastar para não estar na Ruanda no dia do genocídio em 1994. Isso que você chama de responsabilidade eu chamo de o dever da memória.

Vozes africanas estão sendo tardiamente valorizadas pelas instituições no mundo. O que é preciso para que isso tenha continuidade, para que não seja um movimento passageiro?

Eu não diria que eu estou 100% satisfeita, ainda tem muito a fazer. Eu acho que a África já conquistou o seu espaço, nós a encontramos pelo mundo inteiro, mas temos que sair dessa visão de que somos incapazes. O motivo é que nós somos vítimas da colonização. Isso foi história, isso é fato, já foi condenado e sair disso é um trabalho que deve ser encorajado. Nós temos como qualquer outra pessoa, como um europeu, um ocidental, a capacidade intelectual de escrever.

Nós ainda não temos muitas mulheres na literatura. Na literatura de testemunho, de vivência própria, essa que fazemos na Ruanda – que são pequenos escritos -, tem poucas mulheres. Da África subsaariana, eu sou a única mulher que conseguiu chegar a esse grande destaque. Mas há um progresso, eu não posso dizer que nós retrocedemos. Nós vamos docemente, lentamente, mas nós progredimos. Hoje, por exemplo, a mulher africana se livrou dos tabus tradicionais que a impediam de se expressar livremente. Hoje, ela fala livremente sobre sexualidade, fala as coisas como elas são, que no nosso país de origem poderiam ser muito mal recebidas. A gente não se vê mais como as mulheres que deveriam ser submissas, nos vemos como as mulheres que têm liberdade de pensamento.

Em “Nossa Senhora do Nilo”, você fala sobre questões de classe e discriminação dentro de um espaço feminino. Enquanto isso, em países como a Europa e os Estados Unidos já se fala em um pós-feminismo, algo que não reflete a realidade do Brasil, por exemplo, que é cheio de desigualdades e privilégios. Qual é a tua avaliação sobre a situação do feminismo no mundo hoje?

Hoje em dia, e eu sou convidada em todos os lugares para falar dessas questões, vejo o que está acontecendo com o regime de Trump. É único, é maravilhoso, mulheres que estavam na sombra, negras, imigrantes e que acabaram de se eleger [para o Legislativo americano]. Elas tiveram meios para isso, não caiu do céu. O que é digno de arrependimento e perigoso é quando nós não falamos sobre isso. É necessário que a mulher seja reconhecida em todos os meios, grandes ou pequenos, em todos os lugares. Não se pode criar o tabu.

Não faz muito tempo, estive em Bruxelas, era um dia de conferência somente sobre a situação da mulher na África. É uma situação que na Ruanda nós superamos. Nós vemos a mulher na Ruanda e isso me fez sorrir, Lá a Assembleia Nacional Constituinte foi feita basicamente de mulheres. Todas as instâncias na Ruanda ou são igualitárias ou são as mulheres que estão à frente e os homens estão começando a perder espaço. O objetivo não é fazer uma competição, mas sim chegar ao equilíbrio. A mulher da Ruanda conseguiu se desvencilhar das agruras da maternidade, consegue gerir sua maternidade, com menos influência da religião, e do poder tradicional. Agora, sua prioridade é completar a sua formação, de ocupar funções importantes, como ministra da educação ou dos assuntos estrangeiros.

Foto: Diego Lopes/CRL

Você tem visitado a Ruanda e acompanhado a situação do país, correto? Como está Ruanda hoje social e artisticamente?

Na Ruanda hoje em dia nenhuma área é negligenciada. É um país que se criou com nada. Depois de 1994 já se passou muito tempo, porque o genocídio destruiu tudo. Nós partimos do nada. Ao mesmo tempo, a Ruanda é um país de poucas riquezas naturais, diferente dos seus vizinhos, como o Congo. A Ruanda é um pequeno país que vive absolutamente do que ele produz com suas mãos. Isso é que é marcante, a cada vez que a visito, mais ou menos uma vez por ano, eu não a reconheço. Eu sou uma admiradora do meu povo. Eles não são super homens ou super mulheres, eles são como todo mundo, com suas fraquezas, mas conseguiram se desvencilhar de sua história de divisão, conseguiram não se preocupar mais com o ódio, com a discriminação. Isso não existe mais na Ruanda, eles querem resgatar a sua dignidade.

Hoje, o que é colocado como prioridade é a criatividade. A riqueza de um país é a sua juventude, temos que procurar entre os jovens as suas ideias e vamos escutar cada jovens que têm ideias, é mágico. Hoje em dia há uma mobilização em redor disso, quando um jovem tem uma ideia que pode desenvolver a Ruanda, no domínio da informática, etc. Não é a próxima geração, é a geração de agora.

Nós fazemos um tour por todo país, a gente vai ao campo, a pequenas cidades, à capital, que é impressionante com seus grandes hotéis, clínicas, hospitais, universidades. Outra coisa que a Ruanda tem que desenvolver é o turismo. É um país que está de braços abertos; a cada cinco quilômetro há um tipo de segurança, uma base militar, um policial. O que é interessante sobre a Ruanda é que eles não falam, eles fazem. Quando eles têm uma ideia, eles colocam em prática, é uma outra coisa que eu constatei.

Eu trabalho com muitos jovens como vocês e quando havia alguma grávida não deixávamos passar sete meses e parávamos de trabalhar para preparar o nascimento em boas condições. Bom, eu te garanto que hoje em dia as mulheres da Ruanda trabalham até o último dia e não sofrem mais. Eu digo “é perigoso, você não pode trabalhar até a véspera do parto”, mas elas me respondem “nós não estamos cansadas, nós vamos trabalhar”. Isso para te mostrar a que ponto chega as prioridades dos ruandeses hoje em dia: trabalhar e se colocar dentre os países dignos de viver. A Ruanda se posiciona como um país de mudança.

Conhece algo da literatura ou da arte brasileira no geral?

Eu conheço Conceição Evaristo, que eu admiro enormemente. Eu tive o prazer de encontrar ela em Paraty. É a segunda vez que eu venho ao Brasil, e é verdade que os brasileiros são generosos, eles têm uma curiosidade intelectual incrível. Eu vi quando eu estava em Paraty, eu fui testemunha de como eles leem. Eles andam com um livro na mão, se estão no trem estão lendo, há uma curiosidade incrível, excepcional. E deve ser por isso que o Brasil me convidou, porque já tenho três livros traduzidos na sua língua, já começo mesmo a me pensar como uma autora daqui.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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