Tinta Bruta: uma pintura sobre sexualidade, abandono e solidão

Por Glauber Cruz

“Essa cidade é um purgatório!” diz o bailarino Leo, em uma cena de Tinta Bruta. De fato, na Porto Alegre captada pelas lentes de Marcio Reolon e Filipe Matzembacher, circulam personagens atormentados por decisões e ações do passado, pagando seus pecados enquanto são observados por silhuetas nas janelas dos prédios ou por olhares anônimos na internet. É uma cidade de tons frios cujo centro, como alerta uma outra personagem, cai lentamente no abismo, também uma consequência de decisões e ações do passado.

É nessa Porto Alegre de sombras e solidão que se passa Tinta Bruta, vencedor do prêmio de melhor filme de ficção no Festival do Rio de 2018 e que conta a história de Pedro (Shico Menegat), jovem que, definido pelo ex-colegas como “tímido, antissocial e incapaz de fazer amizades”, encontra refúgio nos olhares de estranhos em chats na internet, performando com tintas que iluminam o mundo escuro do seu quarto e possibilitam a oportunidade de ser outro (ou ele próprio) em uma versão colorida. Na internet, Pedro é o Garotoneon. Escrito e dirigido por Marcio Reolon e Filipe Matzembacher, diretores de Beira-Mar (2015), Tinta Bruta é um eficaz estudo de personagem que traz à tona temas recorrentes nas discussões sobre o mundo que nos cerca hoje: a solidão, a exposição, o abandono e o medo que ronda as nossas vidas e as nossas relações.

Sem nunca hesitar e sempre definir as suas performances como um trabalho, Pedro se vê às voltas com a constante “fuga” das pessoas que o cercam e pelas quais ele nutre afeto. O filme é dividido em três partes, e o roteiro funciona muito bem ao mostrar Pedro e seu universo particular a partir da perspectiva da costura e descostura de suas relações. Primeiro, com a irmã Luiza (Guega Peixoto), que vai embora para Salvador e depois com Leo (Bruno Fernandes), bailarino que desestabiliza o universo de Pedro ao “roubar” a cena daquela que é a única coisa que ele tem e que não vai fugir, o Garotoneon.

Foto divulgação

Pedro é pequeno diante da brutalidade do cotidiano e das relações, e a direção da dupla de diretores é muito bem sucedida ao evidenciar isso nos planos em que ele caminha rapidamente pelas ruas da cidade (sempre acuado por um medo que é muito maior que o medo de ser assaltado) e na dificuldade de realizar tarefas simples como prender o cabelo com um rabicó ou chamar um encanador para consertar a torneira da cozinha.

Por sinal, a atuação de Shico, vencedor do prêmio de melhor ator no Festival do Rio, é rica ao nos aproximar do personagem com tão pouco: a forma de caminhar, como se carregasse o mundo nas costas; a forma de se portar diante daqueles que são mais velhos ou que se impõem diante dele fazendo cobranças, sempre acuado ou fazendo algo escondido; e pela forma de se revelar uma pessoa complexa, que ao mesmo tempo que se vê acuada, pode ter uma reação totalmente inversa. E a sequência do terceiro ato, que leva o personagem de um extremo a outro, de uma ação violenta até o total desamparo que o faz buscar refúgio no abraço de sua vó (Sandra Dani), é um exemplo do domínio do ator sobre o personagem que está encarnando. Todas essas ações são desenroladas sob a sombra de um evento que marca o passado de Pedro e que é reflexo de sua complexidade.

Foto divulgação

No mesmo sentido, Bruno Fernandes, também premiado no Festival do Rio com a estatueta de melhor ator coadjuvante, sacode os nossos ombros ao nos pôr pra respirar na rua mais do que os cinco minutos que a irmã de Pedro pede que ele respire. Leo é um balanço no trajeto de Pedro ao colocá-lo diante de algo com o qual ele talvez nunca lidara. E, quando ambos performam juntos, numa cena plasticamente espetacular, percebemos que se trata mais do que uma relação de amor romântico, mas sim a relação de vínculo de duas pessoas que se veem deslocadas em um mesmo mundo.

Tinta Bruta é um quadro muito bem finalizado que nos apresenta de forma sutil, ao mesmo tempo que potente, um personagem que é complexo, fruto de um meio, de uma cidade e de uma sociedade construídas sobre violências que acabam por reprimir pessoas a quartos escuros e usernames (quem não conhece um CasadoObservador ?) e ainda encara vítimas como a força motriz de suas próprias dores. Entre cinza, cores e o som de torneiras pingando, Tinta Bruta é um belo filme que nos faz questionar: devemos permanecer no escuro?

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