Paulo Scott: “O racismo é parcela importante da nossa doença coletiva”

Entrevista Rafael Gloria
Foto  Renato Parada/Companhia das Letras

Há muitos momentos marcantes no livro Marrom e Amarelo (Alfaguara), lançado no final do ano passado pelo escritor Paulo Scott. Em uma narrativa vigorosa, conhecemos os irmãos Federico e Lourenço. Federico é um ano mais velho, mais calado, e carrega uma raiva latente. Lourenço é bonito, joga basquete e é “muito gente boa”. Federico é claro, “de cabelo lambido”. Lourenço é preto. Filhos de mãe branca e pai preto, célebre diretor-geral do instituto de perícia do Rio Grande do Sul, eles crescem sob a pressão da discriminação racial. Lourenço tenta enfrentá-la com naturalidade, e Federico se torna um incansável ativista das questões raciais.

E é Federico o narrador dessa história que se passa na maior parte do tempo por diferentes bairros da cidade de Porto Alegre, mostrando também todas as discrepâncias que (ainda) há entre eles. Marrom e amarelo é um livro que retrata diferentes aspectos de como a tensão racial perpassa toda a sociedade brasileira. Entrevistamos o escritor Paulo Scott por e-mail, confira:

Nonada   Ao meu ver, fica bem evidente em Marrom e Amarelo como o racismo é uma questão estrutural e aparece, cruelmente, nos detalhes e nos cotidianos dos personagens, assumindo e controlando suas reflexões e ações. Esse pensamento que ajudou a formar o ativismo de Federico também o levou de certa forma a uma ação explosiva no passado da narrativa que desembocou em um problema no futuro da história. Nesse sentido, é uma pergunta ampla, mas ao seu ver como o Brasil pode lidar com seus traumas (como o racismo, mas também um passado ditatorial) para seguir em frente?

Paulo Scott – A história do Brasil é marcada pelo governo e pelos desgovernos de pessoas que não compreenderam a necessidade de construir uma nação onde todas as pessoas tivessem um mínimo de dignidade, um mínimo de condições para poderem se emancipar – a problemática em torno do analfabetismo sintetiza bem essa falta de, digamos, boa condução ou condução razoável. Há períodos de tímida melhora, de avanços, de esmola, mas a lógica geral não se altera. Somos um país marcado por vícios estruturais, vícios que, de alguma forma, são convenientes a determinados grupos de pessoas, de famílias, poucas, intransigentes, embora, na superfície, aparentem não ser, sentadas lá no alto da pirâmide, com seus bancos, com seus jornais, revistas, televisões, rádios, com suas empresas, pautadas pelo compromisso de explorar, escravizar, sugar. Esse propósito, o propósito desses poucos, os verdadeiros donos de tudo, faz com que as estruturas sociais, de ensino, de justiça, de segurança e até de saúde, restem ardilosamente formatadas de maneira a preservar a desigualdade socioeconômica reinante. É o que impede que o país seja, para todos os que se sacrificam e se submetem à bem desenhada máquina de perpetuação das injustiças, das desigualdades, que tornam há muito o Brasil um país negativamente tão famoso, um lugar melhor de se viver. Nesse contexto, o racismo é parcela importante de nossa doença coletiva, de nosso pacto da negação, de nosso medo de olhar no espelho e nos percebermos todos, sem exceção, negros, indígenas, mestiços, latino-americanos, de nosso medo do passado e de tudo que sempre permitimos, mesmo sabendo que estava errado e que nos faria mal.

Nonada – Aliás, muito se fala de disputas de narrativas históricas. Estamos em uma época em que até certezas científicas são postas em dúvida. Você enxerga algum papel político da literatura nesse momento também, e se sim, como passa isso na hora da sua escrita? 

Paulo Scott – O impacto político está na leitura, no olhar, de quem percebe a narrativa, de quem lê e, lendo com dedicação e entusiasmo, com criatividade e sem preconceitos, refaz aquilo que foi escrito por outra pessoa dentro da sua cabeça de leitor. Acredito em cidadania, em ativismo, em engajamento comunitário, mas não acredito em produção literária direcionada, engajada (produzida para ser engajada). Jorge Amado fez isso e deu certo, o que prova que não há regras absolutas. Mas, no meu caso, embora eu tenha plena consciência do quanto meus livros são considerados livros políticos pelos leitores, não consigo, não posso, me colocar no papel – o que, dependendo da época, pode acabar sendo bastante conveniente – de escritor que produz livros para defender esta ou aquela ideia política, este ou aquele projeto político. Acredito em boas histórias, em narrativas que desestabilizam, que arranquem o leitor da passividade, do conforto, da cegueira.

Nonada – O romance é cheio de detalhes específicos de locais do Partenon, ruas, nomes de estabelecimentos. Como foi esse processo de pesquisa e de recriação para preparar o espaço onde seus personagens circulam tendo você vivido e experienciado a época e boa parte desses lugares? 

Paulo Scott – Sim, há pesquisa, muita, mas há, na sequência dessa pesquisa, um processo de transfiguração da realidade e, como você observa, também de recriação. Há um cenário geográfico, uma identidade, que acaba sendo aproveitado e assimilado por um trabalho de criação, por uma narrativa que se estabelece a partir de uma verdade própria. Aconteceu com o Guitarreiro, que é um bar que não existe no Partenon, na grande Partenon – há, naquele ambiente, uma autopoiese que, no fim das contas, foi a única maneira que eu encontrei para impactar (acrescer ruído que fizesse sentido) o itinerário, o arco narrativo, do protagonista, adensando a pequena tragédia do seu retorno a Porto Alegre, ao passado do qual ele fugiu. O Bairro Partenon da história não existe, talvez nunca tenha existido, porque é consequência mediata da minha leitura, da minha memória fraturada, reconfigurada, e, portanto, consequência direta da minha criação (alguns diriam: criatividade).

Nonada – E como você enxerga Porto Alegre atualmente em termos culturais e especificamente literários também? Uma capital que já foi sede do Fórum Social Mundial e de iniciativas como o Orçamento Participativo parece deslocada em termos de desenvolvimento social nos últimos anos.

Paulo Scott – Sim, a cidade perdeu expressão, mas não acho que tenha perdido sua vocação cultural, sua vocação para as questões sociais. Este é um momento difícil, de intolerância, de recusas, mas percebo – sempre que retorno à cidade, procuro me informar – que há vários novos nomes, novas interpretações, novas inquietações se movimentando, neste exato momento, longe da captação de certos radares, aprendendo com as asperezas desta época terrível, em direção a novas fórmulas, novas expressões, sobretudo na Literatura. A cidade, capital de um estado que vem sofrendo com uma decadência orçamentária importante há quase três décadas, sofreu demais por conta das apostas erradas de seus administradores, mas também pela interrupção de um diálogo que, no passado, foi essencial para se chegar a certas conquistas. Todos os agentes políticos erraram, e os cidadãos não souberam se rearticular. Mas todo avançar é cíclico e traz oportunidades para a reabertura do debate franco, inclusivo, e, na medida do possível, paritário.

Nonada – Essa ideia de mecanizar, criar um software, que vá decidir o processo de avaliação de candidatos autodeclarados pretos ou pardos nos vestibulares, é algo do tipo que não parece tão distante do que poderia acontecer atualmente, por mais que conservadores vejam a ciência como um problema, quando ela serve aos seus interesses parece ser uma solução. Estamos mecanizados em nossas relações pessoais, nas relações de trabalho e afetivas? 

Paulo Scott – Quando tive a ideia, lá em 2014, ela me pareceu absurda, mas acabei me determinando e dando um jeito de encaixá-la na narrativa, alargando a inclinação distópica do livro. O mais grave é que, hoje, em 2020, principalmente em face do acúmulo de tragédias que nos assolam, uma solução como a trabalhada no livro pode se tornar perfeita factível. Um monitoramento do tipo Big Brother, como no clássico do escritor inglês George Orwell, me perece cada vez mais inevitável. Temos uma grande onda de desconfiança pela frente, desconfiança e paranoia.

Nonada – Você já transitou por diferentes gêneros literários. Como funciona e há alguma diferença no seu processo em poesia, conto e romance?

Paulo Scott – Um romance, a história contida no romance, conviverá com você por anos. Isso dificilmente acontecerá com um poema, com um conto. Outro coisa que acho importante destacar é que na poesia, ao menos para mim, a linguagem vem antes; primeiro vem a fricção, depois vem o resto.

 

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Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.
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