Em seu cartão de visita, Oliveira Silveira se definia como pesquisador da cultura afro-brasileira e escritor de literatura negra. Falecido no dia 1 de janeiro de 2009, o poeta, professor e intelectual, com grande trabalho dentro do movimento negro (foi um dos idealizadores do Dia da Consciência Negra), deixou um legado vivo e que segue sendo objeto de pesquisas e influenciando novas gerações. Nascido no distrito de Touro Passo, na Serra do Caverá, em Rosário do Sul, Oliveira fez uma poesia que refletiu sobre o seu tempo e que se mostra, cada vez mais, universal.
O poeta, letrista e crítico de poesia Ronald Augusto conta que conheceu Oliveira no início da década de 1980, quando procurou saber mais sobre o movimento negro em Porto Alegre. “Na época, eu tinha uma inquietação de encontrar escritores negros, pois não conhecia nenhum, e eu era bem jovem, bem mal-informado”, diz.
Por indicação de amigos em comum, descobriu as famosas rodas de poesia que Oliveira Silveira fazia nos “altos” do Mercado Público – segundo andar do espaço, que era muito utilizado na época para eventos e discussões públicas. A amizade veio um pouco mais tarde, depois de uma Feira do Livro em que Ronald participou, pela primeira vez, com um livro de poesia, no qual havia um poema dedicado a Oliveira. “Eu nem tinha falado isso para ele, que então se deu conta de que eu fazia poesia também. Depois, conversando com o Jorge Froés, um poeta que conviveu muito com ele, descobri que o Oliveira falava que também sentia essa solidão em relação aos escritores negros e que aumentava aqui no Sul”, afirma.
Ronald ressalta que a poesia de Oliveira tem muita influência dos modernistas e de autores que trabalharam com questões relativas à negritude, como Aimé Césaire, da Martinica, e Léopold Senghor, do Senegal. Outra referência é o poeta Langston Hughes, figura importante da intelectualidade negra dos Estados Unidos. “Mas a poesia do Oliveira Silveira tem uma vertente que o Oswaldo de Camargo chama de afro-gaúcha, porque tem vários poemas em que ele acentua a condição do negro gaúcho e das contradições do que é ser um negro em um estado super-racista como o nosso”, completa.
O jornalista Jones Lopes, que conviveu com Oliveira principalmente no grupo da revista Tição, acredita que muito do universo poético dele vem da região fronteiriça onde cresceu. “Ele pega essa linguagem e esse universo da fazenda, da casa grande e da senzala, o casario dos negros, e transforma em poesia, por isso falo que é um vulcão em sua expressão. E esse universo é até hoje presente, porque, em todas as cidades fronteiriças, como Pelotas, Rio Grande, Bagé, São Borja, onde havia zona de produção de carne de grandes fazendas, era utilizada a mão de obra desse negro escravo. Então, ao longo dessas cidades, a periferia era de negros. O país não se dá conta disso, mas o Rio Grande do Sul não é só um estado de italianos, alemães, portugueses, mas de negros também, e muitos”, diz Lopes.
Nesse sentido, a poesia de Oliveira é vista cada vez mais como de linguagem universal, transfigurando os temas regionais. Ronald compara o regionalismo de Oliveira ao de João Cabral de Melo Neto. “Encontra-se, em sua poesia, traço da faca pernambucana, do agreste, toda uma geografia cultural nordestina. Mas não se lê João Cabral só porque ele é nordestino. O trabalho dele rompe com os trajes mais regionais, pois sempre tem alguma coisa da condição do homem pernambucano, da cultura pernambucana, com um traço inventivo e criativo que dá uma universalidade, todo mundo pode se aproximar daquilo ali. Com o Oliveira Silveira é a mesma coisa”, explica.
A poeta Lilian Rocha aponta que, além dessa questão do negro inserido em uma sociedade branca, havia também espaço para poesias românticas. “O Oliveira era muito criativo, as poesias dele têm um eu lírico profundo e muito intenso. Ele falava muito desse negro gaúcho, mas que se expande para outras instâncias de literatura e da história do Brasil”, acredita.
Do Sul do Rio Grande do Sul
A caminhada de Oliveira Silveira foi longa. Sua família estabeleceu-se no distrito de Touro Passo, no município de Rosário do Sul, na década de 1930. Nascido em 16 de agosto de 1941, Oliveira foi batizado em homenagem a um médico que tratou seu pai, Felisberto, de uma doença do pulmão na cidade de Santana do Livramento. Na época, viviam do cultivo da terra, da criação de animais e da lida do campo, e também da costura da mãe, Anair, que fazia bombachas e saias de prenda. Seus pais sabiam que a educação era uma forma de ascensão, ainda mais em uma época complicada, pós-Segunda Guerra Mundial.
Segundo Naiara Silveira, filha de Oliveira, ele estudava dentro da propriedade em que morava. “Como era muito difícil o acesso à escola, ainda mais no Interior, o meu avô pagava uma professora para dar aula para os filhos lá na fazenda onde eles moravam. Então essa professora vinha de charrete ou a cavalo – tenho nos arquivos o caderno de chamada dela”, conta.
Na década de 1950, esses estudos faziam parte do ensino primário, passaporte para o ensino ginasial, as séries finais. “Na fazenda, poderia estudar até o equivalente ao quarto ano de hoje. Depois, as crianças ou paravam de estudar, ou tinham que ir para a cidade. É o caso dele, que foi morar em Rosário para poder concluir o Ensino Fundamental”, explica Naiara.
Oliveira, então, deixou Touro Passo e foi morar no Centro de Rosário do Sul, distante uns 50 quilômetros. Entrar no Ginásio era difícil, pois eram poucas vagas, e o processo seletivo incluía provas escritas e provas orais. Para esse concurso, ele teve aulas particulares enquanto morava em pensões em Rosário. Desse modo, passou no exame de admissão.
O próximo passo era mais arriscado. “Se viu obrigado a vir para Porto Alegre para fazer o Ensino Médio e a faculdade. Veio com o amigo de infância e de estudos Alsom Pereira da Silva, em 1959. E aqui moraram na Juventude Universitária Católica (JUC), que ficava perto do Colégio Júlio de Castilhos, onde estudaram”, diz Naiara. Naquele momento, a vida no meio rural e nas pequenas cidades ficava cada vez mais precária e os grandes centros estavam acelerando a urbanização. Oliveira escolheu o curso clássico voltado às áreas humanas, com disciplinas como filosofia, latim, grego e outras línguas, abdicando de fazer o curso científico, voltado para as áreas exatas.
Formou-se no Ensino Médio em 1961 e, no ano seguinte, entrou no curso de Licenciatura em Letras Português-Francês e suas respectivas literaturas. Oliveira se formou em 1965 e, depois de passar em um concurso público, tornou-se professor do governo do estado do Rio Grande do Sul. Por mais de 30 anos, ensinou Língua e Literatura, principalmente no Colégio Estadual Cândido José de Godoi, no bairro Navegantes, em Porto Alegre.
Naiara observa que foi uma surpresa na época, porque, normalmente, a família precisava dos filhos por perto para que ajudassem na lida do campo. “Mas ele (o avô Felisberto) percebeu que o meu pai não era para aquilo e foi sensibilizado por sua personalidade. E meus avós não teimaram com isso, incentivaram-no a seguir com os estudos. E, desse modo, ele abriu as portas também para quem quis estudar depois, muitas das minhas tias aproveitaram e foram estudar em Rosário”, explica. A escolha de Naiara, aliás, também foi influenciada pelo pai, já que seguiu a carreira na área da educação e é pedagoga.
Consciência de Palmares
Oliveira Silveira é mais reconhecido pela atividade no movimento negro, principalmente com a atuação no Grupo Palmares. No início da década de 1970, ele, Antônio Carlos Côrtes, Ilmo da Silva, Vilmar Nunes, Jorge Antônio dos Santos (Jorge Xangô) e Luiz Paulo Assis Santos, recorrentemente, encontravam-se em frente à tradicional Casa Masson da Rua da Praia, no Centro de Porto Alegre. Reuniões posteriores incluíram membros e culminaram com a consolidação do Grupo Palmares, focado nos estudos de artes, literatura e teatro.
Conforme registro do próprio Oliveira Silveira, a primeira reunião oficial do grupo aconteceu na casa de seu sogro, José Maria Vianna Rodrigues, e sua sogra, Maria Aracy dos Santos Rodrigues, no bairro Bom Fim, antiga colônia africana de Porto Alegre. Como um contraponto às celebrações do 13 de maio (o dia que ficou marcado pela assinatura da Lei Áurea, em 1988, pela princesa Isabel, abolindo a escravidão), na noite do 20 de novembro de 1971, o Clube Social Negro Marcílio Dias – fundado em 1949 – acolheu a programação do Grupo Palmares para homenagear o líder quilombola Zumbi dos Palmares. Mas a ação só foi autorizada após o grupo passar pela censura da Polícia Federal e provar que não se tratava da Vanguarda Armada Revolucionária Popular (VAR-Palmares), monitorada pela ditadura militar.
Em 1978, conhecendo as celebrações oriundas de Porto Alegre, o Movimento Negro Unificado (MNU) de São Paulo passou a fazer grandes manifestações em alusão ao líder Zumbi. Como o MNU mantinha ramificações em várias cidades, outros estados somaram-se às evocações ao Quilombo dos Palmares, culminando com a Marcha Zumbi – 300 anos, em 1995. Em 2003, o 20 de novembro entrou para o calendário escolar como Dia Nacional da Consciência Negra, através da Lei nº 10.639. A lei inclui a história da África negra e das culturas afro-brasileiras no ensino oficial do País, bem como fomenta feriados municipais e estaduais em torno da data.
Para Sátira Machado, professora dos cursos de Produção e Política Cultural e Licenciatura em Letras EaD da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Oliveira Silveira, tanto na poesia quanto na militância, foi “resiliente e persistente ao construir uma unidade política dos movimentos socioculturais afro-brasileiros em torno do herói negro Zumbi dos Palmares”.
Julia da Silva, que pesquisou a trajetória política e intelectual de Oliveira Silveira em seu mestrado na área da Antropologia na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), explica que é preciso levar em consideração que, na década de 1970, havia uma polarização forte entre esquerda e direita, uma grande efervescência nos movimentos de vanguarda que lutavam contra a ditadura, e que Oliveira, por não se filiar a nenhum partido político, foi por vezes criticado ou mal interpretado. “Os discursos pautados pela luta de classes eram, como são até hoje, excludentes para a problemática da raça.
Nesse sentido, ele já estava na vanguarda do debate, talvez informado pela luta dos direitos civis norte-americanos e do seu teor racial. Oliveira nunca negociou o debate racial e acho isso espetacular na sua trajetória”, afirma. Oliveira Silveira também foi conselheiro da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, pasta com status de ministério, integrando o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial no período de 2004 a 2007.
No caso do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, a data foi criada por meio da Lei nº 12.519, em 2011, durante o governo de Dilma Rousseff. Essa lei não transformou a data em feriado nacional, assim, os governos de cada estado e cidade do Brasil devem optar por ser feriado ou não. O jornalista Laurentino Gomes, no livro Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, destaca que até 2018, o dia 20 de novembro era feriado em 1.047 municípios do Brasil (de um total de 5.561 municípios). Porto Alegre, um dos berços da mobilização, não está entre eles.
“A ausência de feriado produz eco para um dado que já conhecemos e está profundamente refletido na poesia de Oliveira Silveira: o sombreamento da presença negra no Estado. O tipo de racismo praticado na região Sul do País é, sem dúvida, um dos mais violentos, por que pressupõe a invisibilidade, o silêncio e a inexistência, equivalente a uma sentença de morte”, acredita Julia.
Revista Tição e a imprensa negra
A década de 1970 foi um momento complicado para a liberdade de imprensa, pois atravessava-se um período de ditadura no Brasil. Ao mesmo tempo, novos veículos da chamada imprensa alternativa surgiam. Entre eles, a revista Tição, derivada de uma demanda antiga de divulgação de ideias que já vinha do Grupo Palmares. A ideia da publicação acabou evoluindo de maneira independente, originando o Grupo Tição.
Foram publicados dois números de Tição, em 1978 e 1979, e uma edição no formato de jornal, em 1980. Segundo a jornalista Jeanice Dias, muitos dos participantes eram profissionais ou estudantes da área, e todos queriam um espaço que não existia na imprensa da época. “Os jornais convencionais e a mídia oficial não permitiam que houvesse pautas negras, a não ser na época do Carnaval. Então, a gente queria dar um destino para essas matérias, a fim de que a população tomasse conhecimento do movimento negro e das causas sociais”, explica.
Jeanice e a jornalista Vera Daisy Barcellos – que também foi uma das fundadoras da revista – chegaram a ser perseguidas e interrogadas pela polícia. “Não chegava a 10 pessoas no núcleo principal, mas tinha uma rotatividade incrível de pessoas que ficavam à volta, sugerindo coisas, fazendo coisas, querendo fazer coisas, era bem interessante”, lembra. Para ela, uma das matérias de Tição que continuam atuais é sobre as empregadas domésticas.
Oliveira Silveira também era um dos fundadores do grupo. A equipe desses periódicos mantinha diálogos com outras agências de notícias organizadas pela comunidade negra pelo Brasil, mesmo em tempos de ditadura. O poeta tinha inspiração na imprensa negra do Rio de Janeiro, que nasceu com jornais como, por exemplo, O homem de cor, de 1833.
Conforme o jornalista Jones Lopes, que entrou em um segundo momento da revista Tição, Oliveira nunca teve uma postura autoritária dentro das decisões. “Não era da sua personalidade, ele sugeria pautas, era na dele. Uma pessoa democrática, completamente afável, aberta à discussão. E, muitas vezes, acho que na maior parte das coisas, ele era voto vencido, porque não se impunha tanto”, avalia.
Jeanice lembra que, na época, Oliveira trabalhava em uma agência de publicidade chamada Texto e Arte. “Teve um comercial da Rainha das Noivas que foi feito especialmente para a Tição, acho que ele era redator e fizeram uma arte especial”, conta. Mas Oliveira contribuiu ainda com textos para a publicação, normalmente abordando a condição do negro no Rio Grande do Sul.
Jones Lopes também vê a importância de Oliveira em ter apresentado a “cidade negra” para eles, os locais importantes para a população negra da Capital, como os clubes sociais. “O Marcílio Dias era um clube náutico negro que ficava na Praia de Belas. Oliveira convivia com esse pessoal, tanto é que algumas reuniões nossas foram lá. Nos apresentou ainda o Floresta Aurora, que era um clube com tradição, do século XIX. Existe até hoje. Ele nos apresentou os grupos carnavalescos, nos domesticou com o ambiente negro da cidade, é impressionante”, afirma.
Celebração de uma trajetória
Em 2019, muitos eventos marcaram os 10 anos da morte do poeta. Um dos principais foi o lançamento do curso Oliveira Silveira: o poeta da consciência negra brasileira, uma parceria entre a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e a Universidade Federal do Pampa, e idealizado pelas professoras Sátira Machado (Unipampa) e Maria da Graça Paiva (Ufrgs). Lançado em novembro, já conta com mais de 500 inscritos. “A recepção está nos surpreendendo. Para realizar o curso, levamos no mínimo 200 horas entre pré-produção, produção e edição. Foram vários entrevistados, que falaram sobre a vida, a obra e a consciência negra de Oliveira”, explica Sátira.
Outros eventos importantes foram a criação de uma sala com o nome Oliveira Silveira na Casa de Cultura Mario Quintana e a entrega de parte do seu acervo ao Instituto Estadual do Livro. Boa parte do material, entretanto, continua no apartamento onde ele morava, na avenida Assis Brasil. “Na época em que estava vivo, ele recebia quem quisesse pesquisar. Mas também acredito que seja da vontade dele, e nós respeitamos e queremos isso, que seja criado um local. É muito material de arquivo: jornais, cartas, revistas… E tem que ter cuidado também. Nós tivemos que fazer um trabalho de reforma aqui para lidar com cupins e traças”, diz Naiara.
O Sopapo Poético, realizado pela Associação Negra de Cultura e uma das mais tradicionais rodas de poesia e música de Porto Alegre, gravou um audiobook de Poemas sobre Palmares. “O livro é um resgate histórico contundente com relação à história do Quilombo de Palmares, porque Oliveira era também pesquisador e historiador, então, durante 15 anos, de 1972 a 1987, escreveu poemas com essa temática que foram organizados na obra”, explica Lilian Rocha, integrante do Sopapo. O registro do audiobook foi feito por Marieta Silveira, Jorge Fróes, Lilian Rocha, Kyzzy Barcelos, Vladimir Rodrigues, Fátima Farias e Sidnei Borges.