Anita Carneiro e Laura Galli
Foto: Léo Guerreiro/reprodução
A coluna Pequena Memória para um Tempo Sem Memória busca expandir a conexão do público com a história da cidade e da ditadura civil-militar através da materialidade de locais pelos quais se passa cotidianamente. São ruas e prédios que possuem marcas – por vezes visíveis, por vezes invisíveis – de um dos períodos de maior repressão no nosso passado recente. A cada edição, as historiadoras Anita Carneiro e Laura Galli abrem o mapa da cidade e apresentam um local marcado pela ditadura civil-militar em Porto Alegre.
Nosso ponto de partida, em setembro de 2020, foi o projeto Caminhos da Ditadura em Porto Alegre, que inspirou a criação da coluna. Neste terceiro texto, vamos observar a rua mais famosa de Porto Alegre: a Rua da Praia, oficialmente chamada Rua dos Andradas (desde 1865). São diferentes histórias que nos ajudam a entender e conhecer mais da história da cidade no período da ditadura. Através de alguns episódios é possível imaginar a vida em alguns locais emblemáticos de Porto Alegre em outros tempos.
#3 Rua da Praia (da esquina da Caldas Júnior até a Praça Dom Feliciano)
A Rua da Praia (atual rua dos Andradas) é uma das ruas mais antigas de Porto Alegre. Além disso, é local de concentração de prédios das Forças Armadas – quarteis do Exército, Marinha. Com certeza é o coração da capital gaúcha, e por isso, um espaço de memória com diversos atravessamentos temporais. Assim, para esse artigo, selecionamos algumas histórias das formas de resistir à opressão que acontecerem no período ditatorial brasileiro na Rua da Praia para apresentá-las por um outro ângulo. Quem sabe, a próxima vez que estiver andando por ali verá uma reunião de pessoas e lembrará do Grupo Palmares, das moças de minissaia e recordará das irmãs detidas, dos discursos na Esquina Democrática e ouvirá a voz de Dante ou, até mesmo, olhará para os jacarandás da Praça da Alfândega e vai rir rememorando a história dos macacos.
Irmãs
Uma história interessante que se passou na Rua da Praia em 1967 foi a detenção de duas irmãs que estavam de minissaia. Elas causaram tanta sensação na rua que a Brigada Militar intercedeu e foram conduzidas à delegacia acusadas de atentado ao pudor (TEIXEIRA, 2012). Esse “causo” mostra muito sobre o período, afinal a repressão não era apenas política, mas também existia uma questão moralizadora dos “bons costumes”. Essa história nos apresenta o quanto existiam essas normas sociais de como as mulheres deveriam se portar e vestir no espaço público.
Grupo Palmares
Outro lugar importante na Rua da Praia é a frente da Loja Masson (atual Marisa) na Rua da Praia. Esse espaço foi mapeado como um lugar de encontro e construção do Grupo Palmares – fundado em 20 de julho de 1971, grupo negro que inicialmente pautou a proposta do dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”. É importante ressaltar que no período da ditadura civil-militar uma parte da população negra que residia no centro da cidade foi removida para outros espaços (como é o caso da Restinga, que fica pra outra coluna), assim a Rua da Praia se tornou um espaço de encontro e referência para a população negra porto alegrense (SANTOS, 2016).
Esquina Democrática
A esquina se tornou conhecida como “democrática” no período ditatorial brasileiro por conta da manifestação de políticos cassados através do AI-5, como Glênio Peres e Marcos Klassmann, que, no local, realizam discursos políticos uma vez que não poderiam mais realizá-los na Câmara Municipal. Nesse espaço, Dante Oliveira discursou na época da tramitação da Emenda referente ao retorno das eleições diretas para presidente. Na redemocratização, a Esquina Democrática torna-se um espaço de reivindicações populares das mais diversas possíveis. Em 1997, foi tombada como Patrimônio Histórico Cultural da cidade e hoje, em períodos de campanhas, a Justiça Eleitoral realiza sorteios para organizar quem vai utilizar o espaço. Ela é um Território Democrático por excelência simplesmente por abarcar a luta de todos, por formar um ângulo que conecta vias, mas principalmente por conectar pessoas com causas em comum. É um local de palavras de ordem, discursos, choros, mas essencialmente um território em que os seres usam seus corpos, suas bandeiras e suas vozes para lutar pelos seus direitos.
Praça da Alfândega
Outro acontecimento relacionado à Rua da Praia foi o episódio dos macacos que foram soltos em pleno centro de Porto Alegre como contestação ao regime ditatorial. O relato é feito por João Aveline no volume 1 da coletânea “Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): História e Memória” (Vol.1) de Enrique Serra Padrós, Vânia M. Barbosa, Vanessa Albertinence Lopez, Ananda Simões Fernandes (Orgs.). Mas o episódio também está presente no livro do próprio Aveline, “Macaco preso para interrogatório – retrato de uma época”, publicado em 1999 pela editora AGE.
Segundo Aveline, a ideia do Partido Comunista era promover um ato de massas, que chamasse a atenção e servisse de contestação à ditadura. A denominação política de gorilas para se referir aos militares golpistas, originada na Argentina, havia chegado ao Brasil. A partir daí, Aveline relata que surge a ideia de um ato com macacos, em associação aos gorilas que estavam no poder.
A ação aconteceu com dois animais: um na Praça XV e outro na Praça da Alfândega, ambos levando uma placa na cintura dizendo “Eu não disse que ia baixar o custo de vida?”. A mensagem fazia referência ao discurso dominante do regime militar, que prometia a baixa dos preços. Foram feitas duas gaiolas com portas falsas para os macacos, que ao se mexerem já sairiam delas. O macaco da Praça XV rapidamente foi capturado: “[…] nem bem a gaiola havia sido posta no chão, saiu a passos como se fosse um desocupado qualquer. Foi logo em cana.” (citação AVELINE p.132)
Já o macaco da Praça da Alfândega causou um frenesi maior: “subiu na árvore, aqueles jacarandás grandes que há na praça, e lá começou a fazer piruetas. A massa lá de baixo acompanhava. A polícia foi para lá. Veio um corpo de bombeiros com escada Magirus, espichou a escada e, lá em cima, um bombeiro jogava água no macaco. E o Estado-Maior da Segurança do estado, gente do Terceiro Exército, gente da polícia, gente da Polícia Federal, da Brigada, todos reunidos para estabelecer uma tática de como fariam e tal.” (citação AVELINE p.133)
“A Folha da Tarde disse que havia umas 10 mil pessoas da Praça da Alfândega e adjacências, Rua da Praia, Rua Sete de Setembro e Largo dos Medeiros. A praça ficou lotada de gente.” (citação AVELINE p.134)
O prefeito de Porto Alegre reuniu a imprensa durante a tarde. “A praça lotada de gente, o macaco lá em cima da árvore e o bombeiro querendo derrubá-lo. O Célio convocou a imprensa e deu entrevista coletiva para dizer que o macaco não era próprio do município. Queria tirar qualquer suspeita em relação a ele, preocupado com a reputação política.” (citação AVELINE p.135). O macaco foi preso no fim da tarde, em torno das 18h.
Aveline avaliou o episódio como exitoso. “A ditadura ficou nua na praça. Foi um ato público de massa que serviu para desmoralizar a ditadura. Toda a televisão noticiou de noite, os jornais todos noticiaram, todo mundo ficou sabendo que tinha havido um ato contra a ditadura no centro de Porto Alegre.” (citação AVELINE p.135) A repercussão ocorrera inclusive internacionalmente, em jornais da França como o Le Monde e L’Humanité. Assim, o objetivo de chamar a atenção para as mazelas da ditadura foi alcançado através de um ato incomum e que burlava a repressão.
Esses são apenas alguns episódios mapeados na Rua da Praia, ou Rua dos Andradas, no período da ditadura civil-militar brasileira. Eles são úteis para percebermos em espaços comuns da cidade a dimensão cotidiana da repressão e também das brechas encontradas por cidadãs e cidadãos para contestar o regime e expressar-se.
Referências
TEIXEIRA, Paulo César. Esquina Maldita. Porto Alegre : Libretos, 2012.
SANTOS, José Antônio. Movimento Negro no Rio Grande do Sul: Apontamentos de uma História II. Disponível em https://bit.ly/2P2g58s
CAMPOS, Deivison de. O Grupo Palmares (1971-1978): Um movimento negro de subversão e resistência pela construção de um novo espaço social e simbólico. Disponível em http://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/3984
Notícia Zero Hora https://bit.ly/3hFTESz
Site Prefeitura de Porto Alegre https://bit.ly/3hMiYGR
“Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): História e Memória” (Vol.1) de Enrique Serra Padrós, Vânia M. Barbosa, Vanessa Albertinence Lopez, Ananda Simões Fernandes (Orgs.).