Nova Rua do Doce de Pelotas impacta doceiras tradicionais sem CNPJ

Ester Caetano

Foto: Gustavo Mansur/Prefeitura de Pelotas

Destino turístico, a cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, é reconhecida pelos saberes doceiros que já receberam o título de patrimônio imaterial do Brasil. Mesmo com toda a tradição, contudo, as produtoras independentes do símbolo dessa memória só foram ter seu local para vendas oficializado menos de um ano atrás. 

Agora, a partir de acordos entre a Associação dos Produtores de Doces de Pelotas e a prefeitura, as tradicionais doceiras tentam se enquadrar às exigências e não ficar de fora da nova Rua do Doce, espaço que será destinado às produtoras dos doces pelotenses. Mas a formalização do ofício tradicional não está sendo simples para algumas doceiras ouvidas pelo Nonada Jornalismo. No processo de registro do saber, em 2018, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) já apontava a necessidade de prevenir a lógica comercial e a padronização do ofício tradicional nas iniciativas de promoção da atividade.

O contrato para a construção do centro de comercialização foi assinado em junho pela prefeita Paula Mascarenhas (PSDB). As obras terão custo de R$ 368 mil, originários de recursos de emenda parlamentar do deputado federal Afonso Hamm (PP). O espaço ficará no calçadão do centro da cidade, na rua Sete de Setembro. As oito bancas disponibilizadas serão divididas entre as associadas no formato de rodízio.

Projeto arquitetônico da Rua do Doce (Foto: prefeitura de Pelotas/divulgação)

Atualmente, 16 empresas estão aptas a  dividir os futuros espaços da Rua do Doce. Para integrarem a Associação e conquistarem uma vaga no local, que terá localização privilegiada, os produtores devem ter CNPJ, estabelecer uma fábrica e pagar valor de ingresso de três salários mínimos regionais. Os doces precisam estar sob padrão estabelecido de tamanho, apresentação e qualidade, o que exigirá a contratação de nutricionistas. Já para garantir o selo de indicação de procedência, os produtos devem seguir um padrão de receita e passar periodicamente pela avaliação do conselho regulador. 

A luta por conseguir um espaço que atenda às demandas da Associação existe há 25 anos para doceiras como Sonia Clark, uma das primeiras doceiras a levantar a questão da exclusão. A produtora diz que a formalização é um processo muito complexo. “O projeto favorece umas e desfavorece as que não estão qualificadas de acordo com exigências do local”, critica. 

Este processo pode acabar impossibilitando também que as produtoras com menos receita participem do rodízio de bancas. Luciana Silva, filha da produtora Hilda Silva, no mercado há mais de 30 anos, conta que não é ligada à Associação dos Doces de Pelotas e que para se ajustar vai avaliar o orçamento, já que a pandemia gerou prejuízo. Ela conta que a mãe, antes da pandemia, estava se programando para construir sua cozinha e voltar às atividades da empresa, mas os planos mudaram completamente. “Temos atrasos de pagamentos no CNPJ e as vendas diminuíram, então tivemos que parar com tudo. Hoje está sendo difícil a empresa estar apta a ir para a nova rua”, lamenta.

Iphan apontou possível desvio de finalidade 

Registro tem como objetivo a valorização do ofício das doceiras (Foto: Roberto Dias/Fenadoce)

As Tradições Doceiras da Região de Pelotas e Antiga Pelotas (RS) foram registradas no Livro de Saberes do Iphan há três anos. O parecer do conselho deliberativo informa que a atividade doceira da região “pode ser entendida como espaço onde se concentram e se reproduzem práticas culturais coletivas relacionadas à atividade doceira que se tomaram referências culturais para grupos sociais”. 

O Iphan também aponta que o registro deve vir acompanhado de processos de salvaguarda e valorização da atividade de forma democrática. “Entre esses princípios, destacam-se a inclusão e participação mais ampla possível dos produtores e detentores desses bens culturais em todas as etapas do processo de salvaguarda e o respeito ao caráter dinâmico e mutável desses bens culturais, em oposição a qualquer tentativa de aprisionamento ou cristalização das formas como esses bens se configuram num dado momento”, diz o documento.

Neste sentido, o caráter comercial da atividade é secundário no processo de registro, que, segundo o parecer, não deve servir para estabelecer parâmetros fixos para receitas que identificam a autenticidade de determinados produtos. “Nada mais distante dos objetivos da salvaguarda preconizada pelo Iphan e nada mais próximo de interesses facilmente vinculáveis à construção de reservas de mercado de caráter excludente”, afirmam os conselheiros. 

A partir de uma avaliação do material encaminhado pela Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) na abertura de processo, os conselheiros identificaram uma possibilidade de ocorrer um desvio da função original do registro, que “poderia implicar também a exclusão de um conjunto de expressões e práticas vinculadas a essas tradições, ligadas a grupos sociais não pertencentes à elite pelotense”.  Os conselheiros temiam inclusive que o registro “pudesse servir simplesmente para gerar distinção, exclusividade e mais valia económica para certos produtos”.

Para prevenir esse desvio de finalidade, o parecer apontou algumas recomendações, como “buscar diminuir a desigualdade de acesso aos mecanismos de valorização e divulgação que atinge, especialmente, a tradição de doces coloniais” e ainda “medidas que mitiguem a tendência de padronização dos doces e a exclusão de outros, como consequência de iniciativas como a da atribuição de selos por meio de processos de Indicação Geográfica ou de Procedência”, ou seja, medidas contrárias às que estão sendo determinadas pela prefeitura e pela Associação. 

Localização dará visibilidade às produtoras

Colheita de frutas para a feitura dos doces coloniais, data desconhecida (Foto: museu do Doce)

A tradição de doces finos se desenvolveu historicamente no espaço urbano de Pelotas, hoje conhecida como capital nacional do doce. Elemento importante de refinamento e sociabilidade nas casas abastadas, esse ofício passou por intercâmbio com os saberes das mulheres escravizadas e suas descendentes, que trabalhavam nas casas dos senhores. 

Na época, a economia de Pelotas vivia um período de impulsionamento devido ao charque. Mais tarde, com a decadência da produção, passaram a ser vendidos pelas mulheres negras para o sustento das famílias abastadas.

O ofício do fazer dos doces coloniais, presente nas zonas rurais do município, também está incluso no registro. Repassado de geração a geração, a produção baseada nas frutas locais, representa para muitas famílias a continuidade dos saberes ancestrais de seus antepassados, ganhando força também nas áreas rurais da cidade, entre os produtores de frutos. Antigamente produzidas para consumo familiar, passaram a ser produto de agro-indústrias.

Mesmo com toda a tradição, foi apenas após o registro no Iphan que as doceiras começaram  a pensar em um lugar fixo para visibilizar o fazer tradicional. Sandra Siqueira, doceira há mais de 20 anos, revela que antigamente as mulheres vendiam em eventos ou em datas comemorativas, estabelecendo as banquinhas no centro da cidade. Como era um percurso cansativo por ter que montar e desmontar o equipamento, elas passaram a pedir à prefeitura um local próprio e fixo. Por iniciativa própria, foram parar no calçadão da cidade, um local de movimentação e característico perto do centro histórico da cidade, onde os pelotenses se concentram para as compras. 

Empresas deverão se revezar nas bancas disponíveis (Foto: Michel Corvello/prefeitura de Pelotas)

Em 2018, em uma nova reestruturação da logística do calçadão, as mulheres foram retiradas da área para a construção de lojas, o que ocasionou a realocação das doceiras em uma rua paralela ao calçadão de pouca movimentação e sem visibilidade, conhecida como o Beco dos Doces. Neste local, as produtoras tiveram uma queda brusca nas vendas. “O movimento caiu bastante, no calçadão a gente vendia bem, porque era passagem. Aqui caiu mais de 60% as vendas. Nem os pelotenses enxergam a gente, muitas pessoas não sabem que a gente está aqui, fica muito escondido”, conta Sandra, dona da Tuca Doces.    

Para a doceira, a nova estrutura impactará de forma positiva. Ela enxerga o local como uma grande oportunidade de visibilidade, de poder voltar a vender para um grande número de pessoas. As normas para entrar no novo local não são empecilho para a produtora, que já está associada. “Eu tenho fábrica constituída e tudo que é exigido. E eu acho que têm que ser selecionadas as pessoas que vão vender, porque será um cartão de visitas para Pelotas. Tem que ter regras”, acredita.

No processo de ocupação da Rua do Doce, a Associação dos Produtores de Doces de Pelotas é a responsável por fazer a ponte de comunicação entre a prefeitura e as doceiras. Rosani Schiller, representante e voluntária, revela que já foi realizada uma primeira conversa entre todos os doceiros e com a Secretaria de Planejamento e Gestão (Seplag).

Na conversa, os produtores falaram sobre o espaço ser público e necessitar de uma licitação pública para impedir que apenas uma empresa ocupasse sozinha o local, o que excluiria a maioria dos doceiros e pequenos produtores. Com a associação, defende Rosani, foi estabelecida a parceria público privada. “A parceria da prefeitura com a associação sem fins lucrativos e detentora do selo de indicação de procedência beneficia os associados produtores. Não acredito que alguém sairá prejudicado, estamos dialogando para as facilitações”, avalia.  

Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, com o apoio do Google News Initiative.

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Jornalista engajada nas causas sociais e na política. Gosta de escrever sobre identidade cultural, representatividade e tudo aquilo que engloba diversidade.
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