A resistência do rap e do Hip-Hop no interior do Rio Grande do Sul

Rafael Costa

É difícil encontrar artistas ou fãs do movimento rap que não tenham ouvido Racionais MCs. Criado em 1988, tendo como berço a cidade de São Paulo, Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay cantaram realidades das periferias da metrópole que nunca dorme. Ainda que tenha atravessado gerações e gerado ramificações, o rap nunca perdeu a essência do pilar central de suas letras, ao abordar o cenário e o cotidiano de comunidades das grandes cidades.

A partir do grupo paulista, o rap se espalhou pelo Brasil. Atualmente, conseguimos encontrar representantes de diferentes regiões do país. De Salvador, Bahia, vem Baco Exú do Blues. Djonga surge de Belo Horizonte, Minas Gerais. Emicida levanta e anda da capital paulista. De Porto Alegre, Rio Grande do Sul, a estrela Cristal brilha mais que o diamante. 

Ainda que essas figuras sejam conhecidas no cenário musical, muitos rappers de diferentes localidades brasileiras batalham pelo seu lugar ao sol. Não só nas capitais, mas artistas do interior dos estados trazem a visão das periferias de suas cidades para seus trabalhos. O Rio Grande do Sul não é diferente. Artistas do Hip-Hop e rappers do interior do estado atuam firmemente no cenário musical e o Nonada perguntou a eles sobre o movimento do Hip-Hop em suas regiões.

Na visão dos entrevistados, o rap ainda mantém o seu compromisso social de trazer as realidades dos círculos periféricos que compõem a sociedade. Ainda que o movimento tenha diversidade de pessoas, aspirações, ritmos e representação, é visível que o movimento Hip-Hop está se articulando e se moldando nas cidades do interior, trazendo suas perspectivas e visões de mundo. 

Kpeta de Quebrada (Foto: divulgação)

É de Dom Pedrito, fronteira oeste do Rio Grande do Sul, que Kpeta de Quebrada expressa sua arte através das rimas. Ele iniciou sua carreira nas rimas improvisadas entre 2014 e 2016 em reuniões com amigos. Em 2018, quando entrou na faculdade, viu a oportunidade de lançar seu primeiro trabalho. A primeira mixtape, Kpeta de Quebrada, se construiu ao longo de dois anos, sendo lançada em 2020. Kpeta conta que seu primeiro trabalho foi um processo de firmar sua identidade através de um processo de autoconhecimento.“ E essa mixtape foi algo voltado mais para mim, eu e minha família, mostrar quem eu sou e o meu espaço.”

Um ano depois, Kpeta apresentou Meu nome nas Ruas ao mundo. Nessa proposta, o rapper aborda o lado da sua vivência nas ruas não só da cidade, mas por onde passou. A última mixtape teve o acompanhamento de um EP chamado Anjos e Demônios, que nasceu a partir de uma operação policial em Dom Pedrito onde o artista quis abordar os dois lados da sociedade atual.

Questionado sobre o cenário do rap no interior do Rio Grande do Sul, Kpeta faz uma reflexão sobre o que mudou nos últimos anos. “Antes eu tinha pouco contato com os MCs aqui da fronteira oeste. Agora que eu fui conhecer os caras aqui da fronteira oeste.” Ele avalia que por mais que veja a forte presença do rap com as iniciativas, muitos acabaram deixando a carreira de lado. “Tinha muita presença antes. Em Itaqui, por exemplo, tinha a roda de break. Mas o pessoal foi desistindo por N motivos e não conseguiram dar seguimento no movimento.” 

Ele relata que o Museu do Hip-Hop de Porto Alegre, que será inaugurado em 2022, serve como um incentivo gigantesco para o rap atual e conecta isso à os bailes nos antigos clubes negros das cidades. “Era uma cultura bem forte e presente no Rio Grande do Sul. Foi se esvaindo e quase se apagou, mas houve a resistência”. Ainda sobre a resistência do rap, Kpeta de Quebrada critica a associação do rap à criminalidade. “Ainda mais se tu for preto, sabe? O preconceito é algo presente”. Em compensação, ele classifica que integrantes do rap e do Hip-Hopp são muito unidos, promovendo eventos e apresentações. “O rap passa muita visão. O rap, o trap tá sendo muito ouvido no Rio Grande do Sul e tem a vantagem de chegar a vários lugares. A música atua muito na inclusão de jovens e estes podem se espelhar em ti durante uma apresentação. Isso é bacana”, classifica.

Kpeta de Quebrada reforça as iniciativas que levam a mensagem do movimento do rap e hip hop na fronteira oeste do Rio Grande do Sul. Ele faz parte de um grupo chamado Associação Hip Hop que tem contato com pessoas de diversas regiões do país. Ele também conta que em São Borja, o BaitaRap atua forte na cidade, levando a cultura para as ruas e escolas da cidade. “Acho que o movimento está se desenvolvendo muito bem. As atividades de apresentações sempre são acompanhadas pelo skate, pelo b-boy, pelo DJ… Tem que ter essa conexão”, avalia Kpeta de Quebrada.

Maro Rick (Foto: divulgação)

Da fronteira oeste para o sul do estado, aterrisamos (virtualmente) em Pelotas. Encontramos Mano Rick, 24 anos e músico praticamente a vida toda. Traçando sua trajetória, Mano Rick relembra que, quando menor, procurava tudo que tinha a ver com som e música. “Fazia as minhas próprias caixas de som e começava a gravar no gravador que eu tinha”. Mano Rick era tão próximo da música que antes mesmo de entrar no colégio, já mandava suas primeiras rimas com a ajuda da irmã. “Eu falava e a minha irmã escrevia pra mim.”

Nesses primeiros passos dentro da música, o que lhe chamava atenção era o grupo de rap chamado Banca CNR, que era da comunidade em que ele morava. A proximidade com o grupo ia além do gosto, mas também uma relação familiar. Davi, integrante do Banca CNR, era primo do Mano Rick – atualmente, trabalham em parceria. 

Na escola, Mano Rick também se destacou no quadro musical. Incentivado, na segunda série, a professora levou um aparelho de som para Mano Rick gravar. Na quinta, integrava o grupo Consciência do Rap, que conquistou um aparelho de DVD para escola em um concurso de música. Mano Rick coletou experiências. Participou de projetos sociais da comunidade de teatro, dança e oficinas de violão. “Foi um momento importante da minha vida porque quando a gente saía da escola, não ficávamos na esquina. Íamos direto para o CDD (Comitê de Desenvolvimento do Loteamento Dunas) para participar de atividades culturais”. Atualmente, o artista participa da gestão do projeto.

Foi a partir do CDD que Mano Rick teve a sua primeira banda (Unidos pelo Rap) e também o primeiro contato com o estúdio. Em 2013, Mano Rick lançou seu primeiro EP chamado Fatos e Fatos. O EP contava com 6 faixas, três produzidas por ele e outras 3 pelo primo Vocal Beats. Fatos e Fatos o levou por viagens pelo Rio Grande do Sul. Fez shows em Porto Alegre e Região Metropolitana. Lançado 2017, De Dunas pro Mundo foi o seu primeiro trabalho profissional. “Em 2015, a gente enviou um projeto pro Pró-cultura [da Lei de Incentivo à Cultura] e ganhamos. Então recebemos a verba e produzimos o álbum em 2016 e 2017 num estúdio com grandes possibilidades”. Mano Rick destaca que nele pôde mesclar elementos do rap, com elementos orgânicos como bateria, baixo, guitarra e outros instrumentos. Como resultado, o trabalho o levou para mais longe. Cruzando divisas estaduais, ele marcou presença em Santa Catarina, São Paulo e expandiu sua rede de contatos.

Sobre o cenário do rap no Rio Grande do Sul, Mano Rick o descreve como diversificado. “Acredito que a cena do rap vai se modificando de lugar para lugar no extremo sul do Brasil.” Avaliando o cenário em Pelotas, o artista relata que o cenário da cidade é resistente pelas pessoas que fazem parte do movimento. Ele comenta que quando chegou em Porto Alegre, ficou impressionado quando seus amigos manifestaram interesse em descer até sua cidade natal. 

Achando graça, ele contou para os amigos sobre a falta de visibilidade de Pelotas no rap. “Temos uma TV que não abre espaço pra gente. O nosso corre é feito pelas pessoas que trabalham muito pelo rap e não por um espaço cheio de oportunidades. Porto Alegre tem um espaço por ser capital, tem toda uma estrutura,  Pelotas não oferece isso”. Com a viagem para São Paulo, Mano Rick passou a ter uma visão mais mercadológica do seu trabalho. “Não basta fazer um som legal, jogar no YouTube e esperar acontecer”, relata. Estudando todo o contexto musical, o rapper conta sobre parcerias comerciais, processos burocráticos e financeiros. Isso faz parte do processo não só de uma auto realização como também trazer os holofotes para o Rio Grande do Sul. “Quero que as pessoas vejam o sul diferente. Quero pegar as pessoas da minha quebrada e trazê-las para o meu selo e trabalhar junto”, projeta.

Do extremo sul do estado, chegamos na região central. Quem “faz os corres” em Santa Maria é a produtora cultural Letícia Prates, 25 anos, que desde 2009 atua na articulação e na manifestação artística na cidade. Um pouco antes disso, Letícia fazia parte de um grupo de rap da cidade de Santa Maria. Começou como backing vocal de um grupo formado por Nego Lula. Depois, integrou o Diamante do Sul, onde ficou até 2010, pois outra demanda surgia na sua trajetória.

Letícia iniciou as atividades em 2010 no Co-Rap, coletivo que objetivava a união das iniciativas do rap e do Hip-Hop na cidade de Santa Maria. “Ele tinha uma atuação muito grande nas escolas, fazendo do rap uma ferramenta de cunho educacional”. Nessa época, Letícia conta que acompanhava o coletivo. Com o apoio da prefeitura da época, muitos eventos foram realizados, difundindo a cultura e dialogando com a população. “Tinha shows, eventos de skate, campeonatos de basquete… E partir disso, eu passei a conhecer bastante essa cultura de rua.”

Por já atuar também como passista em escola de samba, a proximidade com o movimento do Co-Rap lhe rendeu um convite para lecionar aulas de dança por dentro do coletivo. O coletivo acabou se expandindo, atendendo não só as pessoas que faziam parte do movimento rap e Hip-Hop. “O Co-Rap sempre teve uma atuação junto com o movimento LGBTQIA+, terreiros, movimento negro… E foi assim que fui me integrando cada vez mais a estes outros mundo que eu não conhecia dentro da escola.” 

Ainda que não seja tão atuante no rap, Letícia afirma que vê o cenário do movimento em Santa Maria como autônomo. “A capital sempre vai ter muito mais movimento. No interior tem pouco menos de acesso e recurso. Mas Santa Maria conseguiu reverter isso”. Ela relata que na cidade, os integrantes do Hip-Hop conseguiram se organizar e produzir, de forma que se encontrem hoje independentes de uma região central. “Isso fortaleceu muito a cena aqui. Isso deu uma potência ao movimento e a novos grupos e elementos da cultura que chegam até nós”.

Sobre a valorização da voz feminina dentro do rap, Letícia relata que o movimento está em sua vida desde muito cedo, mas a representatividade foi sempre algo que lhe chamava atenção. “Escutava referências como Negra Li, Dina Di… E foi muito importante porque elas falavam de um outro cenário dentro da cultura”. Ela argumenta que a visão feminina dentro do rap, por mais que seja importante dentro do espaço, ainda é pouco visualizada. Mas Letícia valoriza os avanços. “A gente conseguiu se organizar,  se reconhecer enquanto mulher e construir com mulheres, no sentido que a gente não precisa mais ter o aval, esperar o convite ou ter permissão de homens para continuarmos a construir o que a gente acredita ser necessário.”

Na mesma pergunta, Letícia aborda a questão da busca do espaço feminino dentro do cenário do rap. “Buscamos não só a igualdade de gênero, mas também a equidade de oportunidades. Não basta sermos invisibilizadas, somos também minorizadas. Somos colocadas sempre como inferior dentro da cultura Hip-Hop, pelo que a gente fala, pelo que a gente grafita, pelas nossas poesias, pelas roupas que vestimos…”

Na avaliação da artista, a valorização da autoria das mulheres ainda precisa avançar. “Que a questão do machismo dentro da cultura não seja só mais uma pauta pra ganhar voto, pra dizer que todo mundo é igualitário. É necessário que seja uma prática no dia a dia. Quando uma mulher estiver numa reunião, que ela seja ouvida e que seja levado em consideração o que ela está dizendo”, demanda.

Compartilhe
Fã de games, da fotografia, do cinema, da cultura e da representatividade. Amante de desenhos animados e jurado doméstico de carnaval. Este é Rafael Costa, acadêmico do 7º de jornalismo da Universidade Federal do Pampa. #4P
Ler mais sobre
Direitos humanos Notícias Políticas culturais

Unesco sugere salário mínimo a todos os trabalhadores da cultura

Beta Redação Culturas populares Entrevista Processos artísticos

“Tive que derrubar um mito por dia”, diz compositor que quebrou tabus no carnaval carioca

Beta Redação Direitos humanos Entrevista

Negra Jaque: “O rap gaúcho tem muito potencial, mas não tem mídia”