Ester Caetano
Uma artista para além das fronteiras, Maria Lídia Magliani não gostava de rótulos. Em plena ditadura militar, utilizava a estética neoexpressionista para refletir sobre a situação política do país e sobre a condição da mulher e do corpo feminino na sociedade machista, temática que lhe foi cara até o fim da vida. Como artista negra que frequentava vários espaços, a pelotense rompeu barreiras e foi um dos grandes nomes da cena artística do Rio Grande do Sul nos anos 1960, antes de sair do estado para morar em São Paulo, Minas Gerais e também no Rio de Janeiro.
“As galerias disputavam as disposições da Magliani, havia interesse por parte dos colecionadores. Então há um momento da carreira em que ela teve pleno sucesso, ela realmente foi uma artista reconhecida naquele período. Foi um período aliás em que houve uma dinamização muito forte na produção artística e no mercado de arte do Rio Grande do Sul” explica a doutora em História e Crítica das Artes Visuais pela UFRGS, Neiva Bohns.
O trabalho de Maria Lídia Magliani ganha corpo na salvaguarda da representação da mulher nos momentos autoritários. Esse caminho reverbera na crítica ao humano que foi transpassada pelas questões da negritude, do feminismo e dos diversos movimentos sociais. Ela preferiu se vincular à expressividade, colocando em ênfase o corpo de homens e mulheres representados pelo sentimento que evocam. “É como se ela tivesse um olhar de raio X, ela olhava para as pessoas e fazia a tradução dela a respeito. Então ela não tem compromisso de agradar ao público, ela já é dessa geração de artistas que têm autonomia para o que vão fazer”, revela Bonhs.
Maria Lídia se mudou quando era criança para o bairro Sarandi, na periferia de Porto Alegre. Nascida em uma raiz familiar de artistas, decidiu ser pintora, o que a levou a dedicar e lapidar suas pinturas como profissão. Quando adolescente, gostava de ler, ouvir música, ir ao cinema, teatro e desenhar. Sua história no meio artístico se inicia em 1963, quando passou a ser estudante do curso de Artes Plásticas no Instituto de Belas Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Multiartista de vários interesses, não seguia os caminhos óbvios. “Magliani foi uma grande artista das artes plásticas, mas acho que através de saber ela também foi uma grande ilustradora, trabalhou em jornais, fazendo ilustração, trabalhou para o teatro, fazia cenários numa época em que estávamos ainda sobre ditadura militar. Ela se engajou em movimentos culturais que eram extremamente politizados e eram de vanguarda”, conta Bohns.
Para a historiadora, ela tinha versatilidade, o que tornava seu trabalho único e autêntico. Carregava os modos da estética neoexpressionista e passeava na essência da arte moderna. Em seus desenhos e pinturas registrava os desencantos, paixões, amizades e, nos traços, trazia a investigação da sociedade através do seu íntimo olhar.
Historiadores analisam que a fase mais marcante da artista é ainda quando ela está na Universidade, em que se interessa também por literatura, o que de certa forma determina o seu modelo de construir sua arte. O período de sua formação, entre os anos 60 e 70, ficou marcado pela grande luta dos artistas no direito à expressão artística e contra a censura da ditadura militar.
Herdeira do movimento das vanguardas históricas, ela se associou à nova figuração. “Com figuras, formas que demonstram o estado de espírito, de insatisfação com com as situações sociais e políticas. É um trabalho que tem comentários políticos muito fortes. As figuras femininas parecem demonstrar um interesse pelo ativismo feminista”, detalha a pesquisadora.
Magliani gostava de externalizar o seu entendimento de mundo. Suas opiniões eram próprias e embasadas no que acontecia no mundo e nos filtros do seu conhecimento da literatura. Bonhs conta que a artista era uma leitora ávida, escrevia muito bem e tinha uma comunicação insólita. Sua linguagem demonstrava uma sofisticação.
Na sua personalidade, transparecia inquietação, e isso reflete nas suas várias mudanças de territórios. Consciente do racismo que atravessava sua vivência, a artista fazia questão de não se declarar militante. “É ‘normal’ ser branco e, portanto, é natural que o branco faça tudo, mas quando se trata de um negro, age como se fosse algo fantástico, um fenômeno – o macaco que pinta! Não gosto disto”, ela declarou em uma entrevista em 1987, ocasião em que já morava em São Paulo. Mais tarde, se mudou para Minas e, depois, para o bairro de Santa Tereza, no Rio.
Já no fim de sua vida, passou por grandes dificuldades financeiras, na medida em que sua importância passou a ser invisibilizada pelas instituições. A artista morreu aos 66 anos, em 2012, vítima de uma parada cardíaca. Conforme registrou Neiva Bohns em seu artigo À Flor da Pele – Magliani vive aqui, escreveu uma carta ao amigo Renato Rosa em 2006, na qual externava sua tristeza: “Há anos não tenho mais como sustentar a pintura. Ultimamente não tenho como sustentar a mim mesma. A São Paulo civilizada, da qual continuo gostando muito ainda existe, mas não é para a minha bolsa.” No texto, a pesquisadora levanta hipóteses para o fim melancólico da carreira da artista, entre elas o racismo e as novas tendências artísticas com as quais ela não se identificava.
Por onde passou, Maria Lídia deixou um pouco de sua particularidade, além de se apropriar das peculiaridades desses lugares. Ao longo de sua carreira soma mais de 100 exposições, individuais e coletivas. Suas obras estão em museus, instituições públicas e privadas pelo Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro e São Paulo. Sua poética é o mosaico das suas vivências.
Nos últimos anos, sua trajetória tem sido resgatada e valorizada por instituições artísticas do Rio Grande do Sul. Em 2021, a Casa de Cultura Mario Quintana inaugurou um espaço que homenageia Magliani. A Fundação Iberê Camargo prepara para fevereiro de 2022 uma exposição individual da artista, que terá curadoria de Denise Mattar. “Sua criação se insere num expressionismo sangrento, que choca e fere os desavisados e os sectários”, comentou a curadora ao site da instituição.
Como escreveu Neiva Bohns, “o fato é que as verdades que expressou através de suas figuras torturadas continuam provocando incômodo, como um alarme que insiste em soar, mesmo quando toda a energia vital de um indivíduo se esvai”.