Foto: Foto: Cristiano Rangel/CIBAI

Do idioma às artes, integração cultural de imigrantes vai além da inserção no mercado de trabalho

Andrea Reyes guarda, no fundo do coração, um inventário de saudades. Como todo imigrante, são as lembranças construídas no país de origem as que mais carregam força na memória da venezuelana de 34 anos, que as elenca com a ansiedade de quem acredita não ter tempo suficiente para falar sobre tudo, porque o tudo de uma vida não cabe no tempo de uma entrevista – que dirá nas citações de uma reportagem. 

O que primeiro lhe vem à cabeça é o peixe frito, recém-saído do mar venezuelano, com arepa (pão feito à base de farinha de milho). Então se recorda das canções que tocavam na rádio uma vez sintonizada na estação costumeira – e se tocava Margarita, embalada pela voz de Francisco Mata, o cisco podia até cair no olho, mas os ombros e o quadril não ficavam sem balançar.

São memórias de uma cultura interrompida, para Andrea, por fatores de sobrevivência. Se ficasse na Venezuela, teria de lidar com a falta de perspectiva para os dois filhos, que carregam na veia o talento artístico e que mal conseguia sustentar com o salário de contadora. Se partisse para o Brasil, deixaria para trás o lugar onde viveu até os 30 e enfrentaria, cheia de saudades, as incertezas na terra nova, além do martírio por ter de passar tanto tempo longe dos filhos antes de ter condições para trazê-los. Essa segunda opção, porém, guardava a possibilidade de ver a vida dar certo para o seu rebento. Escolheu a maternidade.

A vinda de Andrea para o Brasil está dentro do que se chama de “fluxo migratório global”, que representa o deslocamento motivado por questões políticas, econômicas, ambientais e de conflitos violentos. De 2011 a 2020,  houve um aumento de 24,4% de imigrantes registrados no Brasil, que atualmente abriga cerca de 1,5 milhão, sendo cerca de 700 mil refugiados. Os maiores fluxos vêm da Venezuela, Haiti e Colômbia, segundo dados do projeto “2011-2020: Uma década de desafios para a imigração e refúgio no Brasil”, elaborado pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), uma parceria do Ministério da Justiça e Segurança Pública e da Universidade de Brasília (UnB).

Andrea chegou em Porto Alegre (RS) com a roupa do corpo, uma mochila e a coragem. A cultura era de fato distinta, ainda que tivesse suas familiaridades. “A comida é a mesma, só que aqui a janta é como um almoço”, observa a contadora. Como dizem que a América Latina é uma só, o sentimento de acolhimento foi sentido por ela desde o princípio. Se integrar à cultura de sua nova morada podia não ser tão complicado assim.

A venezuela Yelitza Coromoto Bastidas (Foto: Alexandre Briozo Filho/Nonada Jornalismo)

Mas de início foi, como o são todos os começos em lugares antes nunca visitados e, ainda por cima, com pouquíssimos recursos e baixo domínio sobre a língua falada. O grande desafio foi conseguir se comunicar. Como dizer para A que a sua intenção é B sendo que A só entende C? A afinidade na sonoridade do espanhol e do português foi de grande ajuda, e logo Andrea aportou numa comunicação de associações, que não se restringia apenas à fala, mas ao conjunto das circunstâncias em que ela se encontrava. 

Convivendo com outros brasileiros e posteriormente sendo assistida pelo Centro Ítalo Brasileiro de Assistência e Instruções às Migrações (CIBAI) com curso de Língua Portuguesa, a comunicação por instinto se misturou ao portunhol, até hoje predominante na fala da contadora. Depois de um ano e três meses trabalhando de carteira assinada como faxineira e fazendo limpezas por fora, conseguiu trazer os filhos e a mãe para o Brasil.

Música na história de quem imigra

O CIBAI foi e continua sendo um auxílio importante na vida de Andrea, assim como o é para os mais de 5 mil imigrantes atendidos no Rio Grande do Sul, segundo relatório de 2023 divulgado pela instituição. Entre as capacitações oferecidas, está o curso de Língua Portuguesa, que por guardar, na língua, a promoção de identidades, vínculos, memórias, afetos e conhecimentos, facilita a integração cultural de quem imigra. Para as 56 nacionalidades atendidas pela instituição, essa formação faz toda a diferença.

Migrante participando do festival Musicante (Foto: Cristiano Rangel/CIBAI)

A coordenadora de projetos do CIBAI, Dina Scharb, começou a trabalhar na instituição ainda como voluntária. Atualmente funcionária, é responsável pelos cursos de capacitação profissional para imigrantes e refugiados. Para ela, o programa é uma forma de dar ferramentas linguísticas ao imigrante para se inserir de forma mais facilitada na comunidade. “Dominar o idioma local não vai ser necessariamente um sinônimo de que a pessoa vai conseguir se incluir na comunidade de forma facilitada. Pode haver muitas resistências, e existem”, pondera. 

Além dos cursos, um dos principais eventos de integração cultural promovidos pela instituição em Porto Alegre é o Festival de Música do Imigrante, o Musicante. Com a sua terceira edição realizada no dia 31 de agosto, o evento teve direção artística do músico Santiago Neto e reuniu cerca de duzentas pessoas no auditório da igreja que sedia a instituição. “A gente faz esse evento justamente para colocar essas culturas em contato também, né, pra dar visibilidade pras migrações e também pra gente trabalhar num desses pilares que é construir uma comunidade mais acolhedora e mais aberta à diversidade”, comenta Dina.

Quem passava ali na frente podia ouvir, da calçada, os aplausos que vinham do auditório a mais de cem passos de distância. No palco, candidato atrás de candidato, de nacionalidades distintas, fazia uma performance. Como é o caso de Gabriel (9) e Leonardo (11), os filhos de Andrea, que já são veteranos do evento na categoria infantil.

Miller Fernandes (Foto: Alexandre Briozo Filho)

Miller Fernandes, 33 anos, foi um dos participantes do Musicante na categoria adulto. Por trás da apresentação de dança e de canto, a origem são-tomense fala mais alto. Ele se lembra bem do canto entoado pelas mulheres de São Tomé e Príncipe quando iam lavar roupa na beira do rio. Quando criança, acompanhava a mãe nas lavagens de roupa e ouvia, fascinado, as canções que a mãe cantava enquanto esfregava a roupa em cima da pedra. Ali se formava nele a vontade de expressar, de alguma maneira, as sensações que lhe percorriam o corpo. 

As memórias da infância ainda circulam vivas em sua imaginação, e talvez seja por esse motivo que o técnico de serviço industrial, serralheiro, atleta e dançarino não tire do rosto o sorriso grande que carrega. “Eu sou uma pessoa alegre, gosto de cantar, dançar, gosto de sorrir. De vez em quando também eu escrevo poesia, algumas coisas que são relacionadas com a minha vida”, ele se descreve.

Ainda que oriundo de um país cujo idioma oficial é o português, Miller também se viu encurralado diante da barreira da língua. Há diferenças na pronúncia do idioma nos dois países. “Eu não entendia nada que o pessoal falava, precisava perguntar mais duas ou três vezes para entender. E as outras pessoas faziam o mesmo quando eu falava”, ele explica. Após as aulas, Miller passou a adaptar o português são-tomense para o português brasileiro. Residente de um bairro periférico da capital, ele enxerga no Musicante uma forma de mostrar o que representa São Tomé e Príncipe, um país ainda pouco conhecido no imaginário local. Desde então, sua integração no cenário porto-alegrense tem se dado com mais facilidade.

O mesmo vale para Yelitza Coromoto Bastidas, 46 anos. Imigrante da Venezuela, a auxiliar de enfermagem vestiu o chapéu de vaqueira e incorporou, no palco do Musicante, a persona que um dia sonhou em ser. Dentre as várias aspirações que coleciona, cantar é uma das mais antigas. Sonhava em estudar música, até que o chamado da enfermagem falou mais alto. “Eu gosto muito da história da Florence Nightingale, que é chamada a mãe da enfermaria moderna, porque ela sentiu esse chamado”, comenta Yelitza ao se comparar com a dama da lâmpada. 

A escolha entre as profissões era um ensaio para uma escolha difícil que teria de ser tomada mais adiante: a de partir ou ficar. Mesmo tendo deixado a Venezuela, Yelitza a carrega para todo lugar, seja nas canções que inflam seus pulmões, seja no sotaque inconfundível. 

Para Miller, eventos como o Musicante são uma forma de se inserir na cultura local a partir da expressão de sua cultura de origem. “Não é necessário um evento tão grande pra gente demonstrar a nossa cultura. Mesmo que seja simples, eu vejo um grande exemplo nisso”, diz. 

De imigrante para imigrante 

Mario Fuentes Barba fundou o Fórum do Imigrante do Rio Grande do Sul com o intuito de fazer uma organização para imigrantes administrada por imigrantes. Diferente do CIBAI, o Fórum do Imigrante é inteiramente organizado por imigrantes. 

Brasileiro naturalizado, Mario migrou da Venezuela para o Brasil ainda em 1987. Há quase 40 anos no país, atua na área migratória e humanitária desde que chegou. Antes, foi coordenador da Unidade dos Povos Indígenas e Direitos Específicos de Migração, do Comitê Municipal de Migração. Hoje, trabalha como assessor em assuntos de migração e povos indígenas da Secretaria do Trabalho e do Cine Municipal, além de membro do Núcleo de Estudos Indígenas e Afro-Brasileiros da PUC. 

Mario destaca a importância da existência de instituições de auxílio aos imigrantes, mas enxerga defeitos na conduta exercida pelas mesmas. Para ele, a visão institucional dessas organizações é algo que exerce efeito direto no trato com os imigrantes em sua chegada, cuja imagem acaba sendo reduzida ao sujeito passivo, necessitado de ajuda. “Nós, como migrantes, estamos aqui. Ao mesmo tempo que agradecemos pela acolhida, queremos contribuir com a cidade e com o Estado que nos acolhe”, diz o assessor. 

Segundo Mario, a valorização cultural do imigrante é sua inserção na cultura local contribui com a inversão da lógica de sujeito passivo aplicada aos imigrantes. Em agosto, a comunidade senegalesa de Porto Alegre celebrou, no Centro Histórico, o Magal, evento que exalta o líder religioso chamado Grande Magal de Touba a partir de conversas, rodas de música e distribuição de comida. 

Uma vez que o evento foi organizado pela própria comunidade senegalesa com o apoio do Fórum de Imigrantes, Mario critica a ausência de incentivo público para a realização da atividade. A falta de engajamento municipal, de acordo com ele, representa uma falta de estrutura por parte do poder público para lidar com as diferentes manifestações culturais presentes na cidade. “Ainda não se reconhece, e muito menos se dá importância, à contribuição cultural desses povos e dessas nacionalidades, desses migrantes. Isso acontece ou porque eles são de origem de um país pobre, ou porque são negros. Tristemente digo isso, mas é uma realidade”, encerra. 

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Estudante de Jornalismo na UFRGS. Repórter em formação. Gosta de escrever sobre o Outro. Na mesa de cabeceira há sempre um romance. Cearense no Sul.
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