O povo Apurinã, etnia indígena presente na região norte do país, cultiva em sua cosmologia a entidade Sãnyky, considerada rainha da floresta. Ser que protege os animais, a vida, as mães e as mulheres, ela aparece apenas a cada 150 anos na terra. Em 2024, os pajés Apurinã encontraram Sãnyky na terra indígena Boa Vista, no município de Lábrea, no Amazonas. A entidade teve uma razão grave para se presentificar: o ano que passou foi marcado por queimadas e secas no território, deixando comunidades isoladas por dias.
A artista Sãnipã, cujo nome carrega a força da entidade, vivenciou na pele o ano de agravamento climático em sua região. Em novembro, na sua primeira vez visitando o Rio Grande do Sul, através do projeto Ling Apresenta, Sãnipã decidiu pintar em grande escala a rainha da floresta cultivada por sua etnia. A artista, dos povos Apurinã e Kamadeni do Amazonas, escuta histórias como essas de seus mais velhos e acredita que é um sinal de alerta para o Brasil, e para o mundo, acerca dos eventos climáticos extremos e, cada vez mais, frequentes.
A pintura da artista transformou a parede branca em camadas de amarelo, vermelho e laranja. O traço, realizado de forma horizontal e repetitiva, lembra tanto o elemento fogo (em referência às queimadas de 2023 e 2024 na região), quanto a água do rio, criando um horizonte que se perde no olhar. Em primeiro plano, uma mulher indígena vista de perfil, com seus longos cabelos pretos, seus grafismos por todo rosto e corpo, derrama seu leite sobre a paisagem, onde estão os animais, as árvores, e a mata. A pintura, de grandes proporções, apequena os visitantes do corredor principal da instituição. Pintada durante cinco dias, a intervenção de Sanipã integra o ciclo “Amazônias: no tremor das vidas”, com curadoria da pesquisadora Vânia Leal. A artista é a terceira artista convidada, em um ciclo que contempla quatro artistas do norte.
Escolher pintar a figura de Sãnyky em Porto Alegre foi uma forma da artista conectar o que aconteceu em sua comunidade com as enchentes ocorridas no Rio Grande do Sul. “A Sãnyky teve que vir, porque secou tudo, tudo mesmo. Nós lá sofremos com a questão da seca, e ficamos muito tristes em saber que no sul foi a questão da cheia”, conta a artista. “Ficamos muito sensibilizados, porque enquanto algumas pessoas morriam afogadas, outras morriam de fome. No caso de Lábrea, não tínhamos como ir em outro município porque não havia transporte, nem por terra, nem por água.” O Amazonas registrou 22.114 queimadas em nove meses de 2024, sendo que 97% desse total ocorreram nos meses de julho, agosto e setembro. O ano de 2024 já é considerado o mais crítico em termos de focos de calor desde 1998, quando o Inpe começou a coletar dados.

A artista conta que Sãnyky chega para prover o alimento e restabelecer o ambiente tão devastado pelas condições extremas. “Quando ela vê toda essa situação, derrama o leite do peito. O leite traz o pirarucu, que é um peixe amazônico muito grande com poder alimentar duas ou três famílias.” Outro animal desenhado pela artista é a anta, que representa fartura e prosperidade para a cultura indígena de sua família. “Ela é como se fosse um boi da natureza”, explica. Além deles, há também a onça pintada, o gato maracajá, e o Tamanduá-Bandeira, chamado de Echua , um ser mitológico para o povo Apurinã, conhecido por replantar sementes na terra desmatada.
“Quando não tem mais nada na floresta, é preciso reflorestar. E como se faz isso? Precisamos dos animais, como o Echua (Tamanduá). Ele vai buscar as sementes e fazer as coisas acontecerem. O que ele traz logo, de primeira, é a castanha, que vocês conhecem como Castanha do Pará, mas na nossa língua é mavgáhv.”
Um detalhe que chama atenção na obra é que os animais estão desenhados em pequena escala, em relação à altura da parede e da própria rainha da floresta. Logo, entende-se que são animais bebês e não adultos. Essa representação é importante para a artista, pois lembra que a entidade indígena está fazendo nascer de novo a vida, às gerações, às crianças. “Ela conecta tudo através do próprio leite. É como se ela jogasse a água, que vai dando raízes para outros lugares. Começa no Rio Purus, onde eu moro, e deságua no Rio Solimões e no Rio Negro, onde está Manaus”, conta Sãnipã.“Na pintura, a anta é um bebê, porque criança é sempre feliz. Não importa a situação. A anta perdeu a mãe na queimada do fogo, mas sobreviveu. É isso que importa.”
Além dos animais, cada grafismo desenhado no rosto da entidade da floresta tem um significado. Os grafismos contam histórias e, por exemplo, um dos traços diz que “Sãnyky é uma mulher guerreira que anda pelos caminhos”. Através da pintura, é possível saber que “Sãnyky é da natureza, conhece as medicinas tradicionais, das quais muitos utilizam.” O trançado, por sua vez, significa a reconstrução, e a solidificação de de alguma coisa mais sólida e de muito valor que está por vir.”
A artista tem se destacado em exposições nacionais e internacionais, expressando as culturas originárias através de pinturas, gravuras e instalações. Na 15ª Bienal Naïfs do Brasil, recebeu o prêmio Destaque-Aquisição, com a obra Totem Apurinã Kamadeni, adquirida pelo Acervo Sesc, sendo a primeira mulher indígena amazonense na coleção. Suas principais exposições incluem Nipetirã, O Sopro Tribal sobre Outros Olhares, na Galeria do Largo; Amazônia Sou Eu!, em Nova Iorque; e a individual Dança Sagrada do Povo Apurinã, no Museu Amazônico.
“Eu gostava muito de desenhar na terra, nas folhas. Eu pegava sempre assim. Nossa, pra mim era uma maravilha brincar com as folhas em si. E chegou o momento da minha vida, que eu comecei a estudar um pouco a arte, concluí o estudo. E, desde então, eu descobri que esse era o meu mundo, era isso que eu queria expressar. Eu faço as coisas para que meus filhos, meus netos um dia, meus bisnetos, eles possam entender e saber que quem somos, a nossa identidade permaneça o resto do tempo”, conta.
A produção de Sãnipã, exibida em Porto Alegre, faz uma ponte sobre a crise climática global. Ela denomina a obra como forma de aproximação. “Existe uma conexão grande entre os dois, pois estávamos sofrendo com uma situação muito parecida. Um por seca e outro por água. Então, os dois povos, embora diferentes para nós, compartilharam um sofrimento tão grande também.
“Não existe arte amazônica”

Antes de Sãnipã, os artistas Éder Oliveira e Bárbara Savannah apresentaram suas instalações no projeto Ling Apresenta. A edição, totalmente dedicada a apresentar artistas do Norte na região sul, tem como objetivo aproximar as duas regiões. “Estabelecer essa conexão, essa travessia entre o Norte e Sul é uma atitude também política e necessária, porque, queiramos ou não, a região Norte ainda é muito invisibilizada em relação ao resto do país”, explica a curadora Vânia Leal.
Vânia atua na área de curadoria e pesquisa em Artes, tendo assinado a curadoria de diversas exposições, como a primeira Bienal das Amazônias, o educativo do projeto Arte-Pará. Ela defende a constante necessidade de se atualizar os imaginários sobre as Amazônias, no plural, através de artistas que falam a partir de seus territórios. “Quando a gente fala em Amazônias, muitas pessoas se confundem geograficamente. “Ah, mas é nordeste? Ah, mas onde fica”. Parece, muitas vezes, que a gente é estrangeiro no próprio país.” “Quando pensei na curadoria, em trazer os quatro artistas do norte, gostaria de mostrar a diversidade dos povos florestânicos, porque quando se fala em Amazônia, não temos apenas os povos indígenas. São os povos ribeirinhos, povos castanheiros, assentados, afro-indígenas, indígenas. A Amazônia é muito plural.”
O trabalho de Sãnipã, marcado pelos personagens de sua cosmologia, é um exemplo disso. “Não existe uma arte amazônica. Isso é uma forma de homogeneizar. O que existe são pessoas que têm uma experiência com o seu ambiente,com questões políticas e sociais, como todo artista, e produzem em cima do que eles veem, sentem, observam nesse grande e vasto território que é a Amazônia”, destaca a curadora.“A gente também precisa trazer outros pontos para a arte, não apenas a violência explícita. No caso da Sãnipã, ela está trazendo essa paisagem, parte das cosmologias indígenas. Ela enxerga além. Não olha só para o humano.”
A reflexão que fica do trabalho, segundo Vânia, é a capacidade do próprio povo Amazônida de oferecer respostas, soluções criativas e artísticas. Ela lembra que os artistas e pensadores da região são agentes e estão sempre em movimento.
“O povo amazônida é um povo muito político, é um povo que sabe do seu lugar”, defende a curadora. “A gente não precisa que venham salvar a Amazônia, como muita gente diz. A Amazônia não precisa ser salva, entende? Porque os povos florestânicos, expressão cunhada pelo Chico Mendes, sabem cuidar da floresta, sabem fazer uso dela, vivem a partir de processos de sustentabilidade.”
“Qual a reflexão que fica disso? Estamos com as feridas muito abertas. E como a gente vai se mover a partir disso também? Então, nos movemos muito na Amazônia. A gente não fica de braços cruzados”, finaliza.