A produção artística também pode ser uma das muitas ações mobilizadas pela sexualidade humana. Desde as primeiras formas de organização social, é possível traçar a importância do tópico para a humanidade a partir das inúmeras representações eróticas que perpassam as mais variadas linguagens artísticas. Com o passar dos tempos e as mudanças culturais, esse aspecto tão presente da vida ganhou novos contornos, mas parece nunca deixar a centralidade ao redor da qual as civilizações se organizam.
No contexto da arte contemporânea, não seria diferente. Em 2002, o pesquisador Wilton Garcia desenvolveu e defendeu o conceito de Homoarte na Universidade de São Paulo (USP). Foi uma frase do livro de João Silvério Trevisan, Devassos no Paraíso, que ativou nele essa ideia. “Ele traz [no livro] o Darcy Penteado como um artista a ser discutido”, explica. Darcy Penteado era um artista plástico assumidamente gay que foi pioneiro do movimento LGBT no Brasil.
Wilton então se debruçou sobre uma série de artistas homens cisgênero e homossexuais para tentar compreender o que constitui essa produção até então referenciada como arte homoerótica; de que forma a perspectiva dessas grupos e a produção artística se relacionavam. “Se alguém me pergunta diretamente o que é uma homoarte, eu diria que é uma arte da sensibilidade”, diz.
Essa produção aparece, por exemplo, em momentos de resistência política, como o de Hudinilson Jr, que em seus cadernos de referências, catalogava corpos masculinos, textos e fotografias variadas que compunham um universo erótico durante a ditadura militar. Ou, então, nas obras de José Marçal, baiano radicado em Berlim, nas quais a busca por subverter a opressão que condiciona corpos homoeróticos é disparador para o artista. José sai de um lugar de subalternidade, ele revela a potencialidade desses sujeitos que transcende a partir da beleza e liberdade de expressão.
Contudo, o atravessamento da sexualidade nessas obras de arte nem sempre resulta no sexo explicíto e pornográfico, como explica Wilton: “não é uma arte pornográfica exclusivamente. Não precisa desse sexo explícito. Pode ser uma arte que se relaciona à sexualidade, mas pode ser uma arte que se relaciona também à afetividade. E a ordem dos afetos tem uma sensibilidade incrível. Eu gosto de pensar que é arte dos encontros.”
Artista visual e pesquisador, Wilton Garcia buscou dar conta dos debates emergentes da época, mas reconhece que com o passar dos anos, o conceito precisou se transformar e dar conta de vivências para além do homoerótico, contemplando o grupo das minorias sexuais e de gênero mais diverso. Foi necessário atualizar e ampliar o escopo da homoarte para uma arte da diversidade, em que se contemplassem as diferentes identidades. Essa multiplicidade de vivências pode ser entidade como Queer, que no inglês, durante décadas foi lido como “estranho”, mas nas últimas décadas foi reivindicado por lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros como um termo de identificação e não de esteriotipagem.
Um trabalho que chama a atenção no campo é o da reconhecida nacional e internacionalmente Élle de Bernardini, cujas obras abordam a intersecção entre questões de gênero, sexualidade, política e identidade com a história da humanidade e da arte. Em Formas Contrassexuais, a artista propõe outros modos de se relacionar com o corpo, dialogando com a proposta do filósofo Paul B. Preciado em Manifesto Contrassexual, expandindo a concepção de gênero para algo que existe para além do desenho de um corpo.
Já a fotógrafa estadunidense Joan E. Biren (JEB) registrava, desde 1970, relações afetivas entre mulheres, como um gesto político de luta pelos direitos e pela visibilidade de mulheres lésbicas. Sua inspiração inicial também foi a obra de escritoras negras, lésbicas e militantes: “Algo que eu aprendi com lésbicas brilhantes como Octavia Butler e Alexis Pauline Gumbs é que ativismo é como ficção científica. Estamos provocando as pessoas a imaginar um outro mundo possível.”
Em uma reflexão sobre a sexualidade abordada em trabalhos artísticos, o pesquisador Wilton Garcia, ainda ressalta: “[a homo arte] não é uma arte de vítimas. A arte também tem esse poder de considerar valores, sobretudo valores político-identitários, mas se ela tiver só essa característica, é muito pouco pra mim. Acho que tem que pensar a criação, a estética. É uma arte do explícito? É uma arte de dois? Tem variantes aí, e são essas variantes que a gente tem que pensar em termos de produção de subjetividade.”
Conheça artistas de diferentes nacionalidades que abordam a sexualidade em suas obras:
Hudinilson Jr. (Brasil)

A arte de Hudinilson era desenvolvida em uma intersecção da estética com o posicionamento político que a caracterizava enquanto transgressora em meio à ditadura militar. Em seus cadernos de referências, o artista catalogava corpos masculinos, textos e fotografias variadas que compunham um universo erótico da própria sensibilidade do artista. Hudinilson foi um dos fundadores do grupo 3NÓS3 que propunha intervenções na cidade e discutia a relação de poder e subversão de regras a partir das novas tecnologias que atravessam a arte. O multi-artista, que foi pioneiro na arte xerox, simulava um ato sexual com uma fotocopiadora em Exercícios de Me Ver. Em uma entrevista para o Jornal de Brasília em 1982, o artista defendeu que o xerox “recria o corpo de maneira própria, destruindo detalhes e valorizando outros (…) Entender os limites impostos pela máquina, ampliar seus recursos e dominar esses limites invertem as relações, fazem com que a máquina seja veículo e co-autora deste trabalho.”
Andrej Dúbravský (Eslováquia)

Em um texto curatorial, a Galeria Jiří Švestka apresenta o trabalho do artista da seguinte forma: “Utilizando a linguagem visual de minorias sexuais, Dúbravský tenta seduzir o espectador para uma relação íntima. Com suas pinturas, ele nos convida a uma jornada amigável rumo à terra desconhecida, transformando o visitante em um voyeur”. A arte de Andrej Dúbravský emana a natureza com a qual o próprio artista busca se cercar em sua residência. Dentre os trabalhos do artista, é possível encontrar representações de corpos nus, em especial masculinos, em meio a um mundo pós-apocalíptico, resultado da ganância humana. Em outras pinturas, retrata a nudez de homens gordos. Uma dessas, em que dois homens se beijam, foi duramente atacada em 2023 pela Ministra da Cultura da Eslováquia Martina Šimkovičová, quando exposta na galeria de arte da Rádio e Televisão da Eslováquia.
Élle de Bernardini (Brasil)

Artista visual, performer e bailarina, Élle de Bernardini é gaúcha nascida na cidade de Itaqui. Muitos de seus trabalhos envolvem o próprio corpo ou mesmo as estruturas que o circundam. A artista diz que sua experiência no mundo enquanto mulher transsexual muito influencia o seu processo artistisco, que já resultou trabalhos como Dance with me, no qual a artista, banhada de ouro 18k e mel, convida visitantes da galeria a dançarem com ela. Em Formas Contrassexuais, a artista propõe outros modos de se relacionar com o corpo, dialogando com a proposta do filósofo Paul B. Preciado em Manifesto Contrassexual, expandindo a concepção de gênero para algo que existe para além do desenho de um corpo. Em entrevista ao Nonada, a artista fala sobre seu fazer artístico: “Eu vou propor que as pessoas pensem, alarguem o seu pensamento e comecem a pensar em novos modelos de sociedade […] Nós temos que pensar novos modelos de sociedade. Acho que a arte permite imaginar como seria essa sociedade diferente.”
Mirha-Soleil Ross (Canadá)

Quando se mudou para Toronto, Mirha-Soleil Ross deu início a uma zine queer junto à sua parceira Xanthra Phillippa Mackay, entitulada Gendertrash From Hell (Lixo de gênero do inferno). O mote da zine era “dar voz aos dissidentes de gênero, que têm sido desencorajados a falar e se comunicar entre si”. Xanthra também participava com frequência do vasto trabalho em vídeo de Mirha-Soleil. Do acervo audiovisual da artista, destaca-se o curta-metragem “Gender Troublemakers”, em que as duas integrantes do casal documentam suas interações sexuais e dissertam acerca da vivência trans na década de 1990. A artista era ativista não só da causa trans como também dos direitos animais, lutas que transparecem em seu trabalho. Curadora, performer, videomaker e trabalhadora do sexo, Mirha-Soleil Ross possui uma produção artistica pela qual circula uma multiplicidade de temas dos quais emergem a política e o desejo.
Joan. E. Biren (Estados Unidos)

A fotógrafa feminista era formada em ciência política, mestre e doutora quando começou a aprender fotografia a partir de um curso por correspndência. Desse contato com essa ferramenta que a artista considera revolucionária, começou a registrar a vida e rotina de casais lésbicos. Com o lançamento de seu livro Eye to Eye: Portraits of Lesbians, convidou a sociedade estadunidense a realocar a forma como via mulheres homossexuais a partir do afeto e carinhos que suas “musas” trocavam com suas famílias. “Algo que eu aprendi com lésbicas brilhantes como Octavia Butler e Alexis Pauline Gumbs é que ativismo é como ficção científica. Estamos provocando as pessoas a imaginar um outro mundo possível. As mídias visuais podem ajudar a tornar essas possibilidades reais para aqueles que não as experienciaram. Podem ascender tanto o desejo; você é movido à ação”, diz Joan E. Biren em uma entrevista
Barbara Hammer (Estados Unidos)

Barbara Hammer produzia filmes que celebravam a sexualidade feminina enquanto compreendia a sua própria ao longo dos anos 1970. A cineasta é criadora de mais de 100 filmes que abrangem um vasto e diverso escopo de assuntos. Em No No Nooky T.V, por exemplo, Barbara desafia os constructos sociais que solidificam as visões acerca da figura da mulher e sua sexualidade ao interagir de modo subversivo com o computador AMIGA. Sobre a artista, Stuart Comer, curador-chefe de mídia e arte performática no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), comenta: “ O trabalho de Bárbara é notável não apenas pela abordagem radical da representação a qual ela foi pioneira no tempo em que o fez, mas porque ele vai persistir enquanto um molde crucial para empoderar nossos corpos e comunidade, mesmo em tempos de fragilidade e dor.”
José Marçal (Brasil)

Baiano radicado em Berlim, o artista busca subverter a opressão que condiciona corpos homoeróticos a um lugar de vitimização, revelando a potencialidade desses sujeitos que transcende a partir da beleza e liberdade de expressão. Do trabalho realizado no ateliê do artista, surgem imagens com aspectos surreais a partir da interação do corpo do modelo com outros objetos. A partir do que oculta e o que deixa aparecer, José Marçal enriquece as fotografias com uma tensão própria do universo erótico. Autoexpressão do autor, as imagens adquirem também um caráter universal ao associar poses contorcidas com tensão emocional ou a qualidade sensual à alegria, liberdade e experimentação. O fotógrafo, que ainda não teve a oportunidade de expor em seu país natal, responde a uma pergunta sobre sua inclinação artística: “eu sabia que era diferente porque, antes de tudo, eu sabia que eu era gay. Logo, eu sabia que era sensível e criativo. Eu tinha uma sensibilidade e inteligência muito aguçadas. Eu sabia/sentia tudo isso, e logo descobri que isso era ser artista, então sempre sonhei em ser artista”.
Ajamu X (Reino Unido)

Ajamu X celebra em sua fotografia a sensibilidade erótica de corpos negros e queer. “Ativista do prazer”, explora o corpo masculino negro e o desejo pelo mesmo sexo. Em uma de suas séries de retratos, Queer Cities, fotografou homens LGBTQIA + da cidade de São Paulo. Em outros trabalhos, corpos fortes e masculinos trajam adornos usualmente associados ao feminino, como salto alto ou sutiã em Bodybuilder in Bra. “Acredito que boa parte das nossas políticas negras e queer estão encobertas por políticas de respeitabilidade e, em alguns casos, não são tão criticamente profundas, brincalhonas, arteiras ou filosóficas. Porque prazer, alegria e erotismo são vistos enquanto pessoais e privados; alguém pode presumir que essas coisas não são tão políticas quanto o trabalho, que é enfrentado socialmente”, diz o artista em entrevista. Ajamu X vêm construindo um arquivo pessoal que busca dar conta da completude de vidas negras e queer, desafiando narrativas aparentemente imutáveis a partir de um imaginário homo-erótico.