A artista Juliana Xukuru (Foto: Ronny Colors)

Juliana Xukuru: “Na nossa infância indígena, a arte é fundamental e está presente desde cedo”

Por Yuri Euzébio, especial para o Nonada Jornalismo

Com a mesma delicadeza com que desenha seus traços quando pinta uma aquarela, ou constrói suas performances e desenvolve seu trabalho, a artista visual e pesquisadora Juliana Alves Xukuru conversa com qualquer pessoa sobre qual seja o assunto, de maneira doce, mas firme e sem perder de vista seu propósito.

Artista indígena que adota no nome a sua etnia Xukuru, de Pesqueira, agreste de Pernambuco, 215 km da capital do Estado, Juliana é formada em Artes Visuais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). É também Mestra em Artes Visuais pela UFPB/UFPE e procura refletir sobre as vivências indígenas na América Latina e sobre reminiscências da memória colonial no Brasil contemporâneo em sua arte.

“É da nossa prática, dos povos indígenas, entendermos a arte como algo essencial do nosso cotidiano, por exemplo o nosso toré, que é uma cerimônia religiosa e tem dança, canto e faz parte da nossa religião”, explica Juliana. “A arte para a nossa infância indígena é muito diferente do que para uma pessoa não-indígena, porque estamos inseridos nela desde cedo”. A artista explica que para os indígenas a arte é tão necessária e inserida no cotidiano quanto a comida, a roupa, ou a fala.

Segundo a artista visual, os pequenos de seu povo aprendem o toré quando aprendem a andar, é algo naturalizado desde os primeiros passos na aldeia. “Então, eu tenho tudo isso como um aprendizado de mundo desde muito nova”, disse. Pesqueira é uma cidade muito próxima da Serra do Ororubá, que é o berço do povo Xukuru. Os Xukurus se dividiram entre os Xukurus de Cimbres (da Vila de Cimbres) e os Xukurús de Ororubá. São o mesmo povo, que nasceram no mesmo território e se dividem entre duas lideranças, do Cacique Marcus e Cacique Ciba. São mais de 400 anos de uma história rica em manifestações artísticas e humanas e com uma diversidade cultural e étnica que formam a cultura do Estado e do nosso país.

Juliana explica que o ir e vir ao território é uma forma de resistência dos Xukurus. “Usamos essa inda e vinda como uma estratégia mesmo de cuidar do que é nosso, nosso território, nosso conhecimento. Os jovens usam essa estratégia de tentar pela educação, com a ida para a universidade, para fortalecer o povo”, detalha. Juliana afirma que atualmente existem muitos Xukurus advogados, médicos, sociólogos, pesquisadores, artistas e muitas outras profissões.

“É a nossa forma de dizer que nós queremos cuidar do que é nosso, lutando por direitos que assegurem isso como é a própria luta do indígena estar e se manter na universidade”, explicou. Aqui, Juliana traça um paralelo com a sua própria trajetória.

Foto: acervo pessoal
As vivências no ensino superior

A artista teve que sair do seu território para estudar e garante que isso foi uma forma de fortalecer a sua prática poética, bem como de outras mulheres que vieram antes dela e as que viriam depois. “A nossa história de tentativa de apagamento pelo poder eurocêntrico não acabou, só mudou de forma. Então, a arte e a cultura são ferramentas de luta para que nós sobrevivamos”.

Juliana explica que, de uma maneira geral, os indígenas da América do Sul nunca estiveram presos a um determinado espaço. “Nós sempre fomos povos que aprendemos a respeitar o tempo da terra porque somos parte da terra. Entendemos também que a terra tem o tempo de se regenerar, então também precisávamos circular. Porque plantávamos, trabalhávamos, mas não podíamos exacerbar aquele espaço”, disse.

Essa prática diminuiu com o avanço da colonização, já que o europeu encontrava maior facilidade de tomar a terra com esse deslocamento. Sem falar da urgência de demarcação de territórios para garantir os direitos e evitar a extinção dos povos.  O desejo de fazer um curso superior existiu desde muito nova na artista, mas o processo de ingresso e permanência na graduação foi árduo e turbulento. “Não foi fácil, porque primeiro para atingir uma nota que conseguisse entrar na faculdade era complicado. Depois que acaba a educação indígena dentro da aldeia, nós temos que estudar nas escolas que não são indígenas na parte baixa da cidade e é uma adaptação difícil”, relembra.

A artista também esclarece que o ensino indígena, que foi um direito conquistado com muita luta, prioriza determinados conhecimentos que são da aldeia e não a lógica aplicada no vestibular tradicional. “Há um projeto de ensino no nosso território que é pautado em outra estrutura, que é diferente”, contou. Nesse processo de vestibular, Juliana contou com a ajuda de professores da família, amigos, e aulas extras de um cursinho em Recife para o ingresso na universidade pública.

“A universidade pra gente é uma necessidade. O objetivo para sobreviver era estudar, não tinha muitas opções. Estudar era a minha saída, esse conhecimento da universidade traria coisas para o nosso território, nosso povo”, recorda.  “Quando acabei a graduação, eu nem respirei e no outro dia já estava fazendo projeto pro mestrado”, recordou. Juliana detalha que fez o curso de graduação em 6 anos, foi a última da turma a concluir a graduação, porque passou por uma série de obstáculos nesse período. “Foram muitas idas e vindas, questões econômicas, de suporte mesmo, contei com ajuda dos amigos, bolsas também”, falou com serenidade. 

Foto: acervo pessoal

“Na época, o Prouni não fornecia dinheiro para os estudantes se manterem, então às vezes eu tinha que escolher se comia ou se tinha passagem pra ir. Muitas vezes eu trancava o curso, voltava pro território, e até conseguir concluir foi assim”. Mesmo com todos esses obstáculos, Juliana guarda com carinho esse período e reconhece a importância fundamental da universidade na sua vida. “A universidade foi e continua sendo muito importante pra mim. São espaços que precisamos estar dentro para ecoar a nossa voz, a universidade é pra isso. E os nossos saberes são importantes, a universidade já está entendendo isso. Ela tem que ser nossa aliada porque é o nosso lugar também, muitas delas foram construídas em nossos territórios, sabe?”, reflete. 

Em artigo publicado no portal Mujeres Mirando Mujeres, plataforma feminina e feminista de processos artísticos liderado pela gestora e comunicadora cultural espanhola Mila Abadía, diretora da Plataforma de Arte Contemporânea Arte a un Click, e com o obejtivo de promover, visibilizar e valorizar o trabalho das mulheres no mundo das artes, a dra. Maria Emília Sardelich escreveu sobre a arte de Juliana, que foi sua orientanda no mestrado:

“Seu trabalho sobrepõe temporalidades e subjetividades em busca de memórias como histórias inacabadas e comoventes baseadas em seu próprio corpo e no de outras mulheres de sua etnia. Apresenta a vida como uma narrativa na busca de vestígios, da necessidade de recorrer a outras mulheres para criar a sua própria história.”

Artes Visuais Xukuru

Juliana já expôs seu trabalho na França, participou da SP-Arte, uma das mais importantes feiras de arte do mundo e a principal da América Latina, também já esteve no Museu de Arte de São Paulo e atualmente é a representante dos povos indígenas na Comissão Nacional de Cultura do Ministério da Cultura.

Utiliza sua forma de compreender o mundo e a inseparável relação entre sociedade e natureza como bases de seu trabalho, sempre a partir de uma ótica decolonial. Foi a partir dessa união que nasceram as Cartas Celestes, uma série de trabalhos em grafismos, desenho e pintura por meio dos quais materializou a cosmovisão Xukuru. 

Outro de seus trabalhos, é o Peji, de Xukuru de Cimbres, uma exposição audiovisual que será apresentada nos principais museus pelo Brasil, que retrata o Toré, um ritual realizado por vários povos indígenas, especialmente no nordeste brasileiro. Essa videoinstalação foi um dos cinco projetos selecionados da primeira edição do prêmio Museu É Mundo, premiação nacional que visa viabilizar ações artísticas para desenvolvimento cultural e social do país. O projeto Pejí foi idealizado pela artista, que também co-dirigiu a videoinstalação ao lado da jornalista e documentarista Gabriela Passos, e da cineasta Vitória Vasconcellos. 

Para Gabriela, o convite para trabalhar nesse projeto com Juliana foi um presente. “Juliana tem um olhar muito sensível e em todas as nossas reuniões, conversas era claro uma preocupação com o respeito ao tempo das coisas, o tempo da natureza, o tempo das pessoas que acompanham o tempo da natureza. Toda essa sensibilidade no olhar e no sentir que ela tem é contagiante e foi a peça central desse projeto”, disse.

Obra ‘Vestido de noiva com arco e flecha’ (Foto: Divulgação)

“Como jornalista, é muito raro, nos tempos que vivemos, dedicar tempo para a observação, apreciação, entender o movimento das árvores, do vento, o que o rio leva e para onde, mas isso fazia parte do projeto e é muito bonito construir algo partindo desse lugar. Para mim, esse projeto tem um grande valor de resgate e manutenção da memória.”, completou a documentarista. 

Gabriela conheceu Juliana durante a realização do seu primeiro documentário, o curta Decolonizar-te: O olhar da mulher sobre a memória colonial, que trata sobre artistas mulheres cujos trabalhos enfocam a decolonização.  “Naquela época, passei um dia acompanhando ela e o irmão pelo seu território e o acolhimento que ela proporcionou é uma característica marcante dela para quem a conhece.”, destacou.

A cineasta Vitória Vasconcellos  lembra com detalhes da experiência singular de filmar essa cerimônia. “Estávamos no meio da caatinga, ao redor do Peji (uma espécie de altar), onde pessoas de todas as idades participavam de um momento de cantoria e conectividade. O chão tremia e fizemos de tudo para capturar aquela energia nas nossas câmeras para que, quando pronta, a videoinstalação faça o público sentir a mesma sensação de comunhão com a natureza que o povo Xukuru conhece tão bem”, explicou.

Vitória e Gabriela vivenciaram durante quatro dias na Aldeia Mãe Maria, território do povo Xukuru de Cimbres, em Pesqueira, Pernambuco.” Moramos durante esse tempo numa escola indígena da região. Entre conversas e gravações, fazíamos refeições na casa da Dona Graça, onde éramos sempre recebidos com gentileza e fartura. E isso tudo permitiu que captássemos momentos únicos”, disse a diretora dos curtas Pathei Mathos (2020), Solum (2021), Bleed, Don’t Die (2022), Náufrago (2024) e Esconde-Esconde (2024)

Durante o projeto, elas testemunharam a confecção da barretina, que é um cocar simbólico deste povo, além da criação de artesanatos pelas lideranças da comunidade. Conheceram e vivenciaram o território sagrado pelos olhos das pessoas que o habitam.

Obra Relicário, de juliana Xukuru (Foto: divulgação)

Para a cineasta, a participação diária na vida do povo Xukuru permitiu uma representação imagética mais forte. De acordo com ela, toda a equipe estava sincronizada com os valores e a cultura da região, e queriam honrar a ideia de Juliana, que nasceu na aldeia. Ela menciona ainda que o tempo na aldeia mostrou um Nordeste que ela ainda não conhecia, e realçou a importância de utilizar o cinema para quebrar a ideia da história única.

“Projeto como estes mostram o uso da arte e da educação como forma de preservar a cultura de um povo. Durante nossa imersão na aldeia, conhecemos diversas pessoas que aprenderam a contornar as injustiças da vida com arte; seja na confecção de artesanato, na dança ou na música. A escola também assume um papel fundamental. Através dela se preserva a cultura originada no passado educando os jovens no presente, criando assim um futuro de possibilidades mais abrangentes para novas gerações”.

Em agosto de 2023, Juliana foi indicada pela sociedade civil para integrar a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura como representante dos povos indígenas. “Tenho a honra de estar nesse lugar especial representando as vozes dos nossos povos. E conhecer o Brasil trabalhando em conjunto e em diálogo com os trabalhadores da cultura do nosso país”, explicou.

Juliana conta que a CNIC funciona por meio de diálogos com as diferentes bancadas dos conhecimentos da Comissão antes das plenárias e em consenso por todos os membros também com a sociedade. 

A escolha de Juliana tem a ver com assegurar com que os povos contem suas histórias com suas próprias narrativas, assegurando assim a preservação do passado e construindo caminho de salvaguarda da memória de amplas vozes para o futuro. O que é resultado de toda a luta e trabalho da artista até aqui. É a artista cuidando de sua terra. 

Arte Decolonial

Por todas as suas vivências e trajetórias, uma das preocupações da artista em seu trabalho é expressar artes que questionam e transformam o padrão cultural eurocêntrico. Arte como uma ferramenta de resistência contra a opressão social e as práticas coloniais que persistem no nosso país. “A decolonialidade é uma prática constante no meu trabalho, tanto de pesquisa poética quanto acadêmica. Porque o pensamento colonial nasce justamente dessas lutas”, detalhou Juliana.

“Não é um pensamento que nasce dentro da academia, nasce da luta dos povos da América Latina e vai se aprimorando em outras instâncias, com pesquisadores e professores. O pensamento decolonial é uma prática metodológica que mais se encaixa com a nossa forma de pensar e lidar com a nossa realidade”, continuou a artista.

Juliana explica que quando se fala em decolonialidade é diferente de descolonização. Ela detalha que decolonização significa que é preciso entender que a nossa forma de viver está sempre atrelada à colonização que fundamentou as bases da nossa sociedade. “Significa dizer que a gente pode viver com tudo isso, mas também ditando nossas regras e que as formas de colonização não acabaram, só mudaram”, diz. “Se hoje não temos os portugueses chegando e invadindo as nossas terras de navio, temos outras formas, como o saber, as imagens que podem ser colonizadoras”.

Juliana trabalha o pensamento decolonial nas artes visuais a partir dessa referência da mulher indígena, sobretudo a mulher indígena Xukuru que é um corpo-território. Ela usa esse escopo para trazer os saberes ancestrais e explicar de uma forma prática sua visão de mundo.

Liderança do povo Xukuru de Cimbres, Wagney Xukuru enxerga em Juliana uma referência. “Para todos nós, ela é uma referência na área das artes. Por méritos próprios, ela vem batalhando, fazendo exposições nessa área de arte contemporânea”, disse. “Juliana tem uma importância enorme para a cultura dos nossos povos Xukuru, para a cultura dos povos indígenas, para a cultura do Brasil no Ministério da Cultura”, continua Wagney. 

“Nós temos um orgulho enorme dela ter ido em busca dos seus sonhos e conquistar tudo o que está conquistando, sempre levando o nome do povo Xukuru onde quer que ela vá. Ela já fez algumas exposições com imagens nossas, algumas parcerias, então nos sentimos parte desse trabalho que ela vem desenvolvendo”, conclui.

Yuri Euzébio

Yuri Euzébio é Jornalista e Historiador. Gosta de quadrinhos, cinema, música,  cultura popular, de escrever sobre as coisas. Vencedor do 2º Prêmio de Jornalismo Cultural e do 1º Prêmio AMPE de Jornalismo em Saúde e do 2º Prêmio InfoVacina Trainee. Já contribuiu para veículos como Nexo Jornal, Projeto #Colabora, Marco Zero Conteúdo e Revista Continente. E se sente pouco à vontade falando de si na terceira pessoa.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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