Cambada de Teatro: na luta por uma cultura mais acessível

A Cambada de Teatro surgiu depois de uma intervenção artística sobre o massacre de Carajás
A Cambada de Teatro surgiu depois de uma intervenção artística sobre o massacre de Carajás

A Cambada de Teatro em Ação Direta Levanta Favela é um dos grupos de teatro popular mais atuantes de Porto Alegre. Discutindo temas como as injustiças sociais e as formas de dominação masculina, o grupo busca uma estética que inclua a participação do público na crítica trazida por suas peças e intervenções. Os atores Ana Eberhardt e Robson Reinoso receberam o Nonada na sala 505 da Usina do Gasômetro no dia 14 de junho. Na plateia, entre as paredes pretas do ambiente, eles falaram sobre a situação do teatro popular no país e contaram que já foram abordados pela Brigada Militar em apresentações.

Nonada: Como surgiu o grupo?

Robson: O grupo surgiu a partir de uma oficina de intervenções cênicas urbanas. Aconteceu uma proposta do oficineiro Sandro Marques para nós apresentarmos uma esquete na rua. No dia 17 de abril de 2008, criamos uma intervenção para fazer uma denúncia aos 12 anos do massacre de Eldorado do Carajás na Esquina Democrática. O grupo se apresentou e deu vontade de continuar, criar outras intervenções. Eram cerca de 12 pessoas.

Nonada: Vocês repetem essa intervenção todos os anos?

Ana: Virou uma marca simbólica do grupo fazer o aniversário como um momento artístico, mas também com um ato de denúncia na Esquina Democrática, um lugar simbólico de Porto Alegre. Isso para comemorar o aniversário e lembrar o motivo que nos fez construir o grupo.

Nonada: Quais são as principais pautas que o grupo defende?

Robson: Todas as peças surgem a partir de uma pauta que o grupo está discutindo no momento. Nós falamos bastante sobre as relações de poder, sobre a ditadura, mas a ferramenta principal que estamos sempre querendo discutir e levar adiante é: que estética o grupo vai conseguir formar para poder levar ao público? Temos estudado bastante um dramaturgo paulista, César Vieira. Fizemos uma adaptação de um texto dele, Corinthians, Meu Amor e chamamos de Futebol, Nossa Paixão. Essa é a principal peça que estamos apresentando agora na Copa, estamos discutindo o que não está sendo discutido oficialmente. E tivemos a oportunidade de apresentar ela em Fortaleza e no Rio de Janeiro. Queremos fomentar a discussão de que a Copa está vindo, mas está vindo com diversas violações dos direitos humanos.

Nonada: A Cambada de Teatro tem influência dos movimentos que surgiram na ditadura, como o Teatro de Resistência?

Ana: Esses grupos que vem desde a ditadura pensam uma estética não-burguesa, uma outra forma de fazer teatro. Isso vem com a Terreira de Tribo [de atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz], vem com outros grupos, e o Cambada é herdeiro desses movimentos.

Queremos fomentar a discussão de que a Copa está vindo, mas está vindo com diversas violações dos direitos humanos.

Nonada: O dramaturgo marxista Bertolt Brecht também é uma influência para vocês, correto?

Ana: Sim, nós temos uma peça inspirada na vida de Bertolt Brecht. Ele revolucionou a maneira de fazer teatro, criou o Teatro Épico, que tem aquela coisa de que o teatro não é só emocional, ele também politiza as pessoas. Também trouxe a quebra da linguagem realista para fazer as pessoas pensarem no que está acontecendo.

Nonada: Qual é o panorama do teatro popular do Brasil neste momento?

Robson: Estamos num momento complicado. A esquerda assumiu o poder e parece que algumas coisas que se sonhavam antes de a esquerda assumir acabaram não ocorrendo na prática. Isso gera uma discussão muito grande entre os grupos de como se colocar politicamente dentro desse processo, porque a gente começa a lançar críticas, mas a direita se aproveita. Como renovar tua estética para fazer uma crítica que tem que ser hoje mais inteligente, mais sutil? Estamos em um momento em que parece que tudo está voltando a ficar subentendido. Os grupos de esquerda não conversam. Parece que estamos vendo muito mais as diferenças entre nós. Está faltando a gente reunir os coletivos e conversar sobre o que temos de igual e o que a gente almeja daqui para frente politicamente.

 As peças da Cambada levantam críticas como os impactos da Copa do Mundo nas favelas (Crédito: Cambada de Teatro)

As peças da Cambada levantam críticas como os impactos da Copa do Mundo nas favelas (Crédito: Cambada de Teatro)

Nonada: Como está a questão do incentivo financeiro?

Robson: Não sabemos como colocar porque não temos incentivo nenhum. O grupo passou num edital há dois anos aqui na Usina do Gasômetro para ocupar esta sala aqui. Pelo contrato, ganhamos 1800 reais por mês. Só que às vezes ficamos sete, oito meses sem receber e tendo que colocar programação. Agora no ano da Copa, tem muitos editais públicos, mas os grupos são contemplados e não recebem. Ao mesmo tempo em que se está investindo muito mais, essas soluções não estão chegando para nós, estão se perdendo no meio do caminho.O governo pensa: “vamos investir dois milhões de reais em Salvador”, aí vão e contratam a Ivete Sangalo por um milhão e 500 mil. Para a galera do teatro popular, sempre sobra a migalha da migalha da migalha e parece que ela sempre vem para desarticular a gente. Nós temos uma postura no grupo que sempre que achamos um edital público aberto, a gente se inscreve, porque é dever do governo subsidiar os grupos artísticos. Não nos inscrevemos em editais de empresas privadas. Acho que a questão não é lutar por mais verba, é ver como fazer para a verba que está aí conseguir atingir todo mundo democraticamente.

Ao mesmo tempo em que se está investindo muito mais, essas soluções não estão chegando para nós, estão se perdendo no meio do caminho.

Nonada: Como vocês fazem para manter os figurinos e os cenários das peças então?

Ana: Com os nossos salários e trocas com outros coletivos e movimentos sociais. A gente se adapta. Fizemos um cenário inteiro a partir do lixo do Mercado Público, por exemplo. É uma questão de se organizar de uma forma sustentável também.

Nonada: Vocês já foram abordados pelo poder público em alguma intervenção?

Robson: Em uma apresentação nossa na Esquina Democrática, veio a Brigada Militar interromper a peça com o argumento de que algumas pessoas não estavam gostando.

Nonada: Quando foi?

Robson: Em 2010, era um sábado de inverno. O cara veio parar a peça, mas conseguimos meio que dobrar o cara e manter a apresentação até o final. Quando chegou o final, fomos conduzidos para a delegacia, inclusive uma menina que fazia parte do grupo na época tinha 13 anos e ela foi junto. Tivemos sorte porque um cara que estava assistindo à peça era advogado, nos acompanhou até a delegacia e nos representou, então conseguimos ser liberados.

Ana: Em várias atividades culturais, o grupo acabou tendo problemas com a polícia. Em uma intervenção na Câmara de Vereadores, uns seis integrantes do grupo foram detidos e processados. Em uma atividade que a gente fez no dia 7 de setembro, contra a tortura e a ditadura, também. Esse processo de criminalização dos movimentos sociais é muito maior do que as pessoas veem. Qualquer aglomeração já chama a polícia. A gente já sofreu uma abordagem no nosso espaço de trabalho, num pátio interno aqui da Usina que não é aberto ao público. Oito policiais entraram, nos abordaram e nos revistaram.

Os grupos de esquerda não conversam. Parece que estamos vendo muito mais as diferenças entre nós. Está faltando a gente reunir os coletivos e conversar sobre o que temos de igual e o que a gente almeja daqui para frente politicamente.

O grupo promove oficinas de teatro gratuitas desde sua criação (Crédito: Cambada de Teatro)
O grupo promove oficinas de teatro gratuitas desde sua criação (Crédito: Cambada de Teatro)

Nonada: Vocês estavam ensaiando?

Ana: Nós estávamos ensaiando, eles chegaram nos acusando. Fizemos uma ocorrência na Guarda Municipal e uma moção de repúdio a este ato na Câmara de Vereadores pela Secretaria de Direitos Humanos. Nós chamamos por duas vezes uma reunião na Secretaria de Segurança Pública e eles não compareceram, não deram explicações e ficou por isso mesmo. É muito difícil, parece que a cultura não é um acesso. Deveria ser um direito gratuito proporcionado pelo Estado, mas na verdade quem quer levar essa cultura ao público gratuitamente é impedido pelo próprio poder público.

Confira as peças realizadas pelo grupo:

Canto da Terra (2008): história dos massacres ocorridos no Pará, desde a guerrilha do Araguaia até o massacre de Carajás

Árvore em Fogo (2009): baseada na vida e na obra de Bertolt Brecht, a peça tem músicas com poemas do dramaturgo

Margem Abandonada Medeamaterial Paisagem com Argonautas (2010): discute a violência contra a mulher e as formas de dominação masculina

Futebol, nossa paixão: pra falar sobre política, futebol e religião! (2011): peça sobre moradores de uma favela apaixonados por futebol que sofrem as consequências da Copa do Mundo no Brasil

Tebas ou A Trilogia Tebana (2013): adaptação dos textos clássicos Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona, de Sófocles, propõe uma discussão a respeito das relações de poder, da verdade e da justiça

A Belíssima Fábula de Xuá-Xuá: a fêmea pré-humana que descobriu o teatro! (2013): aborda a história do teatro e sua importância como manifestação cultural

Oficinas gratuitas:

Oficina de Teatro em Ação Direta: todas as segundas-feiras, das 19h às 22h, na sala Marcos Barreto da Casa de Cultura Mário Quintana.

Oficina do Teatro Militante à Música Engajada: todas as quintas-feiras, das 19h às 21h30, na sala 505 da Usina do Gasômetro

Oficina de Interstícios Cênicos: todas as quartas-feiras, das 14h às 17h, na sala 505 da Usina do Gasômetro

Futebol, nossa paixão:

LEVANTA FAVELA – Futebol nossa paixão from ANTROPO TV on Vimeo.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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