Criolo convoca os fãs: não à redução, sim à poesia

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(foto: Ita Pritsch/Nonada)

Quem pode ver um show do Criolo? Em Porto Alegre, pelo menos, só quem consegue pagar
120 reais (ou 70, com o lote promocional, quase o mesmo preço cobrado dos estudantes)*. Um privilégio para poucos se pensarmos nas desigualdades do país. Mesmo assim, o Opinião lotou na noite chuvosa de quarta-feira, 10 de junho, para receber mais uma vez o rapper.

A verdade é que o público porto-alegrense dos shows de Criolo mudou muito desde 2011, junto com os preços. Se, antes, era mais ligado a quem já curtia rap, agora ele é dominado por jovens brancos de classe média – embora a presença de alguns rostos de mais idade tenha surpreendido. Criolo conhece muito bem seu público, sabe para quem e por que canta. Tanto que passou o show inteiro convocando os fãs a questionarem suas ações e consequências. Você quer brisa? Vai escutar poesia!/ Toda quarta-feira ainda tem Cooperifa, ele aconselha em “Vasilhame”.

É claro que todos cantaram junto até as letras mais indecifráveis, embalados pelo carismático e talentoso DJ DanDan e pela figura de Criolo – bem mais expressivo do que no fim do ano passado, quando apresentou o álbum Convoque Seu Buda no Pepsi On Stage. Com quase a mesma setlist do show anterior, a acústica do Opinião estava bem melhor, fazendo jus ao talento da banda formada por Daniel Ganjaman (teclados e programação eletrônica), Marcelo Cabral (baixo), Guilherme Held (guitarra), Maurício Badé (percussão), Sérgio Machado (bateria) e DJ DanDan (voz e toca-discos).

Criolo apresentou músicas dos últimos álbuns e dos tempos de Grajaú (foto: Ita Pritsch/Nonada)
Criolo apresentou músicas dos últimos álbuns e dos tempos de Grajaú (foto: Ita Pritsch/Nonada)

Às 23h20, depois do que pareceu ser uma interminável música instrumental japonesa, Criolo surgiu no palco ao som de “Convoque Seu Buda”. Confesso que não me contive e acompanhei o povo na cantoria fervorosa pelas duas horas seguintes de música. Isenção jornalística comprometida, sigo o texto com um híbrido entre resenha e relato de uma fã (jovem branca de classe média). É impossível para mim não ir em um show de Criolo sem entrar em uma espécie de transe de boas energias – que vêm acompanhadas de algumas pontadas na consciência.

Isso porque cada frase do rapper é um soco no estômago, principalmente quando ele levanta ainda mais a voz para cantar, enfático, Cá pra nós, e se um de nós morrer/ Pra vocês é uma beleza ou E achar que teu 12 de condomínio/ Não carrega a mesma culpa enquanto a fumaça sobe desinteressada em alguns pontos da plateia. E essas batidas pulsam no show inteiro, desde as antigas “Sucrilhos” e “Lion Man” até a recente “Cóccix-ência”.

Depois de convocar o buda e relembrar as origens na comunidade do Grajaú, Criolo seguiu destilando verdades com “Esquiva da Esgrima” (cada cassetete é um chicote para um tronco) e “Subirusdoistiozin” (feio é arrastar e nem perceber). Em “Casa de Papelão”, o rapper, mais introspectivo, fez o público escutar atento ao prenúncio do show: Vamos cantar pra nossos mortos, vamos chorar pelos que ficam, orar por dias melhores e se humilhar por um novo abrigo.

“Duas de Cinco” (e seu leque de referências, de Hobsbawm a Star Wars) voltou a levantar o povo, que puxou um coro de “não à redução”, contra a proposta de redução da maioridade penal. O protesto foi endossado por Criolo e por DanDan, e relembrado em vários momentos do show. No reggae “Pé de Breque”, iluminado por belas luzes verdes, vermelhas e amarelas, uma pausa nos protestos. É hora de queimar todo o ódio e rancor em respeito ao movimento rastafári.

DJ DanDan acompanhou Criolo nos vocais e deu uma mostra de seu trabalho na Discopédia (foto: Ita Pritsch/Nonada)
DJ DanDan acompanhou Criolo nos vocais e deu uma mostra de seu trabalho na Discopédia (foto: Ita Pritsch/Nonada)

Com a esperada explosão de “Grajauex”, o Opinião veio abaixo. O rap, que fala da vida em Grajaú, é uma das preferidas do público e, quase sempre, o ápice da loucura nos shows. Animados, Criolo e DanDan até arriscaram uma coreografia na música. Em “Cóccix-ência”, lado B do single “Duas de Cinco”, destaque para o transe dos dois vocalistas ao som da guitarra, depois de darem o recado (O que não é seriado da Fox/ É playboy se acabando no óxi/ Artesanato humilde de durepox/ E antes de pensar em tirar/ Reflita). As seguintes “Pegue Pra Ela”, “Não Existe Amor em SP” e “Fermento Pra Massa” foram apenas mornas, mas “Cartão de Visita” foi uma nova explosão. A música, que tem participação de Tulipa Ruiz no estúdio, é irresistível com suas frases irônicas sobre a vida regrada por dinheiro e consumo.

Mas o melhor ainda estava guardado: um bloco nostálgico com algumas composições da época em que o rapper ainda era conhecido como Criolo Doido: “Tô Pra Ver”, “Demorô”, “Vasilhame” e “Ainda Há Tempo”. Esta última foi responsável pelo momento mais lindo da noite, quando todos cantaram o refrão acapella. Amor em estado puro. Criolo ainda voltou para o bis, encerrando com a dançante “Bogotá”.

Tenho até vergonha de protestar pela ausência de “Mariô” e “Linha de Frente”, diante da imensidão de tudo que vivi nesta noite. Saio do Opinião com os últimos acordes de “Bogotá”, energias renovadas e muitas inquietações na alma.

*Para se adequar à lei da meia-entrada, produtoras fizeram uma manobra nos preços. No show desta quarta-feira, os ingressos, que eram 60 reais no primeiro lote, inflacionaram a 120 durante esta semana. Qualquer pessoa pôde comprar o lote promocional de 70 reais, apenas 10 a mais do que a meia-entrada. Na prática, o preço especial para estudantes continuou não sendo respeitado. Queria saber o que Criolo pensa sobre isso…

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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